Prólogo - Pequeno Soldado

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O tempo...

Delicado, suave, assustador e complexo. Ele é aterrorizante, é belo e raro, tão complexo quanto os filamentos que compõem a luz, tão singular como uma digital.

Decisivo como os atos que antecedem uma tragédia, como o pneu que queima no asfalto, como a lâmina lisa que entra macia na carne, como os dedos nervosos que puxam um gatilho.

O tempo é surpreendentemente perigoso.

Tento pensar em sua forma, simplificando-o para parecer mais acessível a mim, mas não importa em qual segundo eu esteja no universo, em qual velocidade eu esteja enquanto esse planeta gira, o tempo sempre será uma fonte inesgotável de perguntas.

Tento apreciar cada momento simples, pois o tempo nunca deixa de ser tempo.

Tudo que levamos daqui se resume nessa única palavra.

Quanto mais nós amamos alguém, mais buscamos por tempo.

É através do tempo que viajo enquanto nesse coma eu revivo minhas dores, meus erros, minha estupidez, e o meu leve declínio para impulsividade. Não importa em qual fase do tempo eu esteja, em qual erro eu me encontre, eu não me arrependo pelos atos que me trouxeram até aqui. Não me arrependo pelo pulo.

E por mais fundo que eu deslize, ou por mais violência com a qual eu seja lançado, arrastado, arremessado, espancado, torturado, estou em paz. Pois estou cercado pelo frio, silêncio e escuridão enquanto eu afundo... Afundo... E afundo...

***

Quando olho meu rosto no espelho eu posso ver as sardas alaranjadas brilhando, o cabelo jogado sobre a testa e uma expressão inocente no olhar. Esse sou eu com sete anos: um garotinho baixo, magrelo e uma inocência que logo seria arrancada do meu corpo.

E o garoto que estava ao meu lado no banco traseiro do carro, era David. O meu melhor amigo, o garoto que morava no apartamento abaixo do meu, o número 512.

Naquele dia nós estávamos sentados no banco de trás do carro de sua mãe enquanto ela gritava para a filha mais velha ao telefone ir buscar os outros dois irmãos na creche. David e eu brincávamos de luta como dois idiotas. Ele era Jet Li e eu era Jackie Chan.

- Meninos, querem ficar quietos, por favor? - A mãe de David pedia.

Danielle era uma mulher de trinta e cinco anos, separada e mãe de quatro filhos, o tipo de mulher que todo homem iria querer levar para um restaurante mexicano.

- Olha isso André - David sorria balançando um bonequinho para que eu pudesse ver. - É um soldado, como Jet Li.

O boneco era um soldadinho verde perdido por entre os dedos de David.

- Jet Li não era soldado - corrigi rindo da situação.

- Eu não ligo.

O trânsito estava lento, havia um engarrafamento enorme por que um caminhão tinha capotado na rodovia e entornado produtos químicos da carga que carregava. David debruçou o corpo sobre a janela aberta do carro para conseguir ver melhor tudo o que acontecia.

- Mamãe, o homem do lado de fora falou uma palavra feia - David disse.

Danielle olhou para trás com um olhar sério na direção do filho.

- E se você repetir... - Instigou a mulher.

- Você me fará ler o dicionário inteiro.

Ela sorriu. As rugas ao redor dos olhos juntando-se naquele sorriso lindo que ela possuía.

- Isso mesmo.

Ela fez um carinho na cabeça de David bagunçando seus cabelos castanhos.

Às vezes eu me pegava pensando sobre como eu queria que minha mãe fosse assim. Não que ela fosse uma megera raivosa, mas eu sentia ela se afastar gradativamente de mim e dos meus irmãos cada vez que eu olhava fundo em seus olhos.

Inclinei meu corpo por sobre a janela do carro para poder ver melhor o que se passava do lado de fora. Várias pessoas saíam de seus carros gritando contra os policiais que tentavam apaziguar a situação.

- Droga! - David exclamou revoltado inclinando o corpo sobre a janela do seu lado e olhando para o asfalto abaixo do carro. - Meu soldado caiu!

Danielle segurava no volante impaciente.

- Depois compramos outro, deixa isso pra lá David.

Quando David virou o rosto para me encarar, era nítido o desespero em seu rosto.

- Mas eu não quero outro, eu quero aquele!

Então sem pensar ou medir as consequências de seus atos, David abriu a porta do carro.

Ainda hoje eu me pego pensando sobre aquela cena, os últimos segundos antes de David abrir a porta do carro, a última vez que eu via em seu rosto um olhar sapeca aventureiro como se aquela fosse uma de suas aventuras.

- David! Volta pro carro! - Danielle gritou desesperada.

David se ajoelhou sobre o asfalto escuro e quente, as mãozinhas procurando pelo chão o soldadinho que ele idolatrava como Jet Li.

Eu pude apenas assistir meu amigo em um ato desesperado procurar por seu boneco como se sua vida dependesse daquela pequena escultura de plástico feita em uma fábrica qualquer de brinquedos.

- Eu não estou achando!

Olhei pela janela do meu lado, a confusão do lado de fora estava aumentando, tomando proporções ao qual a polícia não conseguia dar jeito. Pessoas indo para o trabalho, levando crianças a escola, pessoas com compromissos marcados inadiáveis... Todas elas gritavam por solução como cães raivosos.

Meus olhos desceram até o asfalto, e, lá embaixo no concreto escuro e quente jazia um boneco em forma de soldado com o bracinho de plástico levantado apontando uma arma de plástico para defender sua tropa de plástico e salvar seu país de plástico.

Quando o bonequinho caiu da mão de David, ele rolou por debaixo do carro até parar no meu lado da janela.

- Está aqui! - Gritei.

David abriu um sorriso enorme enquanto contornava o carro correndo com suas perninhas finas, balançando os bracinhos finos no ar em felicidade.

A última vez em que vi aquela expressão feliz em seu rosto, pois quando David chegou para perto da janela de onde eu estava sentado, um carro preto surgiu do nada em velocidade absurda, o pára-choque entrando em contato violento com o corpo dele lançando seu corpo minúsculo para frente fazendo-o rolar alguns metros.

O carro parou.

Danielle gritava.

E eu olhava com choque para o corpo do meu amigo ensanguentado sobre o asfalto.

Naquele dia eu não conseguira desviar os olhos de seu corpo um minuto sequer, assisti a cena inteira de Danielle abraçando o corpo do filho logo depois de David ser declarado como morto. Fiquei uns metros distantes de toda a confusão, eu chorava e tremia muito. Eu não sabia muito bem o que significava a ideia de morte, mas naquele momento a ideia de se estar morto fez sentido. Um policial me abraçava e pedia para que eu não olhasse, mas eu não conseguia desviar os olhos para longe.

Quando finalmente olhei para baixo, vi o bonequinho de plástico aos meus pés. Abaixei meu corpo e o apanhei com cuidado guardando em seguida no meu bolso.

Até hoje sou perseguido por aquela cena em meus sonhos mais profundos e aterradores.

Naquele dia eu me perdi.

Mas bastou apenas um olhar... Um olhar e você pensa o quão fodido está a partir do momento em que o rosto gruda em sua memória como uma tatuagem, porque você sabe que não tem mais volta.

Disforia - InícioOnde histórias criam vida. Descubra agora