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Dorian passou pelas tendas pretas do parque, imaginando pela enésima vez se aquele era o maior
erro de sua vida. O príncipe tinha perdido a coragem de ir no dia anterior, mas depois de mais uma
noite em claro, havia decidido ver a velha bruxa e lidar com as consequências depois. Se acabasse
no corredor de execuções por causa daquilo, certamente se puniria por ter sido tão arrogante, mas
havia exaurido qualquer outro modo de descobrir por que era assolado pela magia. Aquela era a
única opção.
Dorian encontrou Baba Pernas Amarelas sentada nos degraus dos fundos do vagão gigante,
um prato lascado amontoado com partes de frango assado repousava sobre os joelhos da bruxa,
uma pilha de ossos mastigados emporcalhava o chão abaixo.
A mulher ergueu os olhos amarelados para o príncipe, dentes de ferro reluzindo ao sol do
meio-dia enquanto mordia uma perna de frango.
— O parque está fechado para o almoço.
Dorian engoliu a irritação. Obter respostas dependia de duas coisas: cair nas graças da bruxa e
que ela não soubesse quem ele era.
— Estava torcendo para que você tivesse alguns minutos para responder umas perguntas.
A perna de frango se partiu em duas. Dorian tentou não se encolher diante dos ruídos de
sucção enquanto a bruxa chupava a medula do osso.
— Fregueses que têm perguntas durante o almoço pagam em dobro.
Dorian levou a mão ao bolso e pegou as quatro moedas de ouro que havia levado.
— Espero que isto compre todas as perguntas que quero, e sua discrição.
A mulher atirou a metade comida da perna de frango na pilha e se pôs a trabalhar na outra
metade, chupando e mastigando.
— Aposto que você limpa a bunda com ouro.
— Não acho que isso seja muito confortável.
Baba Pernas Amarelas grunhiu uma risada.
— Muito bem, pequeno lorde. Vamos ouvir suas perguntas.
Dorian se aproximou o suficiente para apoiar o ouro no degrau mais alto, ao lado da mulher,
mantendo-se bem afastado daquela forma enrugada. A bruxa tinha um cheiro intolerável, como
mofo e sangue apodrecido. Mas ele manteve o rosto impassível e entediado ao recuar. O ouro
sumiu com um gesto da mão retorcida da mulher.
Dorian olhou em volta. Trabalhadores estavam espalhados pelo parque, todos sentados, onde
encontraram lugar, para o almoço. Nenhum deles, reparou o príncipe, se sentou próximo ao vagão
pintado de preto. Nem mesmo olhavam naquela direção.
— Você é mesmo uma bruxa?
Baba Pernas Amarelas pegou uma asa de frango. Crac. Crunch.
— A última bruxa de nascença do Reino das Bruxas.
— Isso faria com que tivesse mais de 500 anos.
A mulher sorriu para Dorian.
— É uma maravilha que eu tenha permanecido tão jovem, não é?
— Então é verdade, bruxas são realmente abençoadas com a longevidade dos feéricos.
A mulher atirou mais um osso ao pé dos degraus de madeira.
— Feéricos ou valg. Nunca descobrimos qual desses.
Valg. Dorian conhecia esse nome.
— Os demônios que roubavam feéricos para procriar; o que deu origem às bruxas, certo? — E,
se Dorian bem lembrava, as lindas bruxas Crochan haviam puxado os ancestrais feéricos enquanto
os três clãs de bruxas Dentes de Ferro herdaram a aparência da raça de demônios que invadira
Erilea no início dos tempos.
— Por que um pequeno lorde bonito como você se incomodaria com tais histórias perversas?
— Ela tirou a pele do peito do frango e chupou garganta abaixo, friccionando os lábios enrugados.
— Quando não estamos limpando nossas bundas com ouro, precisamos encontrar algum
modo de nos divertir. Por que não aprender um pouco de história?
— De fato — falou a bruxa. — Então, vai embromar o dia inteiro enquanto eu asso neste sol
infernal ou vai perguntar o que realmente veio descobrir?
— A magia sumiu de verdade?
A bruxa nem mesmo ergueu o rosto do prato.
