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Celaena acordou antes do amanhecer com uma dor de cabeça latejante. Bastou um olhar para a
vela quase totalmente derretida na mesa de cabeceira para saber que o encontro no mausoléu não
fora um sonho horrível. O que significava que, bem abaixo de seu quarto, havia uma aldraba
falante imbuída de algum feitiço antigo de animação. E que Elena tinha, mais uma vez,
encontrado uma forma de tornar a vida de Celaena infinitamente mais complicada.
Ela resmungou e enterrou o rosto no travesseiro. Tinha falado sério na noite anterior. O
mundo estava além da ajuda. Mesmo que... mesmo que houvesse visto em primeira mão como as
coisas podiam se tornar perigosas... quanto podia ser pior. E aquela pessoa no corredor...
Celaena se deitou sobre as costas, e Ligeirinha a cutucou na bochecha com o focinho úmido.
Acariciando distraidamente a cabeça da cadela, a assassina encarou o teto e a luz de um cinza
pálido que se espreitava pelas cortinas.
Não queria admitir, mas Mort estava certo. Celaena tinha ido ao mausoléu apenas para que
Elena lidasse com a criatura no corredor — para ser assegurada de que não precisaria fazer nada.
Meus planos, dissera o rei. E se Elena estava alertando-a para desvendá-los, para encontrar a
fonte do poder... então deviam ser ruins. Piores do que os escravos em Calaculla e Endovier, piores
do que matar mais rebeldes.
Celaena observou o teto por mais alguns minutos, até que duas coisas se tornaram claras.
A primeira era que não desvendar aquela ameaça poderia ser um erro fatal. Elena dissera
apenas que Celaena precisava encontrá-la. Não dissera nada a respeito de destruí-la. Nada a
respeito de enfrentar o rei — o que era um alívio, imaginou Celaena.
E a segunda coisa era que precisava falar com Archer — se aproximar e começar a descobrir
um modo de fingir a morte dele. Porque se Archer realmente fizesse parte do movimento que sabia
o que o rei pretendia, talvez ele pudesse poupar Celaena do trabalho de espionar o rei e de ter que
juntar as pistas que encontrasse. Mas depois que desse aquele passo para se aproximar de Archer...
Bem, então tudo certamente se tornaria um jogo letal.
Celaena tomou um banho rápido e se vestiu com as melhores roupas, e mais quentes, antes de
mandar chamar Chaol.
Estava na hora de convenientemente esbarrar em Archer Finn.
Graças à neve da noite anterior, algumas pobres almas tinham sido incumbidas de limpar o distrito
mais glamouroso de Forte da Fenda. O comércio ficava aberto o ano todo, e apesar das calçadas
escorregadias e das ruas de paralelepípedos enlameadas, a cidade capital estava tão fervilhante
naquela tarde quanto ficava no alto verão.
Mesmo assim, Celaena desejou que fosse verão, pois as ruas molhadas ensopavam a bainha do
vestido azul-gelo dela, e estava tão frio que nem mesmo a capa de pele branca a mantinha
aquecida. Conforme caminhavam pela avenida principal lotada, Celaena se manteve próxima de
Chaol. Ele a importunara novamente para que o deixasse ajudar com Archer, e convidá-lo naquele
dia fora a coisa mais inofensiva que ela pôde fazer para que ele parasse de enchê-la em relação
àquilo. Celaena insistiu para que Chaol usasse roupas normais em vez do uniforme de capitão.
Para ele, aquilo significava aparecer de túnica preta.
Ainda bem que ninguém prestou muita atenção aos dois — não quando havia tanta gente e
tantas lojas. Ah, como Celaena adorava aquela avenida, onde todas as coisas belas do mundo eram
vendidas e trocadas! Joalheiros, chapeleiros, vendedores de roupas, confecções, sapateiros...
Previsivelmente, Chaol passou batendo os pés por todas as vitrines de lojas, sem sequer olhar para
as belezas exibidas do lado de dentro.
Como sempre, havia uma multidão do lado de fora da Willows — a casa de chá na qual
Celaena sabia que Archer estava almoçando. Ele parecia comer ali todo dia, com alguns outros
cortesãos do sexo masculino. É claro que não tinha nada a ver com o fato de que a maioria das
clientes da elite de Forte da Fenda também comia ali.
Celaena pegou o braço de Chaol conforme se aproximaram da casa de chá.
