Capítulo 32

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Passei por várias mudanças durante todo esse tempo, como uma grande camaleoa quemuda de pele a todo instante. Deixei de ser uma simples criança e passei a ser umamenina que fazia de tudo para fugir dos hematomas, com uma preocupação quecomeçou ali: salvar minha irmã mais nova. Eu ainda era aquela garotinha que faziatranças no cabelo e sorria para o mundo. Mas o sorriso mudou. Desde muito pequenasabia que ele podia ser bonito. A natureza sempre foi muito bela, mas as pessoas a tornasombria. Por trás do sorriso que dava para a mãe no café da manhã enquanto comia atigela de cereal, havia o medo de toda aquela maldade. E o primeiro abuso veio. E osegundo. E então, mais uma transformação. A transformação que mudou tudo e medividiu em duas. A garotinha do sorriso lindo sujou as mãos de sangue e caneta de tinta.E seu pai parou de existir em sua vida. E os hematomas. E a imagem da irmã sendoabusada bem ao seu lado. Mas o sentimento sempre foi o mesmo. Proteção. ProtegerKatherine de todas aquelas crises que ela nunca entendeu. As crises que ela tinhaquando se aproximava, porque ela poderia descobrir os hematomas. Hematomasesquecidos com o tempo. Levados para o seu outro eu. A garota do casaco vermelhosempre quis justiça enquanto Scarlet só desejava uma outra sociedade, algo fora domodelo imposto. Eu desejava. Eu sempre desejei que tudo fosse diferente. Mas quemsou eu? Quem sou? As personalidades se encontraram e deram um aceno. O mundo,então, desmoronou. Tornei-me Glass. Glass também queria justiça, mas sentia prazer. Eainda lembro dos olhares, dos sorrisos, das mortes e do sangue escorrendo por todo omeu corpo. Lembro de Nicholas e da lista e de como nossos corpos se entrelaçaram etudo foi esquecido por algum tempo. E lembro de Evan e Sophia. Nossas memórias,nossos momentos. Scarlet. A garota do casaco vermelho. E Glass. Glass foi feita devidro e foi quebrada. Porque nunca pude ser duas em uma só. É necessário escolher. Aemoção nunca atingiu a garota, mas Scarlet é feita de um poço delas. Juntas, as coisasnão funcionam. Deixou de ser justiça para ser prazer. Deixou de ser justiça para serpacto e uma lista que até agora não entendi o motivo. E não me importava com omotivo. Eu só queria o sangue. Eu quero o sangue. Quero justiça. Quero muitas coisasao mesmo tempo e não sei o que estou fazendo, mas preciso escolher. Preciso escolherentre a justiceira sem sentimentos que fazia tudo certo e Scarlet, a garota que quermudar o modelo mas sempre foi empurrada pela maré. A garota que agora carrega aslembranças de estupros consentidos. Os juízes diriam que nada daquilo foi crime, éclaro, estava acordada, vendo e fazendo o que me pediam porque eu quis. A garota docasaco vermelho carrega as mortes em suas mãos e leva uma bacia de sangue na cabeça.Ela escuta as vozes, os apelos, os arrependimentos que de nada valem. E carrega oserros. Os erros de uma junção que a fizeram matar simplesmente pelo ato. E princípiosforam perdidos. E as festas. E as mortes. E o sexo. E os abusos. E o vidro que foiquebrado. E o sangue. E o prazer de andar no meio de todo aquele sangue. E Katherine.E Katherine que sempre foi minha irmã, alguns minutos mais nova. A irmã gêmea quetomou toda a dor pra si enquanto eu vestia um casaco vermelho e ia acabar com o malno mundo. Mas o mal pode mesmo acabar? Há muita maldade por aí. Até mesmoScarlet já fez maldades e não teria A garota do casaco vermelho feito também? Sou duas. Sou uma só. Devo ser uma só. Mas não posso escolher. Há um caminho com duasdireções a serem seguidas. Eu escolhi a terceira. Eu escolhi acabar com tudo. Estoujogando toda essa trajetória fora?! Algumas partes que deveriam sumir irão de fato seresquecidas. Mas e as boas? Não haveria um equilíbrio? Você não tem como saber, nãoé? Ficou impossível lidar com as vozes na minha cabeça. Elas gritam e ecoam. Eco.Eco. Eco. Escolho o terceiro caminho, inexistente. Lembro-me da boneca da Garota docasaco vermelho e seus grandes olhos verdes. Sempre quis ter olhos verdes. E ela pôdeter. Todo o meu passado serviu de alavanca para o futuro. Pude morrer tantas vezes.Corri riscos, mas por uma boa causa. Será mesmo uma boa causa? Justiça com aspróprias mãos. Justiça?