— Seu tipo de magia sumiu, sim. Mas há outros poderes esquecidos que ainda funcionam.
— Que tipo de poderes?
— Poderes que não interessam a pequenos lordes. Agora faça a próxima pergunta.
Dorian fez uma expressão brincalhona de ofensa, diante da qual a velha revirou os olhos. Ela o
fazia querer correr na outra direção, mas o príncipe precisava passar por aquilo, precisava manter a
farsa pelo máximo de tempo que conseguisse.
— É possível que uma pessoa, de alguma forma, tenha magia?
— Garoto, viajei de um litoral ao outro deste continente, atravessei cada montanha e entrei nos
lugares escuros e sombrios que homens ainda temem adentrar. Não há mais magia; nem mesmo os
feéricos que restaram conseguem acessar seus poderes. Alguns ainda estão presos às formas
animais. Desgraçados infelizes. Têm gosto de animais também. — A mulher gargalhou, o grasnido
de um corvo que fez os pelos da nuca de Dorian se erguerem. — Então, não... uma pessoa não
poderia ser a exceção a essa regra.
O príncipe manteve a expressão como uma máscara cautelosa de tédio displicente.
— E se alguém descobrisse de repente que possui magia...?
— Então seria um tolo condenado, pedindo para ser enforcado.
Ele já sabia disso. Não era o que estava perguntando.
— Mas se fosse verdade... hipoteticamente. Como isso sequer seria possível?
Ela parou de comer, inclinando a cabeça. Os cabelos prateados reluziam como neve fresca,
contrastando com o rosto bronzeado da mulher.
— Não sabemos como ou por que a magia sumiu. Ouço boatos de vez em quando de que o
poder ainda existe em outros continentes, mas não aqui. Então essa é a verdadeira questão: por que
a magia sumiu apenas aqui, e não por todo o mundo de Erilea? Que crimes cometemos para fazer
com que os deuses nos amaldiçoassem dessa forma, que nos tomassem aquilo com que um dia nos
presentearam? — A mulher atirou a costela do frango no chão. — Hipoteticamente, se alguém
tivesse magia e eu quisesse entender por quê, começaria descobrindo por que a magia sumiu para
início de conversa. Talvez isso explicasse como poderia haver uma exceção à regra. — Ela lambeu a
gordura dos dedos mortais. — Perguntas estranhas de um pequeno lorde que mora no castelo de
vidro. Perguntas muito, muito estranhas.
Dorian deu um meio sorriso.
— Ainda mais estranho que a última bruxa nascida no Reino das Bruxas se rebaixar tanto a
ponto de passar a vida fazendo truques de parque.
— Os deuses que amaldiçoaram estas terras há dez anos condenaram as bruxas séculos antes disso.
Talvez tivessem sido as nuvens que cobriram o sol, mas ele poderia jurar que vira uma
escuridão refletida naqueles olhos — uma escuridão que o fazia questionar se a bruxa não seria
ainda mais velha do que contara. Talvez o título de “última bruxa de nascença” fosse uma mentira.
Uma invenção para esconder uma história tão violenta que Dorian nem seria capaz de imaginar os
horrores cometidos por ela durante aquelas guerras das bruxas, tanto tempo antes.
Contra sua vontade, ele se pegou buscando a força antiga adormecida dentro de si, se
perguntando se, de alguma forma, o protegeria de Pernas Amarelas do modo como o protegera da
janela estilhaçada. A ideia o deixou inquieto.
— Mais alguma pergunta? — indagou a mulher, lambendo as unhas de ferro.
— Não. Obrigado por seu tempo.
— Bah — disparou a mulher, e gesticulou para que ele partisse.
Dorian foi embora e não chegou mais longe do que a tenda mais próxima quando viu o sol
refletido em uma cabeça dourada, e Roland caminhou na direção dele, afastando-se da mesa à qual
conversava com aquela musicista loira deslumbrante que tocava o alaúde na outra noite. Será que o
havia seguido até ali? Dorian franziu a testa, mas assentiu para o primo, em cumprimento,
conforme Roland o alcançava.
— Foi ler a sorte?
Dorian deu de ombros.
— Estava entediado.