— Se você entrar parecendo prestes a socar alguém — cantarolou ela, cruzando o braço com o
dele —, ele certamente vai saber que tem algo errado. E, mais uma vez, não diga nada a ele. Deixe a conversa e o charme comigo.
Chaol ergueu as sobrancelhas.
— Então só estou aqui como decoração?
— Fique grato por eu considerá-lo um acessório digno.
O capitão murmurou algo aos sussurros que Celaena tinha quase certeza de que não iria querer
ouvir, mas, mesmo assim, Chaol reduziu o passo para um andar bem elegante.
Do lado de fora da entrada de pedra e vidro arqueada para a casa de chá, carruagens
requintadas aguardavam na rua, com pessoas entrando e saindo delas. Os dois poderiam ter pegado
uma carruagem — deveriam ter pegado uma carruagem, considerando o frio que fazia e o fato de
que o vestido de Celaena agora estava ensopado. Mas, tolamente, ela quis andar e ver a cidade de
braço dado com o capitão da Guarda, embora ele tivesse passado o tempo inteiro com uma
expressão como se uma ameaça espreitasse em cada canto e cada beco. Pensando bem, uma
carruagem provavelmente teria causado uma entrada melhor também.
A entrada na Willows exigia uma sociedade difícil de alcançar; Celaena tomara chá ali diversas
vezes quando era nova, graças ao nome de Arobynn Hamel. Ela ainda se lembrava do tilintar da
porcelana, das fofocas sussurradas, do quarto pintado de verde-menta e creme e das janelas do
chão ao teto que davam para um jardim exótico.
— Não vamos entrar ali — falou Chaol, e não foi exatamente uma pergunta.
Celaena lançou um sorriso felino a ele.
— Não tem medo de um bando de velhotas gorduchas e jovens dando risadinhas, tem? — Ele
a olhou com raiva, e Celaena deu tapinhas no braço dele. — Não estava ouvindo quando expliquei
meu plano? Só vamos fingir que estamos esperando pela mesa. Então, não se desespere! Não
precisará enfrentar todas as mocinhas malvadas com as garras em cima de você.
— Da próxima vez que treinarmos — disse Chaol, conforme os dois abriam caminho pela
multidão de mulheres lindamente vestidas —, me lembre de acertá-la.
Uma mulher mais velha se virou para encarar Chaol com raiva, e Celaena lançou a ela um olhar
exasperado e como se pedisse desculpas, como se dissesse: Homens! Ela então cravou as unhas
prontamente na túnica de inverno espessa de Chaol e grunhiu:
— Esta é a parte em que você cala a boca e finge que é uma peça decorativa cabeça oca. Não
deve ser muito difícil.
O beliscão que ele deu em resposta informou a Celaena de que o capitão realmente a colocaria
para trabalhar quando estivessem de novo no salão de treinamento. Ela sorriu.
Depois de encontrar um lugar logo abaixo dos degraus que conduziam às portas duplas,
Celaena olhou para o relógio de bolso. Archer começara a comer às 14 horas, e em geral a refeição terminava em noventa minutos, o que significava que sairia a qualquer instante. Celaena fez
questão de mostrar que vasculhava o pequeno porta-moedas, e Chaol, misericordiosamente, ficou
em silêncio, observando a multidão ao redor, como se aquelas mulheres chiques pudessem atacá-
los a qualquer momento.
Alguns minutos se passaram e as mãos enluvadas de Celaena ficaram dormentes conforme as
pessoas continuaram caminhando para dentro e para fora da casa de chá, com tanta frequência que
ninguém se incomodou em reparar que os dois eram os únicos que não estavam prestes a entrar.
Mas então as portas da frente se abriram, e Celaena viu de relance um cabelo acobreado e um
sorriso encantador, o que a fez se mexer.
Chaol acompanhou com habilidades de especialista, levando Celaena escada acima, para o
alto, para o alto, até que...
— Ops! — gritou Celaena, colidindo com um ombro largo e musculoso. Chaol até a puxou
para si, a mão apoiada nas costas dela para evitar que Celaena caísse das escadas. Ela olhou para
cima, pelos cílios, então...
Uma piscada, duas piscadas.
O rosto exótico boquiaberto para ela se abriu em um sorriso.
— Laena?
Ela tinha planejado sorrir de qualquer forma, mas quando ouviu o antigo apelido de Archer
para ela...
— Archer!
