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Não havia mais ninguém para executar aquela tarefa, não com os soldados e os embaixadores de
Eyllwe ainda a caminho para recuperar o corpo de Nehemia de onde estava enterrado no terreno
real. Ao abrir a porta do quarto que cheirava a sangue e dor, Celaena viu que alguém havia
limpado todos os traços da carnificina. O colchão tinha sumido, e ela parou à porta ao avaliar o
esqueleto do estrado da cama. Talvez fosse melhor deixar os pertences de Nehemia para as pessoas
que fossem levá-la de volta para Eyllwe.
Mas seriam amigos dela? A ideia de estranhos tocando os pertences da princesa,
empacotando-os como objetos comuns, a deixou louca de luto e ódio.
Quase tão louca quanto ficara mais cedo naquele dia, quando entrou no próprio aposento de se
vestir e rasgou todos os vestidos dos cabides, arrancou todos os pares de sapatos, todas as túnicas,
todos os laços e os mantos e os atirou no corredor.
Celaena queimou os vestidos que mais a lembravam de Nehemia, aqueles que usara nas aulas,
nas refeições e nas caminhadas pelo castelo. Foi apenas quando Philippa chegou para lhe dar um
sermão sobre a fumaça que Celaena se acalmou, permitindo que a criada pegasse as roupas que
restaram para doar. Mas fora tarde demais para impedi-la de queimar o vestido que usou na noite
do aniversário de Chaol. Aquele vestido havia sido o primeiro.
E quando o quarto estava vazio, a assassina enfiou uma bolsa com ouro nas mãos de Philippa e
pediu que comprasse roupas novas. A criada apenas lançou um olhar triste para ela — outra coisa
que a deixou enjoada — e foi embora.
Celaena levou uma hora para empacotar com cuidado e carinhosamente as roupas e as joias de Nehemia, e tentou não se perder por muito tempo nas lembranças que acompanhavam cada item.
Ou no cheiro de lótus que impregnava tudo.
Depois de trancar os baús, Celaena foi até a mesa de Nehemia, a qual estava cheia de papéis e
livros como se a princesa tivesse apenas saído por um segundo. Quando estendeu a mão para o
primeiro papel, os olhos de Celaena recaíram sobre o arco de cicatrizes ao redor da mão direita —
as marcas dos dentes do ridderak.
Os papéis estavam cobertos com rabiscos em eyllwe e... e marcas de Wyrd.
Incontáveis marcas de Wyrd, algumas em longas linhas, algumas compondo símbolos como
aqueles que Nehemia tracejara sob a cama de Celaena tantos meses antes. Como os espiões do rei
não os haviam levado? Ou será que ele nem se incomodara em vasculhar os aposentos da princesa?
Celaena começou a empilhar os papéis. Talvez ainda conseguisse aprender alguma coisa a respeito
das marcas, mesmo que Nehemia estivesse...
Morta, a assassina se obrigou a pensar. Nehemia está morta.
Celaena olhou para as cicatrizes na mão de novo e estava prestes a dar as costas para a mesa
quando viu um livro familiar enfiado embaixo de alguns papéis.
Era o livro do escritório de Davis.
Aquela cópia era mais velha, mais desgastada, porém era o mesmo livro. E, no verso da capa,
havia uma frase escrita com as marcas de Wyrd — marcas tão básicas que até mesmo Celaena
conseguia entender.
Não confie...
O símbolo final, no entanto, era um mistério. Parecia uma serpente alada, o selo real. É claro
que não deveria confiar no rei de Adarlan.
Celaena folheou o livro, buscando alguma informação. Nada.
Então ela virou para a quarta capa. E ali, Nehemia havia escrito...
É apenas com o olho que se pode ver corretamente.
Estava escrito na língua comum, depois em eyllwe, depois em algumas outras que Celaena não
reconheceu. Traduções diferentes, como se Nehemia tivesse refletido a respeito de a charada ter
algum significado em outra língua. O mesmo livro, a mesma charada, a mesma frase no verso.
O absurdo de algum lorde desocupado, dissera Nehemia.
Mas Nehemia... Nehemia e Archer lideravam o grupo ao qual Davis pertencia. Nehemia conhecera Davis; conhecera e mentira sobre isso, mentira sobre a charada e...
A princesa prometera. Prometera que não haveria mais segredos entre as duas.
Prometera e mentira. Prometera e enganara Celaena.
Ela abafou um grito ao rasgar todos os outros papéis na mesa, no quarto. Nada.
Sobre o que mais Nehemia mentira?
É apenas com o olho...
Celaena tocou o colar. Nehemia sabia sobre o mausoléu. Se estava dando informações àquele
grupo e tinha encorajado a amiga a olhar pelo olho entalhado na parede... então Nehemia também
andava olhando. Mas depois do duelo, ela havia devolvido o Olho de Elena para Celaena; se
tivesse precisado dele, a princesa teria ficado com a joia. E Archer não mencionara qualquer coisa
sobre aquilo.
A não ser que aquele não fosse o olho ao qual se referia a charada.
Porque...
— Por Wyrd — sussurrou Celaena, e saiu correndo do quarto.
Mort grunhiu quando ela apareceu à porta do mausoléu.
— Planeja macular mais algum objeto sagrado esta noite?
Carregando uma bolsa cheia de papéis e livros que havia levado dos próprios aposentos,
Celaena apenas deu tapinhas na cabeça da aldraba ao passar. Os dentes de bronze tilintaram uns
contra os outros quando ele tentou mordê-la.
O mausoléu estava iluminado pelo luar, claro o suficiente para se enxergar. E ali, diretamente
diante do olho na parede, havia outro olho, dourado e reluzente.
Damaris. Era Damaris, a Espada da Verdade. Gavin só conseguia ver o que era certo...
É apenas com o olho que se pode ver corretamente.
— Sou tão cega assim? — Celaena jogou a sacola de couro no chão, os livros e os papéis se
espalharam pelas pedras.
— Parece que sim! — cantarolou Mort. O punho em formato de olho era exatamente dotamanho...
A jovem ergueu a espada do suporte e a desembainhou. As marcas de Wyrd na lâminapareceram se acender. Ela correu de volta para a parede.
— Caso não tenha percebido — gritou Mort —, deve segurar o olho contra o buraco na paredee olhar através dele.

coroa da meia noite Onde histórias criam vida. Descubra agora