A imagem ficou guardada por um tempo nas suas retinas, como se o cérebro a tivesse deixado ali por um tempo até conseguir entender alguma coisa e depois disso acharia algum lugar para arquivá-la. A cara de desespero de Margarida, suas mãos amarradas por uma corda, as mãozorras desproporcionais do gorila que a agarrava ...
O cara parecia ser bem alto, mas impressionava pela largura. Era de um branco amarelado, careca como uma bola de ping pong, a pele grossa como couro de jacaré. Tinha um canino de ouro que ficou aparente quando ele sorriu ao agarrar a flor. Uma cicatriz ia reta do seu supercílio esquerdo até quase seu lábio superior. Guido havia percebido tudo isso nos dois segundos em que pôde ver alguma coisa. Tamanha foi a impressão que lhe causou o sujeito. Parecia saído de um filme do James Bond.
Não havia conseguido ver nada do banco da frente. Os vidros eram escuros, a rua era mal-iluminada e a confusão no banco traseiro havia tomado todo seu foco. Se houvesse, porém, conseguido ver o motorista, não haveria adiantado de nada. Não o reconheceria. Afinal, não o viu sentado no bar – assim como todos – e portanto não viu o ódio transparente em sua face. Um tipo de face que denunciava que no mínimo um sequestro iria acontecer. Às vezes é importante prestar atenção nas pessoas ao redor.
Quando o choque passou e suas pernar pararam de tremer, Guido correu novamente, voltando para onde ele havia já saído e voltado. E saído de novo.
- Durex, Durex, Durex.
Ia murmurando pelo caminho, como que para não esquecer, incapaz de falar mais alto que um sussurro. Sentia os membros formigando, os pêlos arrepiados, o suor frio escorrendo, um enjôo incômodo e um nó na garganta.
Chegou à porta do bar quase vomitando. As pessoas o olhavam como se fosse mais um bêbado que perdeu o limite. Guido ainda não conseguia falar, portanto tentava explicar com os olhos sua situação. Não é algo fácil de se fazer e ele, compreensivelmente, não foi bem-sucedido.
Ainda transtornado, entrou no bar procurando seu amigo. Olhava de um lado para outro, como um peixe que deu um salto evolutivo, saiu andando do mar e ao olhar para os lados pensou: "E agora?". Não via a careca morena de Durex em lugar algum. Foi de mesa em mesa, depois foi ao banheiro, ao balcão do bar, até deu uma olhadinha no banheiro feminino, mas nem sinal do meganha.
Saiu do bar, talvez mais transtornado do que quando entrou, afinal confiava no amigo para resolver sua situação calamitosa. Sentiu o ar frio da noite, maximizado pelo suor gelado que fazia a camisa colar-se ao corpo. Estava sem o paletó. Lembrou-se que, em um arroubo de cavalheirismo, o dera para Margarida. Ah, Margarida! Imaginou todo tipo de coisa horrível que poderiam fazer com ela, principalmente o brutamontes com o dente de ouro, e o seu estômago deu cambalhotas, uma pra frente, outra pra trás.
Sentia as pernas formigando, os dedos das mãos tremendo de leve. Precisava fazer alguma coisa! Não aguentava o sentimento de impotência se instalando no seu corpo, como se caísse num lago com uma rocha amarrada nos pés. Não sabia o que fazer, portanto fez a primeira coisa que lhe veio a cabeça. Ligar para a polícia? Não. Correu. Não por muito tempo, pois correu em direção à rua e, por mais pacata que ela fosse àquela hora, um carro vinha exatamente na sua direção. Ele só percebeu isso quando já estava rolando sobre o parabrisa, depois se arrependeu de correr quando já estava rolando sobre o teto e não conseguiu pensar em mais nada quando caiu de costas no chão.
Ficou alguns instantes – para ele, horas – com os olhos fechados, deitado no asfalto duro e irregular, com algumas pedrinhas pontudas e inconvenientes o espetando as costas.
- Pura que pariu, puta que pariu.
Ouviu alguém dizer ali perto. Começou a mexer-se devagarinho, tentando sentir cada parte do corpo, centímetro por centímetro, torcendo com toda sua vontade para tudo estar funcionando perfeitamente. Mexeu os dedos dos pés. Respirou aliviado. Foi subindo, mexeu o pé, o tornozelo, o joelho. Tudo doía, mas os ossos pareciam estar inteiros e no lugar. Conseguia respirar direito, apesar de com um pouco de dificuldade. Suas costas estavam um tanto travadas, como ele pode sentir ao se virar de lado com um longo e fraco "Aaaiiii". Ainda sem coragem de abrir os olhos, foi tentando ficar de quatro, esquecendo todas as recomendações médicas de não se mexer após sofrer um trauma substancial, como, por exemplo, ser atropelado.
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Maldito Telemarketing!
Misteri / ThrillerGuido levava uma vida normal até ser confundido por um tal de Paulo. Desde então, milhares de ligações diárias transformaram sua rotina num inferno. Por mais que Guido chore, implore e ameace, as diversas ligações não param e sua vida começa a tomar...