Nicholas carrega um saco preto com os casacos. Há apenas um em sua mão. Visto-ojunto com o capuz e coloco o cabelo para frente. Eles saberão na hora certa. Evan vai tero que deseja, o que precisa. Katherine... vai me perder. Serei eu tão egoísta de deixa-lapara trás? Não há outra saída. Scarlet carrega muitas mágoas. Nós nunca tivemoschance de conversar direito sobre os hematomas. Não importa. Ela foi embora. Elanunca deixaria você fazer isso. Quem sou eu? O vazio. Coloco alguns galhos no chão eacendo um fósforo. Arranco o saco da mão de Nicholas e jogo todos os casacosvermelhos na fogueira. Pego o necessário no bolso da calça e transfiro para o casaco quevisto. Estou queimando o meu lado A. O lado B está próximo demais para queimar.Faço a transferência enquanto Nicholas olha para a fogueira inconformado. Não sintoprazer quando as chamas sobem. Não sinto o poder quando ele me beijaincessantemente. Não sinto nada. Porque agora sou mais Scarlet e ela nunca o amou.Assim como Nicholas nunca me amou. Ele é o lado C. Ele encaixa perfeitamente com olado A. E precisa ir embora também. Com ele aqui, nada adiantaria. Ele poderia contar,mas não é isso que me preocupa. Ele sabe de tudo, e nunca viveu nada. Mas sabe dossegredos. E ele fez parte do que preciso jogar na fogueira. 

- Porque você não está expressando nenhuma reação? – ele me chacoalha. 

Escuto um barulho no meio das árvores e uma lágrima desce sem querer. Nicholas aseca. Afasto-o de mim e o beijo. Preciso leva-lo para uma das árvores. Prendo-o aliantes que ele possa fazer algo. Prendo seus braços. Prendo seu corpo inteiro. Olho paratrás. O barulho continua. 

- O que você está fazendo? – agora, ele grita. 

- Tomei uma decisão, Nicholas. Você não pode muda-la. Sinto muito. – pego uma facado meu bolso. 

- Você não vai fazer o que eu estou pensando, né? Me diz que você não está jogandotudo fora? E sua irmã? E tudo pelo que passamos? Olha pra mim, qualquer pessoa quevocê quiser ser agora. Só olha pra mim – ele tenta mexer as mãos para segurar meurosto, mas não consegue. 

Então, faço o que ele pede e deixo que nossos olhares secruzem. Não sinto absolutamente nada. 

– Eu amo você. 

Dou risada. Ele ainda não entendeu. 

- Você não me ama, Nicholas. Nunca amou. Deixei de se enganar. Você amava umaimagem, e ela não existe mais. 

- Você vai me matar, não vai? O que você está sabendo que eu não sei? Evan dissealguma merda pra você? 

- Evan nem sabe sobre mim, Nicholas. Não até agora. E ninguém mais vai. Tenho queescolher, não tenho? Eu entendo isso. E respeito. É por isso que, entre Ela e ela, escolhiser eu. Quem sou eu? Mais nada. – abaixo a cabeça – Eu só não quero mais ouvir asvozes. Eu.. – o desespero vem, as lágrimas vem junto, mas consigo me controlarrapidamente. 

- Scar? 

- Cala a boca, Nicholas. 

- Obrigada por ter me ajudado com a lista. 

- Fizemos um pacto. E não foi Scarlet quem te ajudou. 

- Vamos sair daqui. Vamos conversar. 

- Minha decisão já foi tomada. 

- Espera. 

- Tem certeza que essa vai ser a sua última palavra?O barulho fica ainda mais forte. Não levanto a cabeça porque tenho certeza que ele estáobservando e com medo de chegar mais perto. Ele não pode saber, não ainda. Massaberá. 

- Como assim minhas últimas palavras? Achei que a louca suicida fosse você. Depois detudo. – sinto a raiva e o desafio em sua voz. 

- Não há tempo. Só me entenda. É perigoso demais você continuar. Não o prendi parame impedir de fazer isso. Você está assim porque também vai embora. Diga adeus,Nicholas.Ele não consegue dizer nada. Seu rosto fica branco. 

- Tem certeza que não tem nada a dizer? 

Não sei como e nem conheço o motivo, mas é como se a capa de Nicholas fosse tirada.Porque seus olhos apagam e reacendem com um brilho diferente. E os olhos estãomarejados. Então sei que ele está pronto. E eu também. 

- Nos vemos do outro lado, Isabelle. – ele diz. 

- A justiça foi feita. – eu digo enquanto abaixo o capuz. 

Os soluços angustiados de Nicholas são silenciados pelo grito de Evan Scott quandonossos olhos se encontram e ele grita meu nome segurando a minha boneca emminiatura – a primeira pista que obtivemos juntos. 

Scarlet. Adeus, Scarlet. Adeus,Garota do Casaco vermelho. Adeus, garotinha. Adeus, Glass. Adeus. Seguro uma facaem direção a meu coração e a outra em direção ao de Nicholas. E as enfio nas peles. 

Tudo acaba em um passe de mágica.

A Garota do Casaco VermelhoOnde histórias criam vida. Descubra agora