Capítulo 14

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Steffen se agachou sob o chicote de seu amo, curvando-se e preparando-se para o próximo açoite, ele colocou as mãos atrás da cabeça, tentando proteger-se ao máximo do golpe.

"Eu ordenei que você removesse o pote antes que estivesse cheio! Agora veja o desastre que você causou!" Gritou seu amo.

Steffen odiava que lhe gritassem. Ele tinha nascido deformado, suas costas estavam torcidas ele era corcunda, sua aparência era prematuramente velha, todos lhe gritavam praticamente desde o dia em que ele havia nascido. Ele nunca tinha encaixado entre seus irmãos, entre seus amigos ou entre ninguém. Seus pais sempre trataram de fingir que ele não existia e quando ele teve idade suficiente, eles logo encontraram uma razão para expulsá-lo de casa. Eles sempre estiveram envergonhados dele.

Desde então, a vida havia sido ainda mais dura e solitária para Steffen, ele agora teria de se virar sozinho. Depois de anos realizando os mais estranhos trabalhos, de estar nas ruas quando era forçado a isso, ele finalmente tinha encontrado um emprego nas entranhas do castelo do rei, labutando com os outros criados na sala dos potes sanitários. Sua tarefa, durante anos, era esperar até que os gigantescos potes de ferro estivessem cheios com os excrementos que provinham dos pisos superiores do castelo, então antes que os potes transbordassem, ele os carregava para fora com a ajuda de outro servo. Eles levavam os potes para fora através de uma das portas traseiras do palácio, cruzavam os campos até chegar às margens do rio e despejavam ali o seu fétido conteúdo.

Era um trabalho que com o passo do tempo, ele tinha aprendido a fazer bem. Sua postura já estava arruinada muito antes que ele chegasse ali, portanto o peso do pote não poderia mais afetá-lo. É claro que o fedor era insuportável, porém, com o tempo ele tinha aprendido a bloqueá-lo. Ele havia treinado sua mente para dirigir-se para outros lugares; para escapar em uma fantasia, imaginando mundos alternativos bem vívidos e assim se convencia de que ele estava em qualquer lugar, menos ali. O talento que Steffen tinha na vida era uma enorme imaginação e não lhe custava muito para que ela o enviasse para outros domínios. Seu outro grande talento era a capacidade de observar as coisas. Todos o subestimavam, mas ele ouvia e via tudo e absorvia tudo como uma esponja. Ele era muito mais sensível e perspicaz do que as pessoas percebiam.

Era por isso que outro dia, Steffen tinha sido o único a perceber quando aquele punhal tinha vindo dando tombos pela rampa até chegar aos potes de excremento. Ele ouviu a mínima diferença no som que era produzido pelos salpicos, algo havia caído na água que não parecia humano, mas metálico. Ele tinha ouvido o som quase imperceptível do golpe de algo metálico atingindo o fundo do pote e soube, imediatamente, que algo estava errado, que havia algo diferente. Alguém havia jogado algo pela rampa, algo que não deveria ter sido jogado ali. Poderia ter sido jogado por acidente, ou ainda mais provável, jogado ali de propósito.

Steffen esperou por um momento, quando os outros não estivessem olhando, aproximou-se furtivamente do pote, prendeu a respiração, arregaçou uma das mangas e enfiou o braço até a altura dos ombros, dentro do pote. Ele tateava ao redor até que encontrou. Ele tinha razão: havia algo ali. Era um objeto longo, de metal, ele agarrou-o e puxou-o. Steffen podia sentir, antes que o objeto alcançasse a superfície, que era um punhal. Ele extraiu-o rapidamente, olhou ao seu redor para assegurar-se de que ninguém estava olhando, enrolou o punhal em um trapo e o escondeu debaixo de um tijolo solto na parede.

Agora que as coisas tinham se acalmado, ele olhou ao redor, certificando-se de que mais uma vez ninguém estava olhando. Quando ele sentiu que a costa estava livre, ele foi rapidamente até a parede onde estava o tijolo o removeu, desenrolou a arma e a estudou. Era um punhal diferente de todos os que ele já tinha visto, certamente, não provinha das classes mais baixas. Era uma coisa aristocrática, uma obra de arte. Um punhal muito valioso, caro.