Roland olhou por cima do ombro para onde o vagão de Baba Pernas Amarelas estava
estacionado.
— Aquela mulher faz meu sangue gelar.
Dorian riu com deboche.
— Acho que esse é um dos talentos dela.
Roland olhou de lado para o primo.
— Ela contou alguma coisa interessante a você?
— Só as besteiras normais: em breve vou conhecer meu verdadeiro amor, um destino glorioso
me espera e serei mais rico do que posso imaginar. Não acho que ela sabia com quem estava
falando. — Ele avaliou o Lorde de Meah. — E o que você está fazendo aqui?
— Vi você saindo e achei que talvez quisesse companhia. Mas então vi aonde ia e decidi me
manter bem afastado.
Ou Roland estava espionando ou dizia a verdade; Dorian sinceramente não conseguia saber.
Contudo, havia decidido ser agradável com o primo durante os últimos dias — e em todas as reuniões do conselho, Roland apoiara qualquer decisão do príncipe sem hesitar. A irritação nos
rostos de Perrington e do rei também era um deleite inesperado.
Então Dorian não questionou Roland a respeito do motivo para tê-lo seguido, mas quando
olhou de volta para Baba Pernas Amarelas, podia jurar que a mulher sorria para ele.
Fazia alguns dias desde que Celaena havia rastreado os alvos. Coberta pela escuridão, esperava nas
sombras do cais, sem acreditar muito bem no que via. Todos os homens da lista, todos aqueles que
vinha seguindo, aqueles que talvez soubessem o que o rei planejava — estavam indo embora.
Celaena vira um deles sair de fininho para uma carruagem indistinta e o seguira até ali, onde o
homem embarcara em um navio programado para partir na maré da meia-noite. Então, para a
infelicidade da assassina, os outros três haviam aparecido também, com as famílias ao encalço,
antes de serem rapidamente levados para os deques inferiores.
Todos aqueles homens, toda a informação que Celaena reunia, apenas...
— Desculpe — falou uma voz familiar atrás dela, e a assassina se virou e viu Archer se
aproximando. Como conseguia ser tão sorrateiro? Nem mesmo o ouvira se aproximar. — Precisei
avisá-los — disse o cortesão, os olhos no navio que se preparava para partir. — Não poderia viver
com o sangue deles nas mãos. Têm filhos; o que seria deles se você entregasse os pais para o rei?
— Você organizou isto? — grunhiu Celaena.
— Não — falou Archer, baixinho, as palavras quase inaudíveis acima dos gritos dos
marinheiros desatando as cordas e preparando os remos. — Foi um membro da organização.
Mencionei que as vidas deles poderiam estar em perigo, e ele fez com que seus homens os
colocassem no próximo navio para fora de Forte da Fenda.
Ela levou a mão para a adaga.
— Parte dessa barganha depende de você me dar informações úteis.
— Eu sei. Desculpe.
— Prefere que eu forje sua morte agora e o coloque naquele navio também? — Talvez Celaena
encontrasse outra forma de convencer o rei a libertá-la mais cedo.
— Não. Isso não vai acontecer de novo.
Ela duvidava muito, mas encostou na parede do prédio e cruzou os braços, vendo Archer
observar o navio. Depois de um instante, ele se voltou para a jovem.
— Diga alguma coisa.
— Não tenho nada a dizer. Estou ocupada demais ponderando se deveria apenas matar você e arrastar sua carcaça até o rei. — Ela não estava blefando. Depois da noite anterior com Chaol,
Celaena começava a questionar se a simplicidade não seria o melhor. Qualquer coisa para evitar
que o capitão fosse envolvido em uma possível confusão.
— Desculpe — repetiu Archer, mas a assassina gesticulou como se o dispensasse e observou o
navio que se preparava.
Era impressionante que tivessem organizado uma fuga tão rapidamente. Talvez não fossem
todos tolos como Davis.
— A pessoa para quem mencionou isso — disse ela, depois de um tempo. — É o líder do
grupo?
— Acho que sim — falou o cortesão, baixinho. — Ou está em posição alta o bastante para ter
condições de organizar uma fuga imediata assim que insinuei sobre esses homens.
