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Dorian olhava para a estranha escada em espiral. Celaena havia encontrado as lendárias catacumbas
abaixo da biblioteca. É claro que havia. Se tinha alguém em Erilea que poderia encontrar uma
coisa dessas, era ela.
O príncipe estava prestes a sair para almoçar quando a viu caminhando na direção da
biblioteca, uma espada amarrada às costas. Talvez a tivesse deixado em paz se a jovem não
estivesse com os cabelos trançados. Celaena nunca prendia o cabelo, a não ser que estivesse
lutando. E quando estava prestes a se sujar.
Aquilo não era espionar. E não era espreitar. Dorian estava meramente curioso. Ele a seguiu
pelos longos corredores e salas esquecidos, sempre se mantendo bem atrás, os passos silenciosos
como Chaol e Brullo haviam ensinado anos antes. O príncipe seguiu até Celaena desaparecer por
aquela escadaria, dando uma olhadela desconfiada por cima do ombro.
Sim, a assassina tramava alguma coisa. Então Dorian esperou. Um minuto. Cinco minutos.
Dez minutos antes de a seguir. Para fazer parecer um acidente caso os caminhos dos dois se
cruzassem.
E agora, o que ele via? Nada além de lixo. Pergaminhos e livros velhos espalhados. Mais além,
havia uma segunda escadaria em espiral, acesa da mesma forma que a anterior.
Um calafrio percorreu o corpo dele. Dorian não gostava nada daquilo. O que Celaena estava
fazendo ali?
Como se em resposta, a magia do príncipe gritou para que ele corresse no sentido oposto —
para que buscasse ajuda. Mas a biblioteca principal estava muito distante, e até que conseguisse ir até lá e voltar, algo poderia acontecer. Algo poderia já ter acontecido...
Dorian desceu rapidamente a escadaria e encontrou um corredor de iluminação fraca com uma
única porta deixada entreaberta, duas marcas escritas nela com giz. Ao ver o corredor em frente
ladeado por celas, ele congelou. O ferro fedia, de alguma forma — e fazia com que o estômago
dele revirasse.
— Celaena? — chamou Dorian pelo corredor. Nenhuma resposta. — Celaena? — Nada.
Precisava dizer a ela para sair de lá. O que quer que fosse aquele lugar, nenhum dos dois
deveria estar ali. Mesmo que o poder no seu sangue não estivesse gritando, ele sabia. Precisava
tirá-la dali.
Dorian desceu a escadaria.
Celaena meio que corria e saltava escadaria abaixo, fugindo do interior da torre do relógio o mais
rápido possível. Embora fizesse meses desde que havia encontrado os mortos durante o duelo com
Cain, a lembrança de ser atirada contra a parede escura da torre ainda estava próxima demais. Ela
conseguia ver os mortos sorrindo, e recordou-se das palavras de Elena no Samhuinn sobre os oito
guardiões na torre do relógio e sobre como deveria ficar longe deles.
A cabeça da jovem doía tanto que ela mal conseguia se concentrar nos degraus sob os pés.
O que estivera ali? Aquilo não tinha nada a ver com Gavin, ou com Brannon. Talvez a
masmorra tivesse sido construída naquela época, mas aquilo — tudo aquilo — precisava estar
ligado ao rei. Porque ele havia construído a torre do relógio, construído com...
Obsidiana pelos deuses proibida,
Pedra que eles tanto temiam.
Mas... mas as chaves deveriam ser pequenas. Não colossais, como a torre do relógio. Não...
Celaena chegou à base da escadaria do relógio e congelou ao olhar para a passagem que
continha a cela destruída.
As tochas haviam se apagado. Ela olhou para trás, na direção da torre do relógio. A escuridão
parecia se expandir, estendendo-lhe a mão. Celaena não estava sozinha.
Agarrada à própria tocha, mantendo a respiração equilibrada, ela seguiu sorrateiramente pela
passagem em ruínas. Nada — nenhum som, nenhuma indicação de outra pessoa na passagem.