Ela sentiu Chaol enrijecer o corpo levemente, mas não se incomodou em olhar para ele. Era
difícil tirar os olhos de Archer, que fora e continuava sendo o homem mais lindo que Celaena já
vira. Não bonito — lindo. A pele dele reluzia dourado mesmo no meio do inverno, e os olhos
verdes de Archer...
Deuses e Wyrd me salvem.
A boca de Archer também era uma obra de arte, toda com linhas sensuais e maciez que
implorava para ser explorada.
Como se emergindo de um transe, Archer repentinamente balançou a cabeça.
— Deveríamos sair dos degraus — disse ele, e estendeu a mão enorme para indicar a rua
abaixo. — A não ser que você e seu companheiro tenham uma reserva...
— Ah, estamos alguns minutos adiantados mesmo — falou Celaena, soltando o braço de
Chaol para caminhar de volta para a rua.
Archer seguiu ao lado dela, o que deu à assassina um relance das roupas dele: túnica e calça
feitas por um alfaiate experiente, botas na altura dos joelhos, uma capa pesada. Nada daquilo gritava riqueza, mas Celaena conseguia ver que tudo era caro. Ao contrário de alguns dos
cortesãos mais extravagantes e frágeis, o apelo de Archer sempre fora mais rudimentarmente
masculino.
Os ombros largos e musculosos e a compleição poderosa; o sorriso sábio; até mesmo o lindo
rosto irradiava uma sensação de masculinidade que deixava Celaena com dificuldades de lembrar o
que tinha planejado dizer.
Até mesmo Archer parecia buscar as palavras enquanto os dois se encaravam na rua, a alguns
passos da multidão ocupada.
— Faz um tempo — começou Celaena, sorrindo de novo.
Chaol permaneceu um passo afastado, em silêncio absoluto. E sem sorrir.
Archer enfiou as mãos nos bolsos.
— Quase não a reconheci. Era apenas uma garota quando a vi da última vez. Tinha... Pelos
deuses, tinha 13 anos, acho.
Celaena não pôde evitar — ergueu o olhar para Archer sob os cílios baixos e disse,
sussurrando:
— Não tenho mais 13 anos.
Archer abriu um sorriso lento e sensual para Celaena, avaliando-a da cabeça aos pés antes de
afirmar:
— Certamente é o que parece.
— Você também ganhou um pouco mais de corpo — observou Celaena, e devolveu o favor de
avaliá-lo.
Archer sorriu.
— Vem com a profissão. — Ele inclinou a cabeça para o lado, então voltou os olhos
magníficos para Chaol, que agora estava parado com os braços cruzados. Ela ainda se lembrava de
como Archer era apto a absorver os detalhes. Devia ser parte do motivo pelo qual havia se tornado
o melhor cortesão de Forte da Fenda. E um oponente formidável quando Celaena treinava no
Forte dos Assassinos.
Ela olhou para Chaol, que estava ocupado demais encarando Archer com impaciência para
reparar nela.
— Ele sabe de tudo — disse Celaena para Archer. Alguma tensão fluiu para fora dos ombros
do cortesão, mas a surpresa e o espanto também estavam passando, substituídos por uma pena
hesitante.
— Como saiu? — perguntou Archer, cuidadosamente, ainda sem mencionar nada a respeito
da profissão de Celaena ou de Endovier, apesar da confirmação de que Chaol sabia.
— Fui solta. Pelo rei. Trabalho para ele agora.
Archer olhou para Chaol novamente, e Celaena deu um passo na direção do cortesão.
— É um amigo — disse ela, baixinho.
Seria desconfiança ou medo nos olhos dele? E seria apenas porque Celaena trabalhava para um
tirano que o mundo temia ou porque ele, de fato, tinha se tornado um rebelde com algo a
esconder? Celaena se manteve o mais casual possível, o mais inofensiva e relaxada que alguém
poderia parecer ao esbarrar em um velho amigo.
Archer perguntou:
— Arobynn sabe que você voltou?
Aquela não era uma pergunta para a qual Celaena estava preparada, ou que quisesse ouvir.
Dando de ombros, disse:
— Ele tem olhos por toda parte; ficaria surpresa se não soubesse.
Archer assentiu com seriedade.
— Sinto muito. Ouvi sobre Sam... e sobre o que aconteceu na casa de Farran naquela noite. —
Archer balançou a cabeça e fechou os olhos. — Só... sinto muito.
Embora o coração de Celaena tivesse se revirado ao ouvir as palavras, ela assentiu.
