15- Cada cicatriz uma história

90 18 32
                                    

Sempre imaginei como foi meu casamento, como Eliot fez o pedido, a minha reação e o que eu respondi, as preparações, a noite de núpcias. Nada disso tenho mais de lembranças. Meu cérebro bloqueou o acesso a elas. Sou jovem sim, ainda posso ter essas recordações com outra pessoa, alguém que eu ame de verdade. E agora que Rafael está na minha frente querendo saber a resposta para seu pedido, tudo parece embaralhar novamente.

Eu quero me casar? Sim!
Com ele? Talvez...
Eu o amo? Não! Ou pelo menos ainda não.

Faz pouco mais de um mês que Eliot se foi e, apesar de vivermos conjugalmente apenas na aparência, eu ainda devo honrar a sua memória. Não posso me casar tão cedo, com ninguém...

Mas a questão é: como falar isso para Rafael sem o mágoa-lo?  Enquanto estou perdida em meus pensamentos, ele me olha com um olhar desesperador. Vou tentar responder da forma mais compreendida possível.

— Rafael você me pegou de surpresa agora. É... Bem... Eu não sei como te disse isso, mas eu não posso me casar agora. — Dei um sorriso meio torto.

— É o famoso, não é vc, sou eu... — Ele falou de cabeça baixa.

— Olha não é por que eu não goste de você, pelo contrário, gosto muito. Mas acho que não o suficiente para nós casarmos, e também meu marido faleceu a pouco tempo, não acho correto me relacionar com alguém agora.

Ele se esquivou um pouco e se ajeitou na cadeira bastante pensativo. Espero que ele me entenda...

— Você tem razão, estou me precipitando, então vou reformular a pergunta — ele se possicionou pegando na minha mão novamente. — Kallice, você quer namorar comigo?

— Kallice! — Phillipe entra de vez na enfermaria e nos olha estranho. Rafael solta a minha mão e se levanta. — Não queria atrapalhar, mas é algo urgente. Você reconhece essa ou essas roupas?

Um guarda entra vestindo uma roupa estilo macacão escura e esverdeado, como uma camuflagem; na cabeça uma coroa de penas, e nas mãos uma flecha dourada. A minha mente viaja no tempo me fazendo lembrar do dia em que cheguei a Belvedere, quando fui atacada por aquele ser, agora tudo fica mais claro, era a roupa que usavam quando fui atacada.

— Sim, no bosque das almas perdidas, quando cheguei aqui. Estavam usando essa roupa, agora está mais claro. Onde conseguiram isso ? — Falei tentando me levantar da cama, porém Rafael não deixou que eu saísse, então fiquei apenas sentada.

— Estava numa bolsa do homem que lhe atacou ontem — Phillipe respondeu. — Você quase foi morta duas vezes pela mesma pessoa. Aquilo tudo foi uma emboscada para viajantes. Estamos a procura das outras pessoas que estão por trás disso.

— E você me salvou da morte duas vezes no mesmo dia. Obrigada! — Falei enquanto nos encaravamos.

A verdade é, eu realmente estou gostando de Phillipe, não posso mais negar isso, mas ainda tenho minhas dúvidas quanto aos sentimentos dele. Uma coisa é certa, ele nunca esqueceu Laura, e talvez a minha semelhança com ela faça com que esse amor reacenda. Tenho medo dele me amar por aparência e lembrança de Laura, ao invés de amar eu, Kallice.

Rafael fica encomodado com a presença do seu irmão e resolve quebrar o silêncio:

— É melhor deixá-la descansar, se nós demos licença... — Ele fala se levantando e literalmente empurrando todos para fora.

— Você não vem? — Philipe pergunta desconfiado.

— Tenho uma conversa pendente com ela, mas só vai demorar dois minutos, então...

Todos saíram e Rafael soltou um "finalmente a sós." Finalmente não, eu quero ter que responder a pergunta, não quero mágoa-lo. Eu gosto dele, mas não como marido ou namorado, mas sim como um amigo.

— Eu sei que são tempos difíceis pra você, por isso vou te dá tempo pra pensar, demore o tempo que precisa.

Ele falou e me deu um beijo na testa quase toda enfaixada e saiu me deixando "finalmente só."

                                   ¶∆∆∆¶

As horas passam devagar e a única coisa que me resta é dormi. Vez ou outra acordo com a enfermeira me posicionando na cama da forma correta, dessa vez me acordei com ela tirando a faixa do meu pescoço. O alívio por tirar aquela faixa e deixar meu pescoço respirar foi contagiante, até a dor começar novamente. Fiz uma careta alertando sobre isso. A enfermeira disse que é normal, mas já está bem fechada e se eu continuar assim logo mais estará cicatrizado.

Ótimo, mais uma cicatriz pra contar história. Já tenho uma no braço, no pescoço, sem contar que também tenho da queda do penhasco na minha nuca. Na época o médico disse que foi por isso que perdi a memória, bati a cabeça muito forte e ainda tive sorte e não ter tido consequências mais graves, como ficar paraplégica ou até mesmo morrido.

Lembro-me te ter acordado naquele ambiente estranho, com um homem estranho, até minha avó era estranha, parecia que eu estava vendo-os pela primeira vez. Por isso tenho minhas dúvidas sobre se a rainha Laura. Certos fatores me fazem duvidar do meu passado. Mas se eu realmente for ela, esses oito anos foram um mero teatro. Todos da aldeia estavam mentindo? Eliot mentil? Minha avó mentil? Porque meus olhos são diferentes?

São tantas perguntas sem respostas, mas eu juro que quando melhorar, vou investigar a fundo essa história. Custe o que custar.


KalliceOnde histórias criam vida. Descubra agora