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Chaol perdeu o fôlego. Lembrava-se de Celaena gritando no duelo com Cain, quando fora
provocada com o assassinato brutal dos pais — quando acordara coberta no sangue deles. A
assassina jamais contara nada além disso para Chaol, e ele não tinha ousado perguntar. O capitão
sabia que ela era pequena, mas não havia se dado conta de que tinha apenas 8 anos. Oito.
Dez anos antes, Terrasen estava em levante, e qualquer um que desafiara as forças invasoras de
Adarlan tinha sido massacrado. Famílias inteiras foram arrastadas dos lares e assassinadas. O
estômago dele se apertou. Que horrores Celaena teria testemunhado naquele dia?
Chaol passou a mão pelo rosto.
— Ela contou a você sobre os pais no bilhete? — Talvez tivesse um pouco mais de informação,
qualquer coisa para que ele entendesse melhor com que tipo de mulher lidaria quando Celaena
voltasse, que tipo de lembranças precisaria enfrentar.
— Não — respondeu Nehemia. — Não me contou. Mas eu sei.
A princesa observou o capitão com uma imobilidade calculada, uma mudança para posição
defensiva que Chaol reconhecia. Que tipo de segredos protegia para a amiga? E que tipo de
segredos a própria Nehemia mantinha para fazer com que o rei a vigiasse? O fato de Chaol não ter
nenhuma informação sobre aquilo, sobre o quanto o rei sabia, o deixava absolutamente irado. E
então havia a outra pergunta: quem ameaçara a vida da princesa? O capitão ordenara que mais
guardas a vigiassem, mas até então não houvera sinal de ninguém que quisesse feri-la.
— Como sabe sobre os pais dela? — perguntou ele.
— Algumas coisas a gente ouve com os ouvidos. Outras ouvimos com o coração. — Chaol desviou o rosto da intensidade nos olhos da princesa.
— Quando ela volta?
Nehemia retornou para o livro diante de si. Parecia cheio de símbolos estranhos; marcas
vagamente familiares que instigavam a memória dele.
— Disse que não voltaria até depois do pôr do sol. Se eu tivesse que adivinhar, diria que ela
não queria gastar um minuto da luz do dia nesta cidade, principalmente neste castelo.
No lar do homem cujos soldados provavelmente haviam massacrado a família dela.
Chaol fez a corrida matinal sozinho. Correu pelo parque de caça coberto de névoa até exaurir
os ossos.
Na encosta enevoada acima de Forte da Fenda, Celaena caminhava entre as árvores da pequena
floresta, pouco mais que um fiapo de escuridão serpenteando entre o mato. Caminhava desde antes
do amanhecer, deixando Ligeirinha seguir como quisesse. Naquele dia, até a floresta parecia
silenciosa.
Que bom. Aquele não era um dia para os sons da vida. Aquele era um dia para o vento vazio
que farfalhava os galhos, para a corrente de um rio meio congelado, para o estalar da neve sob suas
botas.
Naquele dia do ano anterior, Celaena sabia o que precisava fazer — vira cada passo com uma
clareza tão violenta que fora fácil quando o momento chegou. Contou, certa vez, a Dorian e Chaol
que havia perdido a cabeça naquele dia nas Minas de Sal de Endovier, mas isso era mentira. Perder
a cabeça implicava um sentimento humano demais; nada como o ódio frio e desesperado que havia
tomado conta e afastado todo o resto quando ela acordou do sonho com o cervo e a ravina.
Celaena encontrou uma rocha grande aninhada entre as saliências e reentrâncias e desabou
sobre o topo liso e frio como gelo, Ligeirinha rapidamente se sentou ao lado da dona. Depois de
abraçar a cadela, olhou para a floresta silenciosa e se lembrou do dia em que libertara sua ira sobre
Endovier.

Celaena ofegava por entre os dentes expostos enquanto puxava a picareta do estômago do capataz. O
homem gorgolejava sangue, agarrado às entranhas enquanto olhava para os escravos de modo
suplicante. Mas um olhar da jovem, um lampejo de olhar que mostrava que ela estava fora de si,manteve os escravos imóveis.
Ela apenas sorriu para o capataz ao descer a picareta no seu rosto. O sangue respingou nas
pernas dela.
Os escravos ainda mantinham distância quando Celaena desceu a picareta sobre os grilhões que
atavam seus tornozelos ao restante deles. Não se ofereceu para libertar os demais escravos, e eles não
pediram; sabiam que seria inútil.
A mulher na ponta da corrente estava inconsciente. As costas jorravam sangue, dilaceradas pelo
chicote com ponta de ferro do capataz morto. Morreria no dia seguinte se seus ferimentos não fossem
tratados. Mesmo que fossem, provavelmente morreria de infecção. Endovier se divertia daquela
forma.
Celaena se afastou da mulher. Tinha trabalho a fazer, e quatro capatazes precisavam pagar
uma dívida antes que ela terminasse.