Celaena mordeu o interior da bochecha. Talvez Davis fosse uma farsa. E talvez Archer
estivesse certo. Quem sabe aqueles homens quisessem apenas um monarca que os agradasse mais.
Porém, quaisquer que fossem os motivos financeiros ou políticos, quando pessoas inocentes foram
ameaçadas, eles se mobilizaram e as puseram em segurança. Poucas pessoas no império ousavam
fazer aquilo — e menos ainda conseguiam sair impunes.
— Quero novos nomes e mais informação amanhã à noite — falou Celaena ao se virar,
seguindo de volta para o castelo. — Ou vou jogar sua cabeça aos pés do rei e deixar que ele decida
se prefere que eu a atire no esgoto ou empale nos portões da entrada. — Não esperou a resposta de
Archer, desaparecendo nas sombras e na névoa.
Ela demorou para voltar ao castelo, pensando no que vira. Nunca havia um bem absoluto ou
um mal completo (embora o rei definitivamente fosse uma exceção). E mesmo que aqueles homens
fossem corruptos de algumas formas, também estavam salvando vidas.
Apesar de ser absurdo que alegassem ter contato com Aelin Galathynius, Celaena não podia
deixar de questionar se realmente havia forças se reunindo em nome da herdeira; se membros da
poderosa corte real de Terrasen tinham conseguido se esconder em algum lugar durante a última
década. Graças ao rei de Adarlan, Terrasen não possuía mais um exército permanente — apenas
quaisquer forças que estivessem acampadas pelo reino. Mas aqueles homens, de fato, tinham
alguns recursos. E Nehemia dissera que se Terrasen algum dia se erguesse de novo, representaria
uma verdadeira ameaça a Adarlan.
Então talvez ela nem mesmo precisasse fazer nada. Talvez não precisasse arriscar a vida, ou a
de Chaol. Talvez, apenas talvez, quaisquer que fossem os motivos, aquelas pessoas conseguissem
encontrar uma forma de impedir o rei — e libertar toda Erilea também.
Um sorriso lento e relutante se abriu no rosto de Celaena, e apenas ficou maior conforme ela caminhava para o castelo de vidro reluzente, e para o capitão da Guarda que a esperava ali.
Fazia quatro dias desde o aniversário de Chaol, e ele passara todas as noites desde então com
Celaena. E as tardes e as manhãs. E todo momento livre que conseguiam das obrigações
individuais. Infelizmente, aquela reunião com os guardas-chefes não era opcional, mas enquanto
ouvia os relatórios dos homens, os pensamentos do capitão ficavam retornando a Celaena.
Ele mal respirara durante aquela primeira vez e fizera o possível para ser carinhoso, para tornar
aquilo o menos doloroso possível para ela. Ainda assim, a jovem encolheu o corpo, e os olhos dela
brilharam com lágrimas; mas quando o capitão perguntara se ela precisava parar, Celaena apenas o
beijou. E de novo e de novo. Durante toda aquela primeira noite, ele a abraçara e se permitira
imaginar que assim seria todas as noites até o fim da vida dele.
E todas as noites desde então, Chaol traçava o dedo pelas cicatrizes nas costas dela,
silenciosamente fazendo juramento após juramento de que algum dia voltaria para Endovier e
derrubaria aquele lugar, pedra por pedra.
— Capitão?
Chaol piscou, percebendo que alguém havia feito uma pergunta, e se mexeu na cadeira.
— Repita — ordenou ele, recusando-se a se permitir corar.
— Precisamos de mais guardas no parque?
Que merda, ele nem sabia por que estavam perguntando aquilo. Houvera algum incidente? Se
perguntasse, definitivamente saberiam que ele não estava ouvindo.
O capitão foi poupado de parecer um tolo quando alguém bateu à porta da pequena sala de
reunião do quartel, e então uma cabeça dourada surgiu do lado de dentro.
Apenas vê-la fez com que Chaol esquecesse o mundo ao seu redor. Todos na sala se viraram
para olhar para a porta, e enquanto Celaena sorria, ele lutou contra a vontade de socar as caras dos
guardas que a olhavam com tanta admiração. Aqueles eram seus homens, disse a si mesmo. E ela
era linda — e matava de medo quase metade deles. É claro que olhariam, e admirariam.
