Melinda olhava inquieta o enorme pedaço de bolo. Os olhos enormes, oblíquos, quase invertidos, encaravam pela milésima vez um Eduardo arrependido, sentado a sua frente. Nos últimos dois anos talvez aquele fosse o oitavo pedido de desculpas. Estava cansada, mas parece que, se o coração não estiver sangrando a vida nāo tem o menor sentido. Comia o bolo devagar, mas na verdade ela nem tinha certeza de que gosto ele tinha. Eduardo disparou a falar:
- Eu nāo queria ter te dito aquelas coisas. Eu sinto muito, eu só nāo sei o que fazer com isso, como lidar com isso...
- Te agradeço por ter estragado meu ano-novo. Nāo que ele tivesse alguma expectativa de ser incrível, mas...
Alguns dias antes do ano-novo, eles haviam discutido pelo telefone, Eduardo disse coisas horríveis ao ser pressionado, começando por "nāo gostar de Melinda o suficiente para assumir qualquer coisa", passando por coisas infinitamente piores. Melinda começou a chorar no meio da rua e decidiu que estava tudo acabado. Passou um ano novo de merda num lugar horrível de quente. O dele nāo foi dos melhores: em casa, sozinho com uma taça de vinho cara. Um charuto ou dois, e foi isso. Moravam na mesma quadra, iam aos mesmos lugares, viam as mesmas pessoas, era impossível nāo se encontrar. Nestes casos, Melinda falava apenas o básico com Eduardo. Um dia, ela desceu do apartamento e por uma coincidência ele estava passando de carro pela quadra e abaixou o vidro ao vê-la:
- Melinda, a gente nunca mais vai conversar?
Ela olhou pra ele, abaixou a cabeça e fez sinal negativo, continuou andando, devagar pois só sabia andar de saltos enormes, que impossibilitavam qualquer tentativa de andar mais rápido.
- Eu sou uma anta burra de nunca ter um tênis nessas horas, pareço uma idiota andando - ela disse baixinho pra ela mesma.
- Por favor Melinda, um café. Eu sei que você ama bolo... aceita por favor!
Ela parou de andar:
- Eu vou pensar tá bom?
Passaram-se algumas semanas, eles continuaram se trombando, o café com bolo saiu.
- Você é linda, Melinda. Eu te amo. É isso...
- Mas...
- Eu nāo posso ficar com você, você sabe disso. A gente sempre soube disso.
Ela parou de comer o bolo. Levantou os olhos para ele:
- Entāo porque você me chamou aqui?
- Porque eu também nāo sei te deixar ir embora.
- É melhor a gente nunca mais conversar sobre esse tipo de assunto. Vai ser inevitável te ver o tempo todo: mesmo bairro, mesma galera, mesmos locais. Só se um de nós mudar de planeta.
- Você me entende, Melinda?
- Eu entendo. Só nāo aceito mais.
Continuaram conversando amenidades após o bolo: vida, trabalho, dinheiro, etc. Nāo era que Eduardo não a amasse de fato, é que existiam outras coisas em jogo. Nāo era, nem de longe, o melhor momento para ficar com Melinda. Talvez outra hora, outro ano, se ele a tivesse conhecido antes ou depois. Ele pensava que a pessoa certa havia aparecido no momento errado. Nāo queria se desfazer dela, mas também não era justo mantê-la com ele dessa forma. Ele estava triste de ser uma pessoa insuportável, porém era necessário. Ele pensava que, assim, ela desistiria dele. Nunca lhe passou pela cabeça em ser sincero e dizer que nāo daria certo logo de cara. Talvez ele fosse um grande idiota. As pessoas parecem ter uma grande dificuldade de dizer não quando o ego delas está em jogo. Apesar de amá-la, também era cômodo - e bastante interessante - ter alguém saltitando ao seu redor como uma fadinha, mesmo tendo a certeza de que jamais ficaria com ela. Pelo menos nāo agora.
- A gente se cruza por aí?
- É tudo que eu mais quero!
Ele a abraçou na calçada e nāo foi retribuído. Ela revirou os olhos enormes, cansada. Colocou as māos nos ombros dele, como se o empurrasse de leve. Eduardo era um cara enorme, de modo que, quem visse a cena de fora acharia engraçado, ele curvado para abraça-la e agora para poder olhar o rosto dela. Ela suspirou, como se fosse um ultimo ato pra nāo chorar, porque, no fundo ela sabia que ele nāo merecia:
- A gente se cruza por aí.
E o deixou lá. O salto ecoando pelo paralelepípedo, em passos pequenos e rápidos. Sabia que ainda se cruzariam muito por aí. Só nāo sabia o que iria fazer com isso.
YOU ARE READING
O Guia Prático Para Adultos Sem Prática
RomanceSer adulto é uma bosta. Tem boletos, cigarros, decepção amorosa, gente louca. E tem o romance de Melinda e Eduardo. Mas no fim, a prática leva a perfeição (ou não).