Após ser indicada a um prêmio nacional de jornalismo, Melinda achou de bom tom começar alguma coisa para tratar o excesso de procrastinação, levando à sério as palavras de sua chefe. Ainda sonhava em trabalhar em um jornal grande e renomado, e, sabia que seu jeito preguiçoso duraria muito pouco num ambiente editorial mais competitivo. Nem o talento nato a salvaria. Para poder se concentrar utilizava do método Pomodoro que, consiste contar 25 minutos de trabalho ininterrupto e 5 minutos de pausa. Usava um timer de cozinha para isso, o que começou a deixar as pessoas no jornal completamente loucas:
- Que barulheira é essa? Eu não consigo trabalhar assim! - reclamou Virginia.
- É o meu alarme anti-procrastinação!
- Você nunca ouviu falar de fone de ouvido? - Virginia colocou a cabeça por cima do monitor, furiosa.
- AI DESLIGA ESSA MERDAAAAAAAA! - Kiko reclamou do outro canto da sala - É ESSE TIQUE-TAQUE O DIA INTEIRO E DEPOIS O ALARME, DESLIGA-A-A-A-A-A!
- Caralho, vocês reclamam hein...
- Ninguém merece isso aí, Melinda, desliga logo!
- Pronto, pronto...tô desligando...mas eu preciso do alarme pra me concentrar, como que faço agora?
- Joga no Google, como todo mundo! E se fizer barulho, põe os fones, senão eu vou fazer você comer esse timer pelo nariz! - Kiko estava visivelmente irritado.
- Ok, ok... a voz do povo que manda!
Começou a procurar um alarme que pulasse na tela e não fizesse barulho, demorou um pouco mas encontrou. Poderia ouvir música ao mesmo tempo e não incomodar as pessoas e ainda assim ser produtiva. Respirou fundo: "AGORA VAAAAI" e começou a digitar uma das pautas da semana. Digitou um parágrafo. Olhou o timer. Respirou. Tomou água.
- Acabou a criatividade... adoro quando isso acontece... - suspirou preocupada.
Olhou o maço de cigarros. Se descesse para fumar antes de dar os cinco minutos de pausa se sentiria uma fracassada.
- Sem fumar, Melinda, você consegue, vamos lá.
Pensou em abrir a pasta de fotos de cachorrinhos. Também seria burlar o método de trabalho, poderia fazer isso na pausa.
- Sem cigarros e sem cachorrinhos. Pensa na pauta, Mimi, você consegue garota!
Começou a suar no buço. Sempre acontecia isso quando ficava nervosa. Precisava aprender a escrever com programação e ordem e não deixar tudo para última hora como vinha fazendo toda a sua existência. Não era assim tão fácil mas precisava provar a si mesma que conseguiria. Começou a digitar palavras aleatórias pra ver se a criatividade aparecia.
- Digitando com alegria... eu amo meu trabalho... lá lá lá - começou a cantarolar.
- A pessoa é indicada a um prêmio e fica assim, louca na droga! - Virginia falou num tom bem audível. As pessoas na sala riram.
- Virginia! Virginiaaaa! - chamou baixinho por cima do monitor. Virginia não ouviu. - VIRGINIA!
- Quer me matar, inferno? O que você quer? Eu to tentando achar as melhores cores aqui...
- Preciso da sua ajuda!
Ela levantou e foi até a mesa de Melinda:
- Que!? - falou com desdém.
- Como você faz... para se concentrar e focar nas coisas que tem que fazer?
- Eu nunca pensei nisso... acho que de inicio eu deixo o celular na bolsa desligado. É difícil na primeira semana mas depois vc acostuma. Me ajuda bastante. E depois, sei lá... organizo o que precisa ser diagramado e colorido primeiro, então separo 5 ou 6 metas plausíveis para o dia e me comprometo a ir embora com elas terminadas. Se eu terminar antes, me dou ao luxo de ficar vendo fofocas na internet até dar o horário de ir embora. Basicamente é isso... Você tá com algum bloqueio?
- Yep.
- É que eu não preciso escrever, então acho que pra mim é mais fácil...eu não sei o que eu faria no seu lugar...deixa eu ver o que você está fazendo!
Pegou o caderno de anotações de Melinda. Ela fazia grande parte do trabalho à mão antes de passar para o computador, em especial se fosse algo investigativo. O caderno era uma bagunça, mas ela conseguia se virar e entender.
- Ok, acho que não consigo ajudar! Que bagunça de caderno... deve ser por isso que você é um gênio. Dizem que as pessoas mais inteligentes são assim, desgrenhadas da cabeça mesmo.
- Você também é inteligente e é organizada, ué.
- Até parece que você desconhece meus métodos de emagrecimento pouco ortodoxos... - ela falou com muita naturalidade enquanto olhava para a tela, como se não fosse nada.
- A gente ainda vai conversar sobre isso!
- Cala a boca, gorducha, to tentando te ajudar aqui... - ela riu.
- Você é muito vadia, aff!
- Ok falando sério agora... eu acho que você tem que descer, fumar, pegar um café, fazer o que você faz de melhor!
- Eu não quero mais procrastinar!
- Olha, Melinda, eu acho que isso vem com o tempo. Não se force a virar a louca da organização de um dia pro outro.Tenta estabelecer só duas metas pra hoje, se você conseguir, pode coçar a periquita até o fim da tarde. Tem que ser gradual! Boa parte do seu trabalho da semana está nesse caderno imundo que você carrega. Tenta organizar duas coisas nele hoje. Fim.
- Você acha? Você acha que consigo?
- Eu acho, de verdade! - largou o caderno de Melinda e voltou para sua mesa. - Você é uma vaca e sabe disso, mas você é boa! Use isso a seu favor.
Melinda desceu com o maço de cigarro na mão. Atravessou a rua, comprou um sonho de doce-de-leite. Escreveu a pauta toda enquanto comia na padaria. As vezes precisava ver outros ares para render. Talvez isso a ajudasse a procrastinar menos. Conseguiu escrever dois textos, subiu, digitou. Ficou satisfeita o resto da tarde. Dever cumprido.
Virginia mandou um emoji piscante no chat: espero ter ajudado!
Quando só sobraram elas no andar e Virginia foi ao banheiro, Melinda aproveitou para deixar um sonho de creme na mesa da inimiga, com um bilhete:
"É pra comer, viu, oh vagabunda. Obrigada por me desbloquear hoje."
Juntou a bolsa e foi embora rapidinho, antes dela voltar.
Virginia voltou e viu o sonho, queria muito comer, mas lhe faltava coragem. Sentou embaixo da mesa, a culpa de alguém saber que ela come era algo maior que qualquer coisa:
- Só uma mordidinha! - e saboreou o doce, sem pensar em algo ruim depois, como em muitos anos não acontecia.
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O Guia Prático Para Adultos Sem Prática
RomanceSer adulto é uma bosta. Tem boletos, cigarros, decepção amorosa, gente louca. E tem o romance de Melinda e Eduardo. Mas no fim, a prática leva a perfeição (ou não).