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– Mort — falou Celaena, e a aldraba em forma de caveira abriu um olho.
— É muito grosseiro acordar alguém que está dormindo — disse ele, sonolento.
— Teria preferido que eu batesse na sua cara? — Ele a olhou com raiva. — Preciso saber uma
coisa. — Celaena estendeu o amuleto. — Este colar... tem poder de verdade?
— É claro que tem.
— Mas tem milhares de anos.
— E daí? — Mort bocejou. — É mágico. Coisas mágicas raramente envelhecem como objetos
normais.
— Mas o que ele faz?
— Protege você, como disse Elena. Ele a afasta do mal, embora você certamente pareça fazer o
possível para se meter em confusão.
Celaena abriu a porta.
— Acho que sei o que ele faz. — Talvez fosse mera coincidência, mas a charada tinha palavras
tão específicas. Talvez Davis estivesse procurando pela mesma coisa que Elena queria que Celaena
encontrasse: a fonte do poder do rei. Aquele poderia ser o primeiro passo para desvendar isso.
— Você provavelmente está errada — falou Mort quando Celaena passou por ele. — Só estou
avisando.
Ela não deu ouvidos. Foi direto para o olho oco na parede e ficou na ponta dos pés para olhar
através dele. A parede do outro lado ainda estava vazia. Celaena abriu o colar e cuidadosamente
ergueu o amuleto até o olho e...Coube. Mais ou menos. O fôlego dela ficou preso na garganta, e Celaena inclinou o corpo na
direção do buraco, olhando pelas delicadas fitas douradas.
Nada. Nenhuma mudança na parede ou na marca de Wyrd gigante. Ela virou o colar de
cabeça para baixo, mas teve o mesmo efeito. Celaena tentou dos dois lados, ao contrário, inclinado
— e nada. Apenas a mesma parede de pedra vazia, iluminada por um feixe de luar de alguma
fresta acima. Ela pressionou as mãos na pedra tateando em busca de alguma porta, algum painel
móvel.
— Mas é o Olho de Elena! É apenas com o olho que se pode ver corretamente! Que outro olho
existe?
— Você poderia arrancar o próprio e ver se cabe — cantarolou Mort da porta.
— Por que não funciona? Preciso dizer algum feitiço? — Ela olhou para o sarcófago da rainha.
Talvez o feitiço fosse desencadeado por palavras antigas, palavras ocultas bem debaixo do nariz
dela. Não era sempre assim que as coisas aconteciam? Celaena recolocou o amuleto na pedra. —
Ah! — gritou ela para o ar da noite, recitando as palavras gravadas aos pés de Elena. — Fenda do
Tempo!
Nada aconteceu.
Mort deu uma risada. A campeã arrancou o amuleto da parede.
— Ah, odeio isto! Odeio este mausoléu idiota, e odeio estas charadas e estes mistérios idiotas!
— Tudo bem, tudo bem. Nehemia estava certa sobre o amuleto ser um beco sem saída. E Celaena
era uma amiga desprezível e horrorosa por ser tão desconfiada e impaciente.
— Falei que não iria funcionar.
— Então o que vai funcionar? Aquela charada faz referência a algo neste mausoléu... atrás
daquela parede. Não faz?
— Sim, faz. Mas você ainda não fez a pergunta certa.
— Já fiz dezenas de perguntas! E você não me dá respostas!
— Volte outra... — começou Mort, mas Celaena já saíra batendo os pés escada acima.
Celaena estava parada na beira estéril de uma ravina, um vento frio do norte esvoaçava seus
cabelos. Já tivera aquele sonho; sempre o mesmo cenário, sempre naquela noite do ano.
Atrás de Celaena inclinava-se uma clareira rochosa e sem verde, e diante dela estendia-se um
abismo tão longo que desaparecia no horizonte estrelado. Do outro lado da ravina, havia um
bosque luxuriante e escuro, farfalhando   com vida.
E na beira gramada do outro lado estava o cervo branco, observando-a com olhos antigos. As
enormes galhadas do animal brilhavam ao luar, cobrindo-o de glória marfim, exatamente como
Celaena lembrava. Tinha sido em uma noite fria como aquela que ela o vira pelas grades do vagão
da prisão, a caminho de Endovier, o lampejo de um mundo antes de ter sido queimado até as
cinzas.
Os dois se observavam em silêncio.
Celaena deu meio passo na direção da beira, mas parou quando pedrinhas soltas saíram
rolando, caindo na ravina. Não havia fim na escuridão daquele penhasco. Nenhum fim e nenhum
começo tampouco; rostos esquecidos. Às vezes parecia que a escuridão a encarava de volta — e o
rosto da escuridão era o de Celaena.
Sob a penumbra, ela poderia ter jurado ouvir a corrente de um rio meio congelado, cheio da
neve derretida das montanhas Galhada do Cervo. Um lampejo de branco, o estampido de cascos
na terra macia, e a assassina ergueu o rosto da ravina. O cervo se aproximou, a cabeça agora
inclinada, como se a convidasse para se juntar a ele.
Mas a ravina só parecia ficar mais extensa, como a mandíbula de uma besta gigante abrindo-se
para devorar o mundo.
Então Celaena não atravessou, e o cervo se virou, os passos quase silenciosos enquanto o
animal desaparecia entre as árvores emaranhadas do bosque eterno.
Celaena acordou na escuridão. O fogo era apenas cinzas e a lua tinha se posto.
Avaliou o teto, as leves sombras projetadas pelas luzes da cidade a distância. Era sempre o
mesmo sonho, sempre naquela única noite.
Como se alguma vez fosse capaz de se esquecer do dia em que tudo que amava fora arrancado
dela, e em que acordara coberta de sangue que não era o seu.
Ela saiu da cama, Ligeirinha descendo ao lado. Caminhou alguns passos, então parou no
centro do aposento, encarando a escuridão, a infinita ravina que ainda a chamava. Ligeirinha
cutucou com o focinho as pernas expostas da dona, que abaixou o braço para acariciar a cabeça da
cadela.
As duas ficaram ali por um momento, olhando aquela escuridão sem fim.
Celaena saiu do castelo muito antes de o dia nascer.Quando ela não apareceu na porta do quartel ao alvorecer, Chaol aguardou dez minutos antes de
marchar até os aposentos dela. Só porque Celaena não queria sair no frio não era desculpa para ser
relaxada com o treinamento. Sem falar que o capitão estava particularmente interessado em ouvir a
história de como ela roubara uma égua Asterion do senhor de Xandria. Ele sorriu ao pensar nisso,
balançando a cabeça. Apenas Celaena teria a ousadia de fazer algo assim.
O sorriso sumiu quando ele chegou aos aposentos de Celaena e encontrou Nehemia sentada
na pequena mesa da antessala, uma xícara de chá fumegante diante dela. Havia alguns livros
empilhados diante da princesa, e ela ergueu o rosto de um deles quando Chaol entrou. O capitão
fez uma reverência. A princesa apenas falou:
— Ela não está aqui.
A porta do quarto de Celaena estava suficientemente aberta para revelar a cama vazia, que já
fora feita.
— Onde ela está?
Os olhos de Nehemia se suavizaram, e ela pegou um bilhete que estava entre os livros.
— Tirou o dia de folga hoje — falou a princesa, lendo o bilhete antes de apoiá-lo. — Se eu
tivesse que adivinhar, diria que está tão longe da cidade quanto se pode chegar com meio dia de
cavalgada.
— Por quê?
A princesa deu um sorriso triste.
— Porque hoje é o décimo aniversário da morte dos pais dela.

coroa da meia noite Onde histórias criam vida. Descubra agora