— Capitão — falou Celaena, parada na porta. O alto das suas bochechas estava corado, o que
fazia com que os olhos da jovem brilhassem, levando Chaol a pensar em como ela ficava quando
estavam enroscados um no outro. A campeã inclinou a cabeça na direção do corredor. — O rei
deseja vê-lo.
Chaol teria sentido uma corrente de nervosismo, teria começado a pensar o pior, caso não
tivesse visto aquele lampejo de malícia nos olhos dela.Levantou-se, fazendo uma reverência com a cabeça para os homens.
— Decidam entre si a respeito do parque e me comuniquem mais tarde — disse ele, e saiu
rapidamente da sala.
O capitão manteve uma distância respeitável, até que viraram uma esquina para um corredor
vazio, e ele se aproximou, precisava tocá-la.
— Philippa e as criadas ficarão fora até o jantar — falou Celaena, com a voz rouca.
Chaol trincou os dentes diante do efeito que a voz dela exercia nele, como se alguém arrastasse
um dedo invisível por sua coluna.
— Tenho reuniões durante o resto do dia. — O capitão conseguiu dizer. Era verdade. —
Tenho outra em vinte minutos. — Para a qual certamente se atrasaria se a seguisse, considerando
quanto tempo levaria para caminhar até os aposentos dela.
Celaena parou, franzindo a testa para ele. Mas os olhos de Chaol se moveram até a pequena
porta de madeira a poucos metros de distância. Um armário de vassouras. Ela seguiu a atenção do
capitão e um sorriso lento se espalhou por seu rosto. A jovem se voltou para a porta, mas Chaol
agarrou a mão dela, aproximando seus rostos.
— Vai precisar ficar muito quieta.
Ela estendeu a mão para a maçaneta e abriu a porta, puxando-o para dentro.
— Tenho a sensação de que eu vou dizer isto a você em alguns segundos — sussurrou Celaena
sedutoramente, os olhos brilhando com o desafio.
O sangue de Chaol rugia por seu corpo, e ele a seguiu para dentro do armário e travou uma
vassoura sob a maçaneta.
— Um armário de vassouras? — falou Nehemia, sorrindo com malícia. — Sério?
Celaena estava esparramada na cama da princesa e jogou uma uva-passa coberta com chocolate
na boca.
— Juro por minha vida.
Nehemia pulou para o colchão. Ligeirinha saltou parando ao lado da princesa e praticamente
se sentou no rosto de Celaena ao agitar a cauda para Nehemia.
A assassina empurrou a cadela suavemente e deu um sorriso tão largo que o rosto doeu.
— Quem diria que eu estava perdendo tanta diversão? — E pelos deuses, Chaol era... Bem,
ela corou ao pensar no quanto sentia prazer com ele depois que seu corpo se acostumou. Apenas o
toque dos dedos do capitão em sua pele era capaz de transformá-la em uma fera selvagem.— Eu poderia ter dito a você — falou Nehemia, passando a mão por cima da campeã para
pegar um chocolate do prato na mesa de cabeceira. — Mas acho que a verdadeira pergunta é:
quem adivinharia que o solene capitão da Guarda poderia ser tão apaixonado? — A princesa se
deitou ao lado de Celaena, também sorrindo. — Estou feliz por você, minha amiga.
A jovem sorriu em resposta.
— Acho que... Acho que também estou feliz por mim.
E estava. Pela primeira vez em anos, estava verdadeiramente feliz. A sensação envolvia cada
pensamento seu, uma ramificação de esperança que crescia a cada fôlego. Celaena tinha medo de
olhar para isso por muito tempo, como se reconhecer a sensação a fizesse desaparecer de alguma
forma. Talvez o mundo jamais fosse perfeito, talvez algumas coisas jamais fossem corretas, mas
quem sabe ela tivesse alguma chance de encontrar o próprio tipo de paz e liberdade.
Celaena sentiu a mudança em Nehemia antes de a princesa sequer dizer uma palavra, como se
uma corrente no ar esfriasse de algum modo. Virou o rosto e viu Nehemia encarando o teto.