Quando ele o segurou sob a luz das tochas, girando-o em todas as direções, ele percebeu que tinha manchas, manchas que não haviam se dissipado. Ele percebeu, com um choque, que eram manchas de sangue. Ele se lembrou de volta, do momento em que o punhal tinha caído pela rampa e percebeu que tinha sido na mesma noite do assassinato do Rei. Suas mãos tremeram quando ele percebeu que podia estar segurando a arma do crime.

"Você é um estúpido?" Seu amo gritou enquanto o chicoteava mais uma vez.

Steffen se curvou e rapidamente embrulhou o punhal, permanecendo de costas para seu amo, esperando e rezando para que ele não tivesse visto nada. Ele havia descuidado o pote enquanto examinava o punhal e o pote havia transbordado. Ele não esperava que seu amo estivesse ali por perto.

Steffen suportou as chicotadas, tal como fazia todos os dias, fizesse um bom trabalho ou não. Ele apertou a mandíbula, na esperança de que tudo acabasse em breve.

"Se aquele pote derramar de novo, Eu mandarei você embora daqui! Pior ainda — Eu mandarei acorrentar e jogar você no calabouço. Seu corcunda deformado e estúpido! Eu não sei por que eu ainda aguento você!"

Seu mestre, um homem gordo, bexiguento e zarolho, estendeu a mão o açoitou uma e outra vez. Normalmente, os açoites duravam pouco, mas naquela noite ele parecia estar com um humor particularmente agressivo e os golpes continuavam piorando. Eles pareciam não terminar nunca.

Finalmente, algo dentro de Steffen despertou. Ele já não podia suportar mais.

Steffen reagiu sem pensar: ele empunhou o punhal, virou-se e o enfiou na caixa torácica de seu amo. 

Seu mestre soltou um suspiro horrorizado seus olhos ficaram esbugalhados em seu rosto. Ele ficou parado, congelado, olhando assombrado.

Finalmente, os açoites tinham terminado.

Agora Steffen estava furioso. Toda a raiva reprimida, que ele se sentia ao longo dos anos brotou dele. Steffen fez uma careta, agarrou seu mestre pela garganta e apertou-a com uma mão. Com a outra, ele empurrou a lâmina cada vez mais fundo e a fez subir mais alto através do osso esterno, abrindo o caminho para seu coração. O sangue quente jorrou sobre sua mão e pulso.

Steffen estava admirado com o que ele tinha tido a coragem de fazer — e ele se deliciava com isso a cada segundo. Há anos que ele vinha sofrendo abusos por parte daquele homem. Aquela criatura horrível que tinha batido nele como se ele fosse um brinquedo. Agora, finalmente, tinha recebido sua vingança. Depois de todos esses anos, depois de todo o abuso.

"Isso é o que você ganha com bater-me." Steffen disse. "Você acha que você é o único com poder aqui? O que você acha disso agora?"

Seu amo deu um chiado, engasgou e finalmente caiu no chão, flácido como uma trouxa.

Morto.

Steffen olhou para ele, deitado ali, com o punhal sobressaindo do seu coração naquela hora tardia da noite. Steffen olhou para os dois lados, satisfeito ao ver que a sala estava quase vazia, que só os dois estavam ali em baixo, então extraiu o punhal, envolveu-o em seu pano, e o ocultou em seu esconderijo, atrás do tijolo. Havia algo naquele punhal, era uma energia maligna que o havia impulsado a usá-lo.

Steffen permaneceu ali, olhando para o corpo de seu amo, de repente, ele foi inundado pelo pânico. O que ele tinha feito? Ele jamais havia feito algo assim em sua vida. Ele não sabia o que havia se apoderado dele.

Ele se agachou, levantou o cadáver do seu amo, passou-o por cima do ombro, então se inclinou e o deixou cair no pote de dejetos. O corpo caiu com um estrondo, quando a água suja salpicou para os lados. Felizmente, o pote era profundo. O cadáver afundou sob a superfície.

No próximo turno, Steffen levaria o pote para fora com seu velho amigo: um homem tão bêbado, que ele jamais poderia imaginar o que estava no pote, um homem que sempre se afastava dele, tampando o nariz com o fedor. Ele nem mesmo perceberia que o pote estaria mais pesado do que de costume, enquanto os dois o levavam até o rio e despejavam o seu conteúdo. Ele nem iria notar o vulto à noite, o corpo boiando pela corrente rio abaixo.

Para baixo, Steffen esperava, para o mesmíssimo inferno.

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