Melinda

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Acendeu mais um cigarro. As unhas enormes, sem esmalte, estavam amarelas, mostrando claramente que ela não era uma fumante de ocasião. O cabelo ondulado preso num coque alto, vários fios caindo no rosto. Estava um frio de rachar e ela usava um casaco de pelúcia branco. Precisaria de luvas se quisesse continuar parada na calçada por mais tempo sem congelar os dedos, mas a vontade de fumar era mais forte. Estava ali pensando em como sua vida era uma grande farsa e no quanto ela era uma impostora.

Aprendeu a ler sozinha, aos 4, quando um de seus três irmãos se cansou de ler um gibi para ela pela sexta vez e disse:

- Você não conhece as letras?

- Sim, conheço.

- Pois então é só juntar as letras! - entregou o gibi colorido nas pequenas mãozinhas de Mimi.

Levou cerca de 40 minutos para "juntar as letras" e entender o que estava escrito. Depois disso começou uma coleção de livrinhos e gibis. Família orgulhosa. Quem se alfabetizava praticamente sozinha com um gibi velho? O tempo foi passando, as notas foram ficando melhores. Bolsas de estudo, certificados. Uma criança prodígio. De repente, assim como veio, sua vasta inteligência foi embora e ela se tornou mais uma aluna mediocre do ensino médio. Nem mesmo sabia o que faria de faculdade. Decidiu por jornalismo. Gostava de escrever, pensou que seria ótimo trabalhar num jornal. Passou um ano e meio na seção de óbitos, e insistiu muito para realmente poder escrever alguma coisa. A editora da coluna policial resolvera lhe dar uma chance. Ela era muito boa, mas o que tinha de boa tinha de preguiçosa: adorava procrastinar. Tudo era uma dificuldade para terminar e isso atrapalhava demais a sua vida. Quando percebia, a manhã toda já havia passado e ela ficou vendo cachorrinhos na internet, desceu pra fumar oito vezes, parou pra tomar café outras cinco.

- Melinda, eu só não te mando embora porque na hora que é pra pegar no tranco você pega e entrega textos infinitamente melhores do que os dos seus colegas, mas você tem que parar de ser tão morta, pelo amor de Deus! - sua chefe repetia isso quase uma vez por semana.

- Vou tentar melhorar...

Aí ela focava uma semana ou duas, parava de comprar cigarro, desligava o celular. Rendia como nunca. Daqui a pouco voltava a procrastinar. Um ciclo sem fim.

- MIMI! Está todo mundo louco te procurando lá em cima!

Melinda voltou à realidade, jogou o toco de cigarro no chão e apagou com a ponta da bota.

- Mas eu já entreguei as pautas da semana, qual é o problema? - esfregou as mãos congeladas.

- Você vai ter que subir pra saber, eu não posso contar!

- Só me fala se eu to muito ou pouco lascada!

- Um pouco lascada porque deve ser a oitava vez que você desce pra fumar hoje, mas acho que num geral você vai gostar!

Subiram correndo, o elevador parecia demorar uma eternidade. Quando passou pela recepção do jornal todos a olhavam.

- Kiko, você disse que eu estava só um pouco lascada... - ela olhou para o amigo e falou baixinho.

Entrou na sala da chefe de redação pronta para o pior.

- Melinda, você é a funcionária mais preguiçosa que eu tenho, mas infelizmente é também a mais talentosa. Sua série de reportagens sobre as crianças desaparecidas foi indicada a um prêmio. Parabéns!

- O que?

- Olha, eu não sei mesmo qual é o seu problema, eu realmente queria te ajudar... porque você é boa. A hora que você senta pra pesquisar e escrever, nenhum veterano aqui te supera. Eu entendo porque você passou um ano e meio na parte de obituário, porque todo mundo aqui sabe que você só trabalha quando a água bate na bunda. Eu estou muito orgulhosa de você, falo de coração, e tá todo mundo muito feliz, há anos não somos indicados a prêmios. Só que você precisa se ajudar se quiser sair daqui e escrever num jornal realmente grande, entendeu?

- Sim... - ela parecia ter ficado offline, como sempre acontecia quando surgia esse tipo de situação.

- Por favor Melinda, eu preciso de verdade que você foque! Eu já estive no seu lugar, trabalhando com um monte de homem, com um monte de velho, comi muita merda pra ser chefe. Esse povo não acredita na gente e a gente vai se sabotando. Me ajuda! Te ajuda, porra!

- Então, eu não sou uma fraude? Eu realmente escrevo bem? - ela parecia ter retomado a consciência.

- Não. Você foi indicada a um prêmio nacional, mesmo me entregado tudo em cima da hora. Acho que isso diz tudo! Vá pra sua mesa e pense no que eu disse! Parabéns novamente!

Melinda voltou para a sua mesa e abriu a pasta com fotos de cachorrinhos.

- Muito merecida sua indicação, parabéns... - Virginia disse sem emoção.

- AAAAAAAAA DESDE QUE ESTOU AQUI NUNCA FOMOS INDICADOS A NADA! TO EMOCIONADO COM ISSO! - Kiko abraçou Melinda.

- Quem sabe agora você resolve trabalhar... - Virgínia continuou digitando sem olhar pra ninguém enquanto disse isso.

- Quem tem talento, tem, né querida?! - Kiko continuava pendurado no pescoço de Mimi.

Melinda sorriu. Passou anos da vida se sentindo uma farsa. Tinha preguiça de se meter em fofocas, puxar o saco, puxar tapete. Tinha preguiça das pessoas e era um paradoxo muito grande ela er escolhido jornalismo por causa disso. Só fazia o que precisava ser feito e realmente acreditava que isso era o suficiente para ser reconhecida. E foi. Abriu mais uma foto de filhotinhos. Tudo agora fazia sentido. 

O Guia Prático Para Adultos Sem PráticaWhere stories live. Discover now