Sentia como se tivessem aberto sua cabeça e mexido no seu cérebro, mas não era com ele que isso estava acontecendo. Era com a pessoa na sua frente, aquela a quem ele veio ali salvar, a pessoa que o fez se apaixonar em algumas poucas horas. Pessoa? Pessoas não têm fios e chips na cabeça, pelo menos Guido não se lembrava de nada disso nas aulas de biologia. Para ser justo, ele não se lembrava de quase nada das aulas de biologia, mas tinha certeza de que se lembraria de algo assim. Olhou para o rosto de Mr. Altmann que ainda o segurava por um braço e viu culpa e tristeza no cenho envelhecido do homem. No de Adônis ele viu algo ainda mais inesperado: compaixão. O espião sabia a dor pela qual seu rival passava agora, pois ele mesmo devia ter passado pela mesma decepção. Seria essa a palavra certa? Era cedo ainda para dizer, o sentimento ainda era uma bola de fogo indefinido queimando invisível dentro do peito. Palavras ainda não tinham a capacidade de descrever esse fogo.
Mr. Smith agora usava o pequeno aparelho preto com a saída USB metálica pendurada ao final de um fio acoplado no topo do gadget, bastante parecido com um celular. Encaixou a pecinha metálica em algum lugar ali dentro da cabeça da moça, e ficou olhando para a tela, com um sorriso ávido e ansioso. Guido olhou para o rosto de Margarida. Lágrimas escorriam lentamente pelas bochechas bronzeadas da robô. Não era dor, era tristeza, ela olhava para o homem a quem tinha se declarado mais cedo e chorava por ele ver o que ela era de verdade. E a cara dele não ajudava a acalmá-la, a cara de alguém que vê um alienígena e não sabe se foge ou se o ataca.
Guido desvencilhou-se dos braços que o seguravam, já não havia mais necessidade. Não se poderia dizer que estava calmo, mas pelo menos anestesiado ele estava. Ficou observando aquela cena com um distanciamento estranho, como uma projeção astral, ainda tendo dificuldade em entender as voltas que a vida deu naquela noite.
Não demorou muito até Mr. Smith desconectar seu aparelho do cérebro da moça, rindo com satisfação. Fechou o crânio de Margarida como se fosse o porta-malas de seu carro, juntou os dois pedaços de pele em cima da cabeça, que ficaram no lugar, mas sem estarem grudados, afinal, não se deu ao trabalho de suturar. Guido percebeu pela primeira vez a total ausência de sangue.
- Pronto. Tudo isso para apenas cinco minutos de trabalho de verdade, não é? - riu de novo – Agora, vamos começar o gran finale. Como você está se sentindo, Paulo?
Alguns segundos se passaram antes de perceber que Paulo era ele.
- Não muito bem.
- Entendo. - falou com uma compaixão fingida – Eu realmente te entendo, Paulo. Se tivessem me usado dessa maneira eu também estaria bastante confuso. Mas logo depois da confusão viria a raiva. A fúria!
Guido sentiu. Uma fúria indefinida revelando sua cara feia dentro dele, ainda sem um alvo para despejar seu hálito odioso.
- No meu caso – continuou Smith – eu estaria com muita raiva desse velho aí. - apontou para Mr. Altmann.
O cientista parecia ter envelhecido dez anos em cinco minutos, as rugas profundas acentuando sua tristeza, o olhar cabisbaixo aceitando a culpa toda.
- Desde que eu o conheço, ele brinca com os sentimentos e a vida das pessoas dessa maneira. Ele acha que seu intelecto é desculpa para ele agir como se fosse superior a tudo e a todos – a raiva do ex-funcionário era bem verdadeira –, mas ele não é. Por mais que ele preveja o futuro, ele não viu o que está prestes a acontecer aqui.
- Ah, eu vi o que vai acontecer, John. E eu te avisei. Agora é tarde demais para desistir. O final já está escrito.
A risada megalomaníaca de Mr. Smith ecoou pelo salão enorme.
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Maldito Telemarketing!
Mystery / ThrillerGuido levava uma vida normal até ser confundido por um tal de Paulo. Desde então, milhares de ligações diárias transformaram sua rotina num inferno. Por mais que Guido chore, implore e ameace, as diversas ligações não param e sua vida começa a tomar...