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           Meu apartamento não é lá um hotel cinco estrelas, mas para guardar da chuva e do sol, serve. O ponto principal do lugar onde moro é a organização. Recordo-me, que esse foi um dos principais fatores que expulsei meu irmão desse recinto. Mas se eu expulsá-la onde viveria? Deixei meu quarto para ela por conta da acessibilidade e resolvi ficar com o outro. Volto para a sala, e noto que Sarah fez café. Sem pensar duas vezes, ela traz uma xícara para mim, me sento no sofá e começo a observar a "Alice" fixamente, pensando em como eu fui me meter nisso. Talvez agora eu estaria sozinho lendo algum livro. Agora tudo mudou. Não é só eu.
 
            — Por favor, pare de me encarar. — diz ela.

            — Como sabe que eu estava lhe encarando? — pergunto extremamente curioso.

             — Sua respiração estava fixada em minha direção. Olha isso é horrível para mim também, estou cega e mal faço ideia de quem eu sou ou seja lá o que vivemos juntos. — faz um pausa e continua — então por favor, não torne essa situação mais embaraçosa do que ela já estar.
        
            Poderia lhe dar uma simples resposta na qual ela se simplesmente iria despedaçar, mas decido guardar o meu veneno para mim mesmo. Em vez de dizer palavras desagradáveis, decido somente dizer:
 
              — Tudo bem. Quer que eu a conduzo para o seu quarto?

              — Sim. Obrigada. — responde ela em uma tentativa fria, mas falha, pois noto um pouco de medo em seu tom.

              Ela segura em meus braço e eu começo a conduzi-la para o seu aposento provisório. Abro a porta, e entramos devagar. Levo-a em direção a cama, ela se senta com cautela para que não haja nenhum risco de queda. Posso pensar em mil coisas que realmente passam pela cabeça dela, assim como ela também pensa. Se eu estou com um certo medo, imagine ela. Fiquei a manhã toda julgando-a, mas não parei um minuto colocar-me em seu lugar. Sento-me em seu lado esquerdo e permaneço em silêncio.

              — Então esse é meu nome? Alice? — pergunta ela quebrando o silêncio constrangedor que se formava no ambiente.

              Penso bem antes de responder essa pergunta, porém mais uma vez opto pela mentira.
 
               — Sim.
 
               — Como tudo isso foi acontecer?

              Outra pergunta que me faz reavaliar meu estoque de mentiras.

              — Estávamos no lago. Você disse que queria dar um mergulho, então subiu em uma pedra e pulou, nisso provavelmente bateu a cabeça e ficou desacordada na água. Só percebi depois de alguns minutos, quando você estava demorando para voltar para superfície. Depois disso você sabe o resto.

               — Difícil de acreditar que um simples mergulho causaria tudo isso.

               Meu coração gela cada vez que eu à engano. Queria dizer a verdade.
 
               — Estou certo que você irá se lembrar de seu passado logo. — acrescento — agora vá descansar um pouco. Você passou por muita coisa.

               Ajudo ela se deitar na cama e logo em seguida a cubro com um de meus cobertores. Seus olhos são lindos. Por mais que ele não possam me ver, eles ainda são os olhos mais bonitos que eu já vi. Meus lábios dão um suave beijo em sua testa, numa tentativa de afastar um pouco do medo que a ronda. Saio do quarto fechando a porta, assim deixando-a repousar de verdade.

+++

               Enquanto 'Alice' dorme, eu fico devaneando sobre o que a Alice de verdade pensaria sobre tudo isso. Talvez ela dissesse que é uma atitude nobre, ou talvez, ela iria simplesmente ficar louca por eu ter abrigado uma desconhecida sobre o nosso teto. Impossível imaginar o que iria pensar, pois de qualquer forma nunca vou saber a reação dela. Coloco mais um pouco de vinho em meu cálice. O que essa garota tem que me cativa tanto? Por que eu  ainda não a expulsei? Olho o marcador de horas, são 00:13. Percebo que já é um pouco tarde, porém não sou capaz de pregar a droga dos olhos. Às vezes eu me deparo em pequenas lembranças, lembranças na qual faço questão de me acorrentar. Tomo mais um gole do vinho. Eu estou realmente com medo de que essa garota descubra a verdade. Por medo eu a fiz embarcar nessa mentira, com certeza iriam se levantar várias questões, ou seja, várias perguntas viriam a tona.
 