— O que foi?
Nehemia passou a mão no rosto e emitiu um suspiro profundo.
— O rei me pediu para falar com as forças rebeldes. Para convencê-las a recuar. Ou vai
massacrar todos.
— Ele ameaçou fazer isso?
— Não diretamente, mas estava implícito. Ao fim do mês, vai enviar Perrington para a
fortaleza do duque em Morath. Não duvido nem por um minuto de que o rei o queira na fronteira
sul para monitorar as coisas. Perrington é seu braço direito. Então, se o duque decidir que é
preciso lidar com os rebeldes, ele tem permissão para usar qualquer força necessária para eliminá-
los.
Celaena se sentou, cruzando as pernas sob o corpo.
— Então vai voltar para Eyllwe?
Nehemia balançou a cabeça.
— Não sei. Preciso estar aqui. Há... há coisas que preciso fazer aqui. Neste castelo e nesta
cidade. Mas não posso abandonar meu povo para outro massacre.
— Seus pais ou irmãos não poderiam lidar com os rebeldes?
— Meus irmãos são jovens demais, e inexperientes, e meus pais já têm muito com que lidar
em Banjali. — A princesa se sentou, e Ligeirinha apoiou a cabeça no seu colo, esticando-se entre
as duas, e dando alguns chutes com as pernas traseiras em Celaena ao fazer isso. — Cresci sabendo
do peso de minha coroa. Quando o rei invadiu Eyllwe há tantos anos, eu sabia que algum dia
precisaria fazer escolhas que me assombrariam. — Ela apoiou a testa na palma da mão. — Não
achei que seria tão difícil. Não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo.
O peito de Celaena se apertou e ela colocou a mão nas costas da amiga. Não era surpreendente
que Nehemia andasse tão lenta na investigação da charada do olho. Vergonha corou as bochechas
da assassina.
— O que farei, Elentiya, se ele matar mais quinhentas pessoas? O que farei se ele decidir
massacrar todos em Calaculla para servir de exemplo? Como posso virar as costas para eles?
Celaena não tinha resposta. Havia passado a semana perdida em pensamentos a respeito de
Chaol. Nehemia passara a semana tentando equilibrar o destino de seu reino. E Celaena tinha
pistas se acumulando aos pés, pistas que poderiam ajudar a princesa na causa contra o rei, e uma
ordem de Elena que a assassina praticamente ignorara.
Nehemia pegou a mão da amiga.
— Prometa — disse ela, os olhos sombrios brilhando. — Prometa que vai me ajudar a libertar
Eyllwe dele.
Gelo percorreu as veias de Celaena.
— Libertar Eyllwe?
— Prometa que fará com que a coroa de meu pai seja devolvida a ele. Que fará com que meu
povo seja libertado de Endovier e de Calaculla.
— Sou apenas uma assassina. — Celaena afastou recolheu a mão. — E o tipo de coisa de que
está falando, Nehemia... — Levantou-se da cama, tentando controlar a pulsação acelerada. — Isso
seria loucura.
— Não há outro jeito. Eyllwe deve ser libertada. E com sua ajuda, podemos começar a reunir
um grupo para...
— Não. — Nehemia piscou, mas a assassina balançou a cabeça. — Não — repetiu ela. —
Nem por todo o mundo eu ajudaria você a reunir um exército contra ele. Eyllwe foi intensamente
atingida pelo rei, mas vocês mal tiveram um gostinho do tipo de brutalidade que ele despejou em
outros lugares. Se levantar uma força contra o rei, ele a massacrará. Não tomarei parte nisso.
— Então tomará parte em que, Celaena? — Nehemia ficou de pé, empurrando Ligeirinha do
colo. — Vai defender o quê? Ou apenas a si mesma?
Sua garganta doía, mas Celaena se obrigou a pronunciar as palavras:
— Não faz ideia do tipo de coisas que ele pode fazer contra você, Nehemia. Contra seu povo.
— Ele massacrou quinhentos rebeldes e as famílias deles!
