Chandelly estava deitada no chão do banheiro, só de camiseta, as pernas para cima, apoiadas na porta trancada. Estava muito calor, os cabelos pretos escorridos espalhados pelo chão, uma gota de suor escorreu de sua testa e parou no piso azul claro. O banheiro era seu único momento de paz, o momento de poder fumar um cigarro sossegada. O momento de não mais ser a filha perfeita da família perfeita. Mais um trago. Se orgulhava de fazer arcos perfeitos ao soltar a fumaça, uma de suas maiores habilidades.
Sabia que estava sozinha em casa, sabia que era adulta. Mas preferia se trancar no banheiro para fazer isso. Era sua bolha. Normalmente fumava três ou quatro cigarros enquanto olhava a rachadura no teto do banheiro. Todo dia gostava de ver se tinha aumentado. Chandelly era dentista, de uma família de dentistas, todo mundo muito bem sucedido e perfeito, logo, não esperavam menos dela. A garota exemplar, que nunca deu trabalho, boazinha. E dentista. Um paradoxo para alguém que fuma. Na frente dos outros não bebia, não tomava café. Se saísse na rua, a primeira parada era um café com cigarros. Estava cansada. Tinha 25 e, quando lhe perguntavam como tinha sido sua adolescência ela mal conseguia responder de tão tediosa que havia sido:
- Ah eu sempre morei aqui neste bairro, conheço todo mundo. Aos 14 ganhei uma scooter. É isso.
Os pais sempre foram muito ambiciosos e sua família tinha ótimas condições. Ela começou a trabalhar cedo, como recepcionista no consultório dos pais, mesmo sem precisar, para dar valor ao dinheiro. Na época do vestibular, foi tudo muito simples:
- Eu queria fazer Arquitetura e trabalhar com algo criativo! - disse no meio do jantar. Os pais e o irmão olharam para ela abismados.
- Mas Chandelly, todo mundo aqui é dentista. Queremos que você toque o consultório no futuro. Da onde você tirou a ideia de que quer ser Arquiteta?
Ela estava munida com uma pasta de desenhos, todos muito bons:
- Bem, eu tenho esses desenhos, o professor disse que eu sou boa então...
Abriu a pasta: desenhos, recortes e montagens de decoração e muitas cartelas de cores. Ela era realmente boa.
- Não! - sua mãe disse, ríspida - Você vai ser dentista. É isso. Onde está o livro de inscrição da faculdade?
- Eu já enviei. Coloquei Arquitetura... - ela disse num tom quase inaudível.
Silêncio sepucral.
Ela foi obrigada a se inscrever em outra faculdade, Odontologia. Passou nas duas, e ainda tinha esperança de fazer Arquitetura. Viu seu sonho ir embora quando foi fazer a matricula e precisou levar os pais. Chorou muito no caminho de volta para casa. A vida era um grande caminhão de lixo e Chandelly estava deitada na calçada pronta para ser recolhida.
- Você vai gostar de ser dentista, Chandelly. Uma profissão bonita dessas, e nós já temos nome, você vai ganhar muito dinheiro!
Ela não respondeu.
Fez a faculdade e trabalhava todos os dias no consultório. Trabalhava muito. Por ser filha, poderia parecer que ela tinha algum privilégio, mas na verdade ela era a primeira a chegar a última a ir embora.
Queria morar sozinha, mas Deus o livre abandonar os pais. Quando tocou no assunto, quase foi massacrada:
- Mãe, eu já sou adulta!
- Só pode sair de casa depois de casar, Chandelly! O que vão falar de você? Você sabe que a cidade é pequena!
Sempre sem forças para discutir, quando acontecia isso ela simplesmente olhava para o nada, ou pegava o carro para dar uma volta e fumar sossegada. Se você olhasse para os olhos de Chandelly, veria o vazio de uma vida sem graça e controlada por pais super-protetores. Ela tentou a vida toda, mas depois de entrar na faculdade desistiu e se tornou um pouco apática. Sabe aquela pessoa que tem muito potencial? Potencial para chamar atenção para si, ser dona da própria vida, uma pessoa com toda a beleza do mundo. Mas aí alguma coisa dentro dela havia sido apagada... nem mesmo o namoro com Eduardo, engatado alguns meses antes, trouxera alguma vida para ela.
Tinha se passado quase uma hora que ela estava trancada no banheiro, quando ouviu um barulho. Continuou calma deitada no chão enquanto apagava o cigarro no próprio braço.
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O Guia Prático Para Adultos Sem Prática
RomanceSer adulto é uma bosta. Tem boletos, cigarros, decepção amorosa, gente louca. E tem o romance de Melinda e Eduardo. Mas no fim, a prática leva a perfeição (ou não).