Zé raramente colocava o colete à prova de balas. Era um incômodo desnecessário para um trabalho tão pacato. Mas sua mulher sempre enchia seu saco – não só nesse aspecto – pedindo, insistindo, mandando ele vestir a proteção. Na cabeça dela, Zé era um segurança estilo capanga do Pablo Escobar, mas ele sabia muito bem que era simplesmente um porteiro com um salário acima da média. Ele também raramente andava com a arma no coldre, pendurada no cinto, outro acessório chato de se carregar por aí, tanto pelo peso extra puxando o cinto para baixo quanto pelo desconforto de sentir algo tão mortal encostado no quadril. Neste dia fatídico ele havia deixado sua pistola numa das gavetas de sua mesa, com o cano virado para longe de seu corpo, para o caso dela ter livre-arbítrio. Mas vestira o colete. Um dia ou outro sentia mais o peso das palavras da mulher e o vestia, mesmo que ela não fosse saber, pois de qualquer maneira ele sempre lhe dizia que vestia o maldito colete. Nesse dia específico sentiu um formigamento subindo pelos braços peludos quando abriu seu armário e viu a armadura preta pendurada ao lado da camisa. Supersticioso que era, não resistiu a um sinal tão forte e vestiu a proteção. Lembrava-se de quando sua mãe lhe dizia para sair com guarda-chuva. "Vai chover, menino!". Ele ignorava, é claro, e depois tinha de aguentar os sermões enquanto sua velha lhe dava sopa na boca para curar a gripe forte que ele pegou por ficar molhado muito tempo.
Não era tão ruim quanto o de um policial, era algo mais fino, como uma daqueleas camisetas apertadas de esportistas, que vestiam os corpos, mas ainda deixavam os músculos definidos bem a mostra. Ele não gostava exatamente por isso, pois era apertado demais e ele não tinha músculos para mostrar, definindo somente seus pneuzinhos, parecendo uma mortadela amarrada. Sentia-se um pouco sem ar com aquilo o apertando e era desconfortável para sentar, além de ser bem mais pesado do que pareceria pela finura do tecido. Como tudo naquele lugar, aquilo era fruto de alguma tecnologia indisponível para as pessoas incautas andando lá em cima.
Agora estava obviamente grato pelo desconforto de utilizar aquela camisa de compressão que, muito provável, salvou sua vida. Quando aquele maldito loiro o enganou e mandou bala em seu peito, tudo que deu tempo de pensar foi na sua mulher. Não de alguma maneira romântica, somente pensando o quanto ela seria insuportável se soubesse que estava certa. Depois disso foi como ser atropelado por um caminhão bem pequeno e fino - do tamanho de uma bala talvez? - e uma escuridão completa quando seu cérebro pensou estar morto, esquecendo-se do colete salvador. As surpresas não pararam por aí, é claro. Além da surpresa agradável de se encontrar vivo, agora um rosto conhecido o ajudava a voltar à vida. Conhecido, mas completamente inesperado. Não o via já há o que? Onze anos. Desde que deixou o último emprego, no prédio onde o adolescente, agora um adulto esfarrapado, morava. Guido. Zé tinha facilidade de se lembrar de rostos e nomes, uma habilidade útil em sua profissão, mas Guido não era uma cara difícil de se esquecer, não depois do que ele fez.
O que você está fazendo aqui? - falou com um dedo raivoso apontado para a cara incrédula do idiota à sua frente.
- Ahnnn... - foi o máximo que Guido conseguiu responder.
- Que merda de noite! - estorou, com uma raiva genuína.
- Você não tem ideia.
Olhou para o moleque mimado parado ali. Ele não era mais um adolescente, era agora um homem, apesar de não um dos melhores exemplares. Zé massageava o lugar aonde a bala havia se arrebentado contra seu peito.
- Responda. O que você tá fazendo aqui? O que você tem a ver com aquele outro cara?
- É uma longa história, Zé.
- Eu tenho tempo.
- Mas eu não. Tenho que ir, entrei no lugar errado. - reparou na roupa do homem pela primeira vez. - Você é porteiro aqui agora?
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Maldito Telemarketing!
Mystery / ThrillerGuido levava uma vida normal até ser confundido por um tal de Paulo. Desde então, milhares de ligações diárias transformaram sua rotina num inferno. Por mais que Guido chore, implore e ameace, as diversas ligações não param e sua vida começa a tomar...