Levantou a cabeça do vaso sanitário, os olhos lacrimejando. O esmalte dos dentes já comprometido de fazer isso todo dia. Tudo se tornava um motivo para não comer, qualquer coisa era um propósito:
- Tenho alergia a esse alimento, puxa vida... - abria um sorriso triste, como se pedisse desculpas.
- Estou de dieta, sinto muito... - mais um sorriso triste.
Se alguém lhe dissesse: mas você já é magra! Ela apontava os culotes inexistentes:
- Sempre tem uma gordurinha que a gente quer perder né?
Em outras ocasiões se gabava do pouco peso:
- Acredita que não pude doar sangue porque peso 45 quilos? - abria um sorriso largo, mas ainda assim como se pedisse desculpas por ser tão magra.
Melinda a odiava profundamente. Tinham a mesma altura, a mesma cor de cabelo, mas o de Melinda era ondulado e o de Virgínia liso, os mesmos cílios imensos. Melinda pesava 12 quilos a mais, sempre tinha um pedaço de bolo dentro da bolsa, o cabelo parecendo que tinha acabado de acordar, fora o uso de cores em excesso. Virginia era a personificação da perfeição: nenhum fio fora do lugar, as roupas PP, muito discretas, unhas sempre curtas pintadas de vermelho, uma postura e um ar de sofisticação. Pareciam gêmeas, mas olhando de fora, parecia claramente que Melinda era gêmea que tinha dado errado.
Um dia, Melinda foi escovar os dentes após o almoço, e entendeu que Virgínia não era perfeita.
- O que você tá fazendo, Virginia? Tá tudo bem aí? - bateu na porta do sanitário.
Ela se assustou de ter sido pega:
- Eu tô ótima, acho que o almoço não caiu bem...
- Mas você nem comeu direito...
Ela saiu do cubículo, com uma cara péssima:
- Me deixa em paz, eu to bem ok?
- Não, não está tudo bem! Agora muita coisa faz sentido. Há quanto tempo você faz isso?
- Isso o que?
- Você não pode estar falando sério!
- Cuida da sua vida! Eu sei muito bem que você me odeia. Saiba que é recíproco. Odeio ter que vir trabalhar e olhar pra essa sua cara, essas suas roupas coloridas, você é péssima! Não faça a boa samaritana preocupada ok? Tchau.
- Caralho, Virginia, não é bem assim...
Virgínia apontou o dedo do meio antes de fechar a porta do banheiro. Sentou na sua mesa e engoliu o choro. Em anos, nunca tinha sido pega e nunca ninguém havia perguntado se tinha algo errado com ela. Todos achavam que era simplesmente um cuidado excessivo com o corpo, algumas pessoas até achavam legal. Nunca esperava isso de Melinda, que ela chamava pelas costas de "a gorda engraçadinha". A rixa delas era antiga, e o que mais dava raiva é que, fora o peso e o cabelo, elas eram extremamente parecidas, muitas vezes a beleza era até comparada. Na frente dos outros fingiam amor. Tudo pelo profissionalismo:
- Ai vocês são muito iguais, deixa eu tirar uma foto pra vocês verem!
Se abraçaram para a foto, um sorriso amarelo:
- Não toca em mim sua vagabunda!
- Ai cala boca, cafona do inferno!
- SORRIAM MENINAS! - Flash estourado na cara de ambas.
- Nós não temos nada a ver uma com a outra!
- Graças ao bom Deus!
Se sentavam muito próximas no trabalho, e, em meio ao ódio, exista sim um certo respeito. No fundo, Virgínia gostaria de ter uma amiga, e, Melinda era o mais próximo disso. Seu comportamento não era dos melhores, sempre querendo chamar atenção para si, tanto pela magreza quanto pela forma de se portar e muitas pessoas não gostavam dela por isso.
Naquele dia Melinda e Virgínia ficaram mais tempo no trabalho, precisavam terminar um projeto. Melinda sentou-se na cadeira vazia ao lado de Virgínia.
- Olha, eu sei que a gente se odeia, mas eu vi você vomitando. Isso é muito sério. Eu não tô fazendo a boa samaritana, mas eu também não quero que você se mate!
- Isso é a única coisa que eu controlo na minha vida, por favor, não implique com isso.
- Há quanto... tempo?
- Eu já nem sei mais... - olhou para Mimi com os olhos cheios de lágrimas.
- Eu não vou te forçar a pedir ajuda, eu sei que isso não funciona... mas, se você sentir que realmente quer sair dessa... - suspirou, ela odiava mesmo Virgínia, mas precisava fazer isso - ...eu tô aqui.
- Obrigada?!
Melinda levantou e foi embora e Virginia sentiu pela primeira vez em anos, um pedaço do vazio ligeiramente preenchido.
YOU ARE READING
O Guia Prático Para Adultos Sem Prática
RomanceSer adulto é uma bosta. Tem boletos, cigarros, decepção amorosa, gente louca. E tem o romance de Melinda e Eduardo. Mas no fim, a prática leva a perfeição (ou não).