A jovem saiu do poço da mina com a picareta da mão. Os dois guardas no fim do túnel estavam
mortos antes de perceberem o que acontecia. Sangue encharcava as roupas e os braços expostos dela, e
a assassina limpou o sangue do rosto ao disparar para a câmara abaixo, na qual sabia que os quatro
capatazes trabalhavam.
Havia marcado os rostos deles no dia em que arrastaram aquela jovem de Eyllwe para trás do
prédio; marcara cada detalhe a respeito deles enquanto usavam a menina e depois abriam a
garganta dela de orelha a orelha.
Celaena poderia ter levado as espadas dos guardas caídos, mas para aqueles quatro homens,
precisava ser a picareta. Queria que soubessem qual era a sensação de Endovier.
A assassina chegou à entrada do setor deles na mina. Os dois primeiros capatazes morreram
quando Celaena enterrou a ferramenta em seus pescoços, golpeando entre um e outro. Os escravos dos
capatazes gritaram, recuando em direção às paredes quando Celaena passou, irada, por eles.
Ao chegar aos outros dois capatazes, permitiu que a vissem, permitiu que tentassem empunhar
as lâminas. Celaena sabia que não era a arma nas mãos dela que os deixava idiotas de pânico, mas
os olhos da assassina — olhos que diziam aos capatazes que eles foram enganados naqueles últimos
meses, que cortar os cabelos e chicotear Celaena não fora o bastante, que ela os ludibriara para que
esquecessem que a Assassina de Adarlan estava entre eles.
Mas Celaena não havia esquecido um segundo de dor nem o que os vira fazer com os outros —
com aquela jovem de Eyllwe, que implorara a deuses que não a salvaram.
Os homens morreram rápido demais, mas Celaena tinha mais uma tarefa para completar antes
de ir ao encontro da própria morte. Apressou-se de volta para o túnel principal que dava para fora
das minas. Guardas dispararam tolamente para fora das bocas dos túneis para encontrá-la.Celaena se impulsionou para cima, golpeando e girando. Mais dois guardas caíram, e ela pegou
as espadas deles, deixando a picareta para trás. Os escravos não comemoraram conforme os opressores
caíam; apenas observaram em silêncio, compreendendo. Aquela não era uma luta para escapar.
A luz da superfície a fez piscar, mas Celaena estava pronta. A necessidade de ajustar os olhos ao
sol seria sua maior fraqueza. Por isso, esperou até a luz mais amena da tarde. O crepúsculo teria
sido melhor, mas essa hora do dia era vigiada demais, e havia muitos escravos do lado de fora que
seriam pegos no fogo cruzado. A última hora de total luz do dia, quando o sol quente embalava
muitos no sono, era quando as sentinelas relaxavam nas vigílias antes da inspeção da noite.
As três sentinelas na entrada das minas não sabiam o que acontecia embaixo. Todos sempre
gritavam em Endovier. Todos soavam iguais ao morrer. E as três sentinelas gritaram exatamente
como os demais.
E, então, Celaena corria, disparando para a morte que a chamara, seguindo para a muralha de
pedra enorme do outro lado do complexo.
Flechas passavam zunindo, e ela ziguezagueava. Não a matariam por ordem do rei. Uma
flecha no ombro ou na perna, talvez. Mas Celaena os faria reconsiderar as ordens recebidas depois
que a carnificina fosse grandiosa demais para ignorar.
Outras sentinelas surgiram correndo de toda parte, e as lâminas de Celaena eram uma canção de
fúria de aço conforme ela passava pelos guardas. O silêncio recaiu sobre Endovier.
Ela levou um corte na perna — profundo, mas não o suficiente para cortar o tendão. Ainda a
queriam apta ao trabalho. Mas a assassina não trabalharia — não de novo, não para eles. Quando
a contagem dos mortos estivesse alta demais, não teriam escolha a não ser atravessar uma flecha na
garganta dela.
No entanto,Celaena se aproximou do portão, e as flechas cessaram.
Ela começou a gargalhar quando se viu cercada por quarenta guardas, e riu ainda mais quando
eles pediram grilhões.
Ainda ria quando atacou uma última vez — uma última tentativa de tocar a parede. Quatro
mais caíram atrás dela.
Ainda ria quando o mundo ficou escuro e seus dedos tocaram o chão rochoso — a menos de 2centímetros da muralha.

Chaol se levantou do assento na mesa da antessala de Celaena quando a porta se abriu
cuidadosamente. O corredor do lado de fora estava escuro, as luzes completamente queimadas; a maioria do castelo dormia, aconchegada na cama. O capitão ouvira o relógio soar a meia-noite
havia algum tempo, mas sabia que não era exaustão que pesava sobre os ombros de Celaena
quando ela entrou nos aposentos. A pele sob os olhos da jovem estava roxa, o rosto estava abatido,
e os lábios, sem cor.
Ligeirinha correu até Chaol, balançando a cauda, e lambeu a mão dele algumas vezes antes de
marchar para dentro do quarto, deixando-os sozinhos.