               Na manhã seguinte, acordo já pensando no que ela gostaria no café da manhã. Ignoro suas preferências e começo a preparação de panquecas. Alguns minutos depois a bancada já estava posta para dois. Agora é hora de acordá-la, fico pensando no momento em que essa garota acordar. Ela poderia me denunciar ou até me processar. Mas como eu poderia a deixar naquele hospital sozinha e desprotegida? Não seria nem um pouco filantrópico de minha parte. Vou para o seu aposento. A porta estava aberta, porém ainda dou três suaves batidas na porta para que ela possa reconhecer que eu estou me ingressando no ambiente. Sua cabeça rapidamente se volta em direção ao som, assim permitindo que eu consiga fazer um contato visual com seu inútil globo ocular. Ela estava tentando achar os seus sapatos. Eu a ajudo pegando um par de chinelos meus, no entanto, eles não serviram, pois eram muito grandes para seus pequenos pés. Desistimos de achar algo para que e ela possa calçar. Chegando na bancada, auxílio ela a se estabelecer no tamborete, com muito custo, ela consegue se manter equilibrada no assento. Me assento a sua frente com um certo resquício de pusilanimidade. Acrescento um pouco de suco de laranja em seu copo e uma panqueca com melado em seu prato.
 

                — Pronto, pode comer. — digo para quebrar o gelo.

               Mas ela permanece com os braços colados no corpo.
 
                — Alice, o que houve? — pergunto.
 
                — Eu não sei se vou conseguir. — diz ela em um tom quase impossível de ser ouvido.
 
               — Não à como saber se não tentar. — explico de um jeito doce.

              Ela tateia o local a procura dos talheres, mas acaba derramando o suco e quase derrubando o prato no chão. Lágrimas escorrem de seus olhos, talvez de vergonha ou decepção, é impossível distinguir.
 
               — Chega! Eu sou uma inútil! Nem comer eu consigo! — grita ela tentando sair do seu assento, mas acaba caindo de uma forma engraçada no chão.
 
               Rapidamente me levanto e vou acudi-lá, ela segura em minhas mãos e se escora, assim levantamos juntos. Ela me abraça forte e eu retribuo da mesma maneira. Retiro-a de meus braços e envolvo minhas mãos em seu rosto, de uma maneira que meus polegares possam enxugar suas lágrimas, encaro seus olhos mesmo sabendo que não será recíproco, e digo:
 
                — Você não é uma inútil! Isso é só uma pequena fase. Por algum motivo você sobreviveu, eu acredito que todos têm um propósito para cumprir enquanto estamos vivos. Se o destino quis você viva, quem somos nós para contestar? De alguma forma a vida me devolveu você , mesmo cega ou sem lembranças, mas devolveu. Mesmo não podendo me ver você consegue acreditar em mim. Por que então não consegue simplesmente acreditar em si mesma?
 

                Em uma fração de segundos, suas mãos começam a tatear meus braços, subindo pelo meu pescoço e se estabilizando em meu rosto. Ela se aproxima e eu também, ela está tão perto de mim que posso sentir sua respiração e o frescor quente que sai de sua boca. Meus olhos se fecham os delas também, no entanto o meu celular anuncia o alarme, assim mudando totalmente o clima que antes era quente e romântico em um lugar frio e embaraçoso. Retiro minhas mãos de sua face e me afasto.

                 — Você tem que se alimentar, Venha. — ordeno.
 
                 — Não quero fazer outro estrago.
 
                 — Isso a gente arruma depois, venha!

                 Com muito custo, ela se entrega segurando meu braço e voltando para o balcão, só que dessa vez ela está no meu lugar. Entrelaço minhas mãos nas dalas segurando o garfo na direita e a faca na esquerda. Cortamos juntos um pedaço da panqueca e levamos até em sua boca. O som do meu sorriso ecoa em seu ouvido, assim á fazendo-a sorrir também.
 
                Em pouco tempo depois, estamos sentados no sofá. Mas de repente surge uma ideia. Vou até o quarto e pego os sapatos que a pouco tempo eram desaparecidos, coloco em seus pés dizendo:
 
                 — Precisamos de ar puro, você principalmente.

                 — Aonde nós vamos? — pergunta.
 
                 — É surpresa. Mas garanto que você irá amar.

                 — Ok.

                 — Ok.

ALICE E EUOnde histórias criam vida. Descubra agora