Mas...Na metade do caminho para baixo, Celaena parou de novo e apoiou a tocha. Ela havia
marcado todas as curvas, contara os passos conforme se dirigia até lá. Conhecia o caminho pela
escuridão, conseguiria encontrar o caminho de volta vendada. E se não estava sozinha ali embaixo,
a tocha funcionaria como um farol. Celaena não estava nem um pouco inclinada a virar um alvo. A
assassina apagou a chama com um pisão.
Escuridão total.
Celaena ergueu mais Damaris, ajustando a vista à escuridão. Mas não estava completamente
escuro. Um brilho tênue era emitido do amuleto — um brilho que a permitia enxergar apenas
formas confusas, como se a escuridão fosse forte demais para o Olho. Os pelos de sua nuca se
arrepiaram. A única outra vez que vira o amuleto brilhar daquela forma... Tateando pela parede
com a outra mão, sem ousar virar de costas, voltou devagar na direção da biblioteca.
Houve um roçar de unha contra a pedra, então o ruído de respiração.
Não era a dela.
A coisa olhava pelas sombras da cela, agarrada à capa com mãos como garras. Comida. Pela
primeira vez em meses. Ela era tão quente, tão fervilhante com vida. A coisa saiu ligeira pela cela e
passou pela jovem que continuava a recuar às cegas.
Desde que a haviam trancado ali embaixo para apodrecer, desde que tinham se cansado de
brincar com ela, a coisa havia se esquecido de muito. Esquecera-se do próprio nome, do que
costumava ser. Mas agora sabia coisas mais úteis — melhores. Como caçar, como se alimentar,
como usar aquelas marcas para abrir e fechar portas. Havia prestado atenção durante os longos
anos; observara-os fazendo as marcas.
E depois que partiram, a coisa esperou até saber que não voltariam. Até que ele estivesse
olhando para outro lado e tivesse levado todas as outras coisas com ele. Então, começou a abrir
portas, uma após a outra. Algum fiapo da coisa permanecia mortal o suficiente para sempre trancar
as portas, para voltar ali e constituir as marcas que trancavam a porta novamente, para se manter
contida.
Mas a jovem chegara até ali. Aprendera as marcas, o que significava que tinha que saber —
saber o que havia sido feito com a coisa. A jovem só podia ter participado daquilo, do rompimento
e da fragmentação e, depois, da reconstrução violenta. E como ela tinha ido até lá...
A coisa se abaixou em outra sombra e esperou que a jovem caminhasse na direção de suasgarras.
Celaena parou de recuar quando a respiração foi interrompida. Silêncio.
A luz azul ao redor dela ficou mais forte.
Celaena levou a mão ao peito.
O amuleto se incendiou.
A coisa andava perseguindo os homenzinhos que viviam acima havia semanas, contemplando qual
seria o gosto deles. Mas havia sempre aquela luz amaldiçoada perto deles, luz que queimava seus
olhos sensíveis. Havia sempre algo que a mandava, fugida, de volta para lá, para o conforto da
pedra.
Ratos e seres rastejantes tinham sido sua única alimentação havia tempo demais, o sangue e os
ossos deles eram ralos e insípidos. Mas aquela fêmea... a coisa a encontrara duas vezes antes.
Primeiro, com aquela mesma luz azul fraca na garganta — então uma segunda vez, quando não a
vira, mas sentira o cheiro do outro lado daquela porta de ferro.
No andar de cima, a luz azul tinha sido o suficiente para afastar a coisa — a luz azul tinha
gosto de poder. Mas ali embaixo, na sombra da pedra negra que respirava, aquela luz foi reduzida.
Ali embaixo, agora que a coisa havia apagado as tochas que a jovem acendeu, não existia nada para
impedir o ataque, e ninguém para ouvir a vítima.
A coisa não tinha esquecido, nem nos caminhos distorcidos da memória, o que havia sido feito
com ela naquela mesa de pedra.
Com a boca salivando, a coisa sorriu.