— Obrigada.
Celaena apoiou a mão no braço de Chaol, precisando subitamente apenas tocá-lo, se certificar
de que o capitão ainda estava ali. Porque precisava parar de falar sobre aquilo também; ela suspirou
e fingiu parecer interessada nas portas de vidro no alto dos degraus.
— Deveríamos entrar — mentiu Celaena. Ela sorriu para Archer. — Sei que fui uma pirralha
irritante quando você treinou no Forte, mas... quer jantar comigo amanhã? Tenho a noite de folga.
— Você certamente teve seus momentos naquela época. — Archer devolveu o sorriso e fingiu
uma reverência. — Precisarei adiar alguns compromissos, mas ficarei honrado. — Ele colocou a
mão na capa e tirou de dentro dela um cartão de cor creme, com seu nome e endereço gravados. —
Apenas avise onde e a que horas e estarei lá.
Celaena estava quieta desde que Archer fora embora, e Chaol não tentara puxar conversa, embora
estivesse quase explodindo para dizer alguma coisa.
Sequer sabia por onde começar.
Durante toda a troca, só pôde pensar no quanto queria arrebentar o rostinho bonito de Archer
contra o prédio de pedras.
Chaol não era tolo. Sabia que alguns dos sorrisos e rubores de Celaena não haviam sido
encenação. E embora não tivesse qualquer posse sobre ela — e reivindicá-la para si seria a coisa
mais burra que Chaol poderia fazer —, a ideia de a assassina ser suscetível aos charmes de Archer
o fazia querer ter uma conversinha com o cortesão.
Em vez de voltar para o castelo, Celaena começou a caminhar pelo distrito rico, no coração da
cidade, com passos sem pressa. Depois de quase trinta minutos de silêncio, Chaol achou que havia
se acalmado o bastante para ser civilizado.
— Laena? — indagou ele.
Levemente civilizado, pelo menos.
Os riscos dourados nos olhos turquesa de Celaena eram fortes ao sol da tarde.
— De todas as coisas que dissemos lá atrás, foi essa a que mais o incomodou?
Incomodou. Que Wyrd o levasse, aquilo o incomodou absurdamente.
— Quando contou que o conhecia, não percebi que você estava querendo dizer tão bem assim.
— Chaol lutou contra o mau humor esquisito e repentino que se erguia de novo. Mesmo se
estivesse encantada pela aparência de Archer, Celaena o mataria, Chaol precisou se lembrar.
— Minha história com Archer me permitirá fazer com que ele forneça informações a respeito
do que quer que seja esse movimento rebelde — falou Celaena, erguendo o olhar para as lindas
casas pelas quais passavam. As ruas residenciais eram tranquilas, apesar de o centro da cidade
fervilhar apenas alguns quarteirões abaixo. — Ele é uma das poucas pessoas que, de fato, gosta de
mim, sabe. Ou gostava, há anos. Não deveria ser tão difícil ter alguma ideia do que esse grupo
pode estar planejando contra o rei, ou de quem são os outros membros.
Parte de Chaol, ele sabia, deveria sentir vergonha por encontrar algum alívio no fato de que
Celaena mataria Archer. Ele era melhor do que aquilo — e certamente não era o tipo territorialista.
E os deuses sabiam que Chaol não tinha direitos sobre Celaena. Ele vira o olhar no rosto dela
quando Archer mencionou Sam.
Chaol ouvira por alto sobre a morte de Sam Cortland. Jamais soubera que os caminhos de
Celaena e Sam tinham se cruzado, que Celaena algum dia... Algum dia amara com tanta
intensidade. Na noite em que foi capturada, não tinha saído para recolher o ouro de um contrato
— não, fora até aquela casa para se vingar pelo tipo de perda que Chaol nem conseguia imaginar.
Os dois caminharam pela rua, a lateral do corpo de Celaena quase tocando a de Chaol. Ele
lutou contra a vontade de encostar o corpo no dela, de aconchegá-la.
— Chaol? — disse ela, alguns minutos depois.
— Hum?
— Sabe que eu odeio quando ele me chama de Laena, não sabe?
Um sorriso curvou os lábios do capitão, com um lampejo de alívio.
— Então, da próxima vez que eu quiser irritá-la...
— Nem pense nisso.
O sorriso de Chaol se abriu, e o lampejo de alívio se tornou algo que lhe deu um soco no
estômago quando Celaena sorriu de volta.

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