Capítulo 20 - Estruturas

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Meus olhos estão ardendo por causa do vento forte que ainda insiste em soprar. Tão tenaz  numa vida tenaz. Sagaz, denso, coberto de energia, longe de letargia. Macio talvez.

Sim, o vento pode ser macio.

Mas ainda continua como antes.

Tenaz.

Em contato com uma vida tenaz.

Sagaz.

Denso.

Coberto de energia.

Longe de letargia.

Macio talvez.

Não; macio com certeza.

Refaço novamente a ordem das palavras, coloco-as na mesma sequência de adjetivos. Assim eu não me sinto vazio ou esquecido, sei lá do que estou falando agora. Deve ser o frio ou a abstinência. Ainda estou aqui na porta de Davi. Já não bato mais, já desisti de implorar, já cansei desse papel humilhante, porém ainda não tive forças para voltar pra pensão.

No lugar disso, ainda estou aqui sentado sobre o degrau da varanda de entrada, com a cabeça escorada na parede branca e sem graça, lutando para não morrer de frio.

Refazendo mentalmente a sequência de adjetivos sobre o vento gelado, ora adicionando outros novos, já devo ter dito egoísta pelo menos duas vezes. Sendo que nem estava na lista original.

Tenaz... Sagaz... Denso...

Minhas mãos ainda estão tremendo, meus dedos doem e eu não sei isso se deve à abstinência ou ao frio que ainda permanece insistente em me assolar.

Escuto o ruído de passos, por algum momento eu fantasio que possa ser Davi, que ele vai abrir a porta e me dar o que eu quero e, talvez, se eu tiver sorte e ele tiver algum respingo de humanidade e decência, ele me deixará entrar para eu me aquecer antes de voltar para Ed. Mal me dou conta de que os passos estão do lado de fora, e eles se aproximam de mim.

Escuto um suspiro decepcionado antes de sentir duas grandes mãos tentando me puxar para cima.

- Anda André, vamos pra casa.

Um calafrio segue subindo pela minha espinha, ainda mais intenso que antes. A voz é de Eduardo.

- Eu estava esperando Davi... – Sussurro como se fosse um segredo, ou talvez eu esteja sussurrando porque estou fraco demais para que minha voz soe alta e normal.

- É, eu sei, ele me ligou – Ed responde.

Ele passa meu braço direto por trás de seu pescoço e luta para conseguir me levar de volta para a picape.

Apesar de os meus sentidos estarem deturpados, ainda sim consigo me sentir um idiota por ter me envolvido numa situação tão humilhante.

- Eu dirijo – tento dizer.

- Cala a boca, André. Cadê as chaves?

Contra a minha vontade, levo a mão até o bolso e entrego a chave para Ed.

Ele liga o aquecedor e eu agradeço em silêncio por isso. Ed olha fixo para a rua, ele não se move e não diz nada, está apenas parado como se seu corpo tivesse ficado para trás abandonado pelo próprio espírito.

Nem preciso ser um gênio para saber que ele está total e inegavelmente desapontado.

Eu também estou extremamente desapontado comigo mesmo, talvez esse seja meu carma. Minhas unhas se arrastam sobre o jeans da minha calça, no momento além da abstinência, também estou quase entrando num surto de nível homicida.

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