Celaena olhou para ele uma vez, os olhos turquesa e dourado exaustos e assombrados, e
começou a desatar o manto, passando pelo capitão e seguindo em direção ao quarto.
Sem palavras, Chaol a seguiu, apenas porque Celaena não exibia um ar de advertência ou
reprovação na expressão — era mais uma impassibilidade que sugeria que ela não teria ligado se
tivesse encontrado o próprio rei de Adarlan nos aposentos.
A jovem tirou o casaco, então as botas, deixando-os onde os havia tirado. Chaol virou o rosto
quando Celaena desabotoou a túnica e entrou no vestiário. Saiu um instante depois, vestindo uma
camisola muito mais modesta do que a de renda habitual. Ligeirinha já havia pulado na cama,
esparramando-se nos travesseiros.
Chaol engoliu em seco. Deveria ter dado privacidade a Celaena em vez de esperar ali. Se ela o
quisesse em seu aposento, teria mandado um bilhete.
A assassina parou diante da lareira pouco iluminada e usou o atiçador para mexer o carvão
antes de jogar mais duas lenhas dentro. Ela encarou as chamas. Ainda estava de costas para Chaol
quando falou:
— Se está tentando descobrir o que dizer para mim, não se incomode. Não há nada que possa
ser dito ou feito.
— Então me permita fazer companhia. — Se Celaena percebera o quanto ele sabia, não se
importou em perguntar como.
— Não quero companhia.
— Querer e precisar são coisas diferentes. — Nehemia, provavelmente, deveria estar ali, outra
filha de um reino conquistado. Mas Chaol não queria que fosse Nehemia quem Celaena
procurasse. E apesar da lealdade ao rei, não podia dar as costas a ela, não naquele dia.
— Então só vai ficar aqui a noite toda? — Celaena voltou os olhos para o sofá entre eles.
— Já dormi em lugares piores.
— Acho que minha experiência com “lugares piores” é muito mais horrível do que a sua. —
De novo, aquele nó no estômago. Mas então Celaena olhou pela porta aberta do quarto para a
mesa da antessala, e as sobrancelhas se ergueram. — Aquilo é... bolo de chocolate?
— Achei que poderia precisar de um pouco.
— Precisar, não querer?
O fantasma de um sorriso tomou os lábios dela, e Chaol quase curvou o corpo, aliviado, ao
dizer:
— Para você, eu diria que bolo de chocolate é muito definitivamente uma necessidade.
Celaena caminhou da lareira até onde ele estava, parou à distância de um palmo e levantou o
rosto para encarar Chaol. Parte da cor havia retornado ao rosto dela.
O capitão deveria recuar, abrir mais distância entre os dois. Mas, em vez disso, percebeu que a
buscava, deslizava uma das mãos pela cintura dela e entrelaçava a outra em seus cabelos enquanto
a segurava com força contra o próprio corpo. O coração de Chaol acelerava dentro do peito com
tanta intensidade que ele sabia que Celaena conseguia sentir. Depois de um segundo, os braços
dela envolveram-no, os dedos cravaram-se nas costas dele de um modo que fez o capitão perceber
o quanto estavam próximos.
Ele afastou essa sensação, mesmo quando a textura sedosa dos cabelos da jovem contra seus
dedos despertava uma vontade de enterrar o rosto naqueles fios, e o cheiro dela, entremeado com a
névoa e a noite, fazia com que o capitão roçasse o nariz no pescoço da assassina. Havia outros tipos
de conforto que Chaol poderia oferecer além de meras palavras, e se ela precisava daquele tipo de
distração... Chaol afastou esse pensamento também, engolindo-o até quase engasgar.
Os dedos de Celaena percorriam as costas de Chaol, ainda enterrando-se nos músculos dele
com um tipo de possessão desenfreada. Se ela continuasse tocando-o daquele jeito, o controle do
capitão se perderia por completo.
E, então, Celaena se afastou, apenas o bastante para encará-lo de novo, mas ainda tão perto
que a respiração deles se misturava. Chaol percebeu que media a distância entre os lábios deles, os
olhos movendo-se da boca para os olhos dela, a mão que entrelaçara nos fios de cabelo dela parada.
O desejo rugia dentro do capitão, queimando cada defesa que havia erguido, apagando cada
limite que Chaol havia se convencido de que precisava manter.
Então, ela falou, tão baixo que foi quase um sussurro:
— Não sei se deveria sentir vergonha por querer ter você nos braços neste dia ou gratidão
porque, apesar do que aconteceu até agora, foi isso que, de alguma forma, me trouxe até você.
Chaol ficou tão espantado com as palavras que a soltou; soltou e deu um passo para trás. Ele
tinha obstáculos a superar, mas ela também — talvez até mais do que Chaol sequer percebera.
O capitão não tinha resposta para o que Celaena tinha dito. Mas ela não deu tempo para que
ele pensasse nas palavras certas e caminhou até o bolo de chocolate na antessala, sentou na cadeirae o devorou.


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