— E destruiu meu reino inteiro! Você sonha com o poder e a honra da corte real de Terrasen,
mas não percebe o que significa o rei ter conseguido destruí-los. Eram a corte mais forte do
continente, eram a corte mais forte de todos os continentes, e o rei matou todos.— Ele teve o elemento surpresa — replicou a princesa.
— E agora tem um exército que beira os milhões. Não há nada a ser feito.
— Quando dirá basta, Celaena? O que a fará parar de fugir para enfrentar o que está diante de
você? Se Endovier e o suplício de meu povo não a comovem, o que comoverá?
— Sou uma pessoa.
— Uma pessoa escolhida pela rainha Elena, uma pessoa cuja testa queimou com um símbolo
sagrado no dia daquele duelo! Uma pessoa que, apesar de tudo, ainda respira. Nossos caminhos se
cruzaram por um motivo. Se você não é abençoada pelos deuses, então quem é?
— Isso é ridículo. Isso é loucura.
— Loucura? Loucura lutar pelo que é certo, por pessoas que não podem se defender sozinhas?
Acha que soldados são o pior que ele pode enviar? — O tom de voz de Nehemia se suavizou. —
Há coisas muito mais obscuras se reunindo no horizonte. Meus sonhos andam cheios de sombras e
asas, o ressoar de asas sobrevoando os vales. E todos os batedores ou espiões que enviamos para as
montanhas Canino Branco, para o desfiladeiro Ferian não retornam. Sabe o que o povo diz nos
vales abaixo? Que também ouvem asas cavalgando os ventos entre o desfiladeiro.
— Não entendo uma palavra do que está dizendo. — Mas Celaena tinha visto aquela coisa do
lado de fora da biblioteca.
Nehemia caminhou até ela e a agarrou pelos pulsos.
— Entende, sim. Quando olha para ele, sente que há um poder maior e deturpado ao redor.
Como um homem assim conquistou boa parte do continente tão rápido? Apenas com poder
militar? Como a corte de Terrasen caiu tão rapidamente, uma vez que seus defensores foram
treinados durante gerações para ser guerreiros? Como a corte mais poderosa do mundo foi
aniquilada em questão de dias?
— Você está cansada e chateada — falou Celaena, da forma mais calma possível, tentando não
pensar em como as palavras de Nehemia e de Elena eram parecidas. Ela se desvencilhou das mãos
da princesa. — Talvez devêssemos conversar sobre isto mais tarde...
— Não quero conversar sobre isto mais tarde!
Ligeirinha choramingou, colocando-se entre as duas.
— Se não atacarmos agora — continuou Nehemia —, o que quer que ele esteja preparando só
vai ficar mais poderoso. E, então, estaremos aquém de qualquer pingo de esperança.
— Não há esperança — disse a assassina. — Não há esperança em enfrentá-lo. Nem agora
nem nunca. — Essa era uma verdade que percebia aos poucos. Se Nehemia e Elena estivessem
certas a respeito daquela fonte de poder misteriosa, como poderiam destroná-lo? — E não farei
parte de qualquer plano que você tenha. Não vou ajudá-la a se matar e a matar ainda mais pessoas inocentes no processo.
— Não vai ajudar porque só se importa consigo mesma.
— E daí se for verdade? — Celaena estendeu os braços. — E daí se eu quiser passar o resto da
vida em paz?
— Nunca haverá paz, não enquanto ele reinar. Quando disse que não estava matando os
homens na lista do rei, achei que estivesse finalmente dando um passo na direção de se posicionar.
Achei que quando a hora chegasse, eu poderia contar com você para me ajudar a começar a
planejar. Não percebi que estava fazendo isso apenas para manter a própria consciência limpa!
Celaena começou a disparar na direção da porta.
Nehemia estalou a língua.
— Não me dei conta de que você era apenas uma covarde.
A campeã olhou por cima do ombro.
— Repita isso.
A princesa não hesitou.
— É uma covarde. Você não passa de uma covarde.
Os dedos de Celaena se fecharam em punhos.
— Quando seu povo estiver caído, morto, ao seu redor — grunhiu —, não venha chorando
para mim.
A assassina não deu à princesa a chance de responder antes de sair do quarto batendo os pés,
Ligeirinha no encalço.

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