O Olho de Elena queimou forte como chama, e Celaena ouviu um chiado no ouvido.
Virou-se, golpeando antes que conseguisse ver direito a figura coberta pelo manto atrás de si.
Viu apenas um lampejo de pele enrugada e dentes pontiagudos e quebrados antes de cortar o peito
da figura com Damaris.
A coisa gritou — gritou como nada que a assassina tinha ouvido antes quando o manto
esfarrapado se rasgou, revelando um peito ossudo e disforme salpicado de cicatrizes. As mãos com
garras se lançaram contra o rosto de Celaena ao cair, os olhos reluzentes pela luz do amuleto. Os olhos de um animal, capazes de ver no escuro.
A pessoa — criatura — do corredor. Do outro lado da porta. Celaena nem mesmo viu onde
feriu a criatura quando caiu no chão. Sangue escorreu do nariz e encheu sua boca. A assassina
disparou em uma corrida cambaleante na direção da biblioteca.
Celaena saltou sobre vigas caídas e pedaços de pedra, deixando que o Olho iluminasse o
caminho, mal se mantendo de pé conforme escorregava em ossos. A criatura saiu disparada atrás
dela, destruindo os obstáculos como se não passassem de cortinas de fios de seda. A criatura ficava
de pé como um homem, mas não era um homem — não, aquele rosto era algo saído de um
pesadelo. E a força daquilo, para conseguir empurrar aquelas vigas caídas como se fossem espigas
de trigo...
As portas de ferro estavam ali para manter aquilo do lado de dentro.
E Celaena destrancara todas elas.
Ela disparou para cima da pequena escada e atravessou o primeiro portal. Quando se virou
para a esquerda, a coisa a segurou pela parte de trás da túnica. O tecido rasgou. Celaena se chocou
contra a parede oposta, abaixando-se quando a coisa disparou na sua direção.
Damaris cantou e a criatura rugiu, caindo para trás. Sangue preto espirrou do ferimento no
abdômen. Mas Celaena não havia cortado fundo o bastante.
Ao ficar de pé, sangue escorrendo pelas costas do lugar em que as garras a haviam perfurado,
Celaena sacou uma adaga com a outra mão.
O capuz caíra da criatura, revelando o que parecia o rosto de um homem — parecia, porém
não era mais. Os cabelos eram ralos, pendendo do crânio reluzente em mechas grudadas, e os
lábios... havia tantas cicatrizes ao redor da boca, como se alguém a tivesse rasgado, então
costurado, depois rasgado de novo.
A criatura apertou a mão retorcida contra o abdômen, ofegando entre aqueles dentes marrons e
quebrados enquanto olhava para Celaena — olhava com tanto ódio que a jovem não conseguia se
mover. Era uma expressão tão humana...
— O que você é? — Ela arquejou, girando Damaris ao recuar mais um passo.
Mas a criatura subitamente começou a se atacar com as próprias garras, rasgando as vestes
escuras, puxando os cabelos, apertando o crânio, como se estivesse prestes a enfiar a mão dentro e
puxar algo para fora. E os gritos que emitia, o ódio e o desespero...
A criatura estivera no corredor do castelo.
O que significava...
Aquela coisa, aquela pessoa — sabia como usar as marcas de Wyrd também. E com aquela
força sobrenatural, nenhuma barreira mortal a conteria.
A criatura inclinou a cabeça para trás e os olhos animais se concentraram em Celaena de novo.
Fixos. Um predador antecipando o gosto da presa.
A assassina se virou e correu, desesperada.
Dorian acabara de passar pela terceira porta quando ouviu o grito de algo não humano. Uma série
de ruídos de coisas se quebrando encheu a passagem, e os urros eram interrompidos a cada
pancada.
— Celaena? — gritou Dorian, na direção da comoção.
Outra pancada.
— Celaena!
Então...
— Dorian, corra!
O grito esganiçado que se seguiu à ordem de Celaena tremeu as paredes. As tochas estalaram.
