Epílogo - Desconstrução

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Sou o que me leva, posso acreditar
Fui além do céu e o mar
Até achar meu caminho
Bem aqui
Sempre esteve na minha frente


- Sei (Tiago Iorc)


Sete Anos Depois

Olhos verdes fitam o mar com encanto, eles estão maravilhados, tentando enxergar o horizonte, estão ajudando o corpo a absorver todas as sensações que o mar causa. Enquanto seus olhos se encantam, sua mão não solta da minha, pois ele confia em mim, ele me quer por perto para o guiar nessas novas descobertas. Não só a mim.

Assim que uma onda se desfaz em espumas em nossos pés, outra já está pronta para se desfazer também. É uma desconstrução lenta prazerosa.

Mas a vida é isso; se desconstruir a cada dia.

Eu me descontruí muitas vezes nesses sete anos, ainda me desconstruo para ajudar a manter esse caminho que tenho trilhado, sempre retilíneo, sempre a minha frente.

Tenho tido uma boa vida desde então, uma vida que eu nunca imaginei ser capaz, uma vida que foi gostosa ter que sonhar sem planejar. Mas ainda há tanta coisa, o caminho não termina ainda, meu futuro eu não construo, eu o vivo.

Minhas fotos estão espalhadas pela casa em porta-retratos, elas são janelas para visualizar minha vida e como ela tem sido intensa, desde o céu até o fundo do oceano. Nessas janelas eu estou sentado em canoas ao lado de Eduardo, flutuando sobre o rio Amazonas, em outra janela nós estamos ajudando animais em seus hábitats no Pantanal.

A janela com o Monte Roraima é especial, foi ali no alto quase tocando um pedaço das nuvens onde eu pedi Eduardo em casamento.

Mergulhamos por rios desde o Acre até o Espírito Santo, encontramos nossos caminhos em cada nova cidade, em cada novo ponto onde os olhos nos enchiam até a alma. Visitamos casarões antigos, vimos um pouco da história sofrida do período de escravidão, dormimos em hotéis com histórias cabulosas, participamos de raves em meio à florestas. E isso não é nem a ponta do iceberg.

Dançamos em incansáveis festivais regionais, desde a festa da polenta capixaba até as festas badaladas do Rio de Janeiro. E quando pensamos que já não havia para onde ir, o mundo também começou a ganhar nossos rastros.

EUA, Canadá, Itália, França, Islândia, Egito... Nos beijamos ao topo de cada novo lugar.

Nós também nos profissionalizamos no que gostávamos, Eduardo lançou alguns livros de diversos gêneros, o último até agora é um livro contando sobre nossas viagens, ele acabou se tornando popular na cultura pop.

Eu me tornei um nadador experiente chegando até a competir em olimpíadas.

Nos perdemos e nos encontramos algumas vezes nesses anos. Cada dia é um novo recomeço, uma nova chance.

Então Lorenzo chegou - o motivo do nome é óbvio. Nós o adotamos um ano depois de nos casarmos.

É a mão dele ao qual eu seguro agora enquanto ele sente seu corpinho se arrepiar com a água gelada que toca seus pezinhos.

Chegamos à Monte Azul há uma semana, mamãe me dera de presente a casa que era de Lorenzo no vilarejo Santa Ângela, onde estamos agora.

Ao olhar para a esquerda, temos uma vista do farol que a noite ilumina as ondas para as embarcações chegarem com segurança.

- Olha papai.

Lorenzo se abaixa e pega uma concha entre a areia.

- A gente pode fazer um castelo com um monte delas, não é? - Ele pergunta com sua voz fina e dengosa.

Me abaixo e pego a conchinha no chão, olho para ele, direto em seus olhinhos verdes. Cinco anos de idade e já sinto o tempo voando, será que meus pais se sentiam assim?

- A gente pode fazer o que quiser - respondo sorrindo. - Quer pegar mais algumas dessas?

Lorenzo assente e começa a olhar em volta, procurando pela areia.

- O farol vai iluminar nosso castelo também? - Ele pergunta agachado na areia.

- O farol vai iluminar todos nós. Sempre que tivermos medo, é para lá que devemos ir.

Me levanto e dou mais uma olhada pelo mar, sei que há tanto por vir, sei que esse futuro ao qual vivo parece doce - sei que é.

Eduardo está sentado no degrau de madeira que dá acesso da nossa casa até a areia. Seu cabelo agora está azul, eu tive a brilhante ideia de pintá-lo alguns meses atrás. Ele está mais velho, mas ainda é o meu Ed, aquele adolescente dentro do corpo de um homem adulto. Ele tem vinte e poucos anos e ainda somos mais apaixonados a cada novo dia.

Ele se levanta e anda até mim.

- Ensinou nosso filho a fazer o castelo onde as ondas não cheguem, não é? - Ele pergunta sorrindo.

- Ainda não cheguei nessa parte.

Eduardo me abraça por trás.

- Isso é lindo - ele diz se referindo ao pôr-do-sol. O céu está coberto por tons violetas e alaranjados, e eu só posso concordar.

Recomeços são imprevistos, são sublimes, lineares. Somos matéria presa nesse constante destino de sentimentos e encontros e também desencontros. Não sabemos quando faremos tal coisa pela última vez, por isso colocar amor em tudo é importante. Amor na despedida, na lágrima, no perdão. Somos inconstantes, raros, estamos sempre em movimento. No fim, o recomeço é como uma mudança na maré.

Não há nada melhor do que estar em casa agora. Fecho os olhos por um instante e aprecio as mãos dele em minha cintura. O amor nos deu esperança para enfrentar nossos fantasmas, o amor também nos deu coragem para sermos pais mesmo sem saber como fazer isso direito.

Até agora estamos indo bem.

Temos Lorenzo.

Temos o mar.

Temos um ao outro.

E temos esperança. No final sempre foi sobre isso. A esperança nos guia e nos ensina. Ela sempre esteve na nossa frente. Sempre me mostrou que a cada novo dia é um novo começo.

E estamos começando.

Disforia - InícioOnde histórias criam vida. Descubra agora