Dorian sacou o florete quando Celaena subiu disparada as escadas, sangue escorrendo no
rosto, e bateu a porta de ferro atrás de si. Ela correu na direção do príncipe, uma espada em uma
das mãos, uma adaga na outra. O amuleto no pescoço brilhava azul, como a mais quente das
chamas.
Celaena estava ao lado de Dorian em um segundo. A porta de ferro se escancarou atrás deles
e...
A coisa que saiu de dentro não era daquele mundo — não poderia ser. Parecia algo que
costumava ser um homem, mas estava retorcido e seco e quebrado, com fome e loucura estampadas
em cada osso protuberante do corpo. Deuses. Ai, deuses. O que ela havia despertado?
Os dois avançaram pelo corredor, e o príncipe xingou ao ver os degraus que levavam à porta
seguinte. O tempo que levaria para subir as escadas...
Mas Celaena era rápida. E meses de treinamento a haviam fortalecido. Para humilhação eterna
de Dorian, quando chegaram à base das escadas, ela o agarrou pelo colarinho da túnica, meio que
puxando-o para degraus acima. A assassina impulsionou Dorian para o corredor além do portal.
Atrás deles, a coisa urrava. Ele se virou a tempo de ver os dentes quebrados da criatura
brilhando ao subir as escadas. Ágil como um raio, Celaena bateu a porta de ferro na cara da
criatura.
Apenas mais uma porta — Dorian conseguia visualizar a plataforma que dava para o primeiro
corredor, então aquela escada em espiral, depois a segunda escada e...
E depois, quando chegassem à biblioteca principal? O que poderiam fazer contra aquela coisa?
Ao ver o terror puro no rosto de Celaena, Dorian soube que ela pensava o mesmo.
Celaena atirou o príncipe para o corredor, então impulsionou o corpo para trás, se chocando contra
a última porta de ferro que separava o covil da criatura do restante da biblioteca. Ela colocou o
peso sobre a porta e viu estrelas quando a coisa se atirou contra o outro lado. Pelos deuses, aquilo
era forte — forte e selvagem e insistente...
Por um momento, a jovem cambaleou para longe e a coisa tentou abrir a porta. Mas Celaena
impulsionou o corpo, atirando as costas contra a porta.
A mão da criatura ficou presa na porta, e ela urrou, rasgando o ombro de Celaena com as
garras enquanto a assassina empurrava e empurrava. Sangue escorria do nariz de Celaena,
misturando-se ao sangue que escorria dos ombros. As garras se enterraram mais.
Dorian correu, apoiando as costas na porta. Ele ofegava, olhando Celaena, boquiaberto.
Precisavam selar a porta. Mesmo que aquela coisa fosse inteligente o bastante para conhecer as
marcas de Wyrd, precisavam ganhar tempo. Ela precisava dar a Dorian tempo o suficiente para
sair. Perderiam as forças em breve, e a coisa invadiria e os mataria e quem mais entrasse em seu
caminho.
Devia haver uma tranca em algum lugar, algum modo de fechar a criatura do lado de dentro,
segurá-la por apenas um momento...
— Empurre — arquejou ela para Dorian.
A criatura ganhou 2 centímetros, mas Celaena empurrou forte, puxando a força das pernas. A
coisa rugiu de novo, tão alto que a assassina achou que sangue jorraria de seus ouvidos. Dorian
praguejou com vigor.
Celaena olhou para ele, sequer sentindo a dor das garras cravadas na pele. Suor escorreu pela
testa do príncipe quando... quando...
O metal começou a esquentar pelas beiradas da porta, brilhando vermelho, então chiou...
Havia magia ali; magia estava em curso bem naquele momento, tentando selar a porta contra a
criatura. Mas não vinha de Celaena.
Os olhos de Dorian estavam fechados de concentração, o rosto dele pálido como a morte.
Ela estava certa. Dorian tinha magia. Foi essa a informação que Pernas Amarelas quis vender
pelo lance mais alto, vender para o próprio rei. Era um conhecimento que poderia mudar tudo.
Poderia mudar o mundo.

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