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A tranca quebrada na porta do quarto de Celaena ainda não tinha sido consertada quando Dorian
chegou depois do café da manhã, com uma pilha de livros nos braços. Celaena estava diante da
cama, enfiando roupas em uma enorme sacola de couro. Ligeirinha foi a primeira a reconhecer a
presença do príncipe, embora ele não tivesse dúvida de que a jovem o ouvira chegando desde o
corredor.
A cadela mancou até ele, a cauda agitada, e o príncipe colocou os livros na mesa antes de se
ajoelhar no tapete de pelos. Ele passou a mão na cabeça de Ligeirinha, deixando que a cadela o
lambesse algumas vezes.
— A curandeira disse que a perna vai ficar boa — falou Celaena, ainda concentrada na sacola.
A mão esquerda da assassina estava com ataduras, um ferimento que o príncipe não notara na
noite anterior. — Ela saiu faz alguns minutos.
— Que bom — disse Dorian, e ficou de pé. Celaena vestia uma túnica pesada, calça e um
manto espesso. As botas marrons eram resistentes e sérias, muito mais recatadas do que as
vestimentas normais. Roupas de viagem. — Ia embora sem se despedir?
— Achei que seria mais fácil assim — respondeu Celaena. Em duas horas, velejaria para
Wendlyn, a terra dos mitos e dos monstros, um reino de sonhos e de pesadelos que se tornavam
realidade.
Dorian se aproximou da assassina.
— Esse plano é loucura. Você não precisa ir. Podemos convencer meu pai a fazer outra coisa.
Se a pegarem em Wendlyn...
— Não vão me pegar.
— Não haverá ajuda para você — disse Dorian, colocando a mão na sacola. — Se for
capturada, se for ferida, estará além do nosso alcance. Estará completamente sozinha.
— Vou ficar bem.
— Mas eu não vou. Enquanto você estiver lá, vou imaginar se aconteceu alguma coisa. Não
vou... Não vou me esquecer de você. Nem por uma hora.
Celaena engoliu em seco, o único sinal de emoção que ela se permitiu demonstrar, e a
assassina olhou na direção da cadela, que observava os dois do tapete.
— Você... — Dorian viu Celaena engolir em seco de novo antes de encará-lo. — Você tomará
conta dela enquanto eu estiver fora?
O príncipe pegou a mão de Celaena, apertando-a.
— Como se fosse minha. Vou até deixar que durma comigo na cama.
Celaena deu um sorriso breve, e Dorian teve a sensação de que qualquer sinal maior de emoção
acabaria com o autocontrole da assassina. Ele apontou para os livros que havia levado.
— Espero que não se importe, mas preciso de um lugar para guardar esses livros, e seus
aposentos podem ser... mais seguros do que os meus.
Ela olhou para a mesa, mas, para alívio de Dorian, não verificou os títulos. Os livros só
gerariam mais perguntas. Genealogias, crônicas reais, qualquer coisa a respeito de como e por que
ele poderia ter magia.
— É claro. — Foi tudo o que Celaena disse. — Acho que Os mortos andam ainda está por
aqui mesmo. Talvez fique feliz em ter companhia.
Dorian podia ter sorrido, caso aquilo não fosse um fato bizarro.
— Vou deixar que faça as malas. Tenho uma reunião do conselho na mesma hora da partida
de seu navio — disse o príncipe, lutando contra a dor no peito. Era uma mentira, e ruim. Mas
Dorian não queria estar no cais, não quando sabia que outra pessoa estaria lá para se despedir dela.
— Então... acho que é adeus. — O príncipe não sabia mais se podia abraçá-la, então enfiou as
mãos nos bolsos e deu um sorriso. — Cuide-se.
Um leve aceno de cabeça.
Eles eram amigos agora, e Dorian sabia que os limites físicos entre os dois haviam se alterado,
mas... O príncipe se virou para não deixar que Celaena visse o desapontamento que ele sabia que
estava bem óbvio em seu rosto.
Dorian deu dois passos na direção da porta antes que Celaena falasse, as palavras baixas e
embargadas:
— Obrigada por tudo o que fez por mim, Dorian. Obrigada por ser meu amigo. Por não sercomo os outros.
Ele parou, virando-se para encarar Celaena. Ela manteve o queixo elevado, mas estava com os
olhos cheios d’água.
— Voltarei — disse Celaena, baixinho. — Voltarei por você. — E o príncipe sabia que havia
mais coisas que ela não estava dizendo, algum significado maior por trás daquelas palavras.
Mas Dorian acreditou em Celaena mesmo assim.
O porto estava lotado com marinheiros e escravos e trabalhadores carregando e descarregando
carga. O dia estava quente e com uma brisa, o primeiro indício de primavera no ar, e o céu estava
sem nuvens. Um bom dia para velejar.
Celaena ficou parada diante do navio que a levaria pela primeira parte da viagem. Ele velejaria
para um local combinado no qual um navio de Wendlyn o encontraria para pegar refugiados que
escapavam das sombras do império de Adarlan. A maior parte das mulheres que viajariam na
embarcação já estava sob o convés. A assassina mexeu os dedos da mão enfaixada e encolheu o
corpo diante da dor constante que irradiou da palma da mão.
Celaena mal dormira na noite anterior, em vez disso, abraçara Ligeirinha perto do corpo. Dizer
adeus uma hora antes fora como arrancar um pedaço do coração, mas a perna da cadela ainda
estava ferida demais para arriscar a viagem para Wendlyn.
Ela não quis ver Chaol, não se incomodou em se despedir, pois tinha tantas perguntas para o
capitão que era mais fácil não perguntar nada. Será que não sabia que armadilha impossível havia
montado para ela?
O capitão do navio soou um aviso de cinco minutos para a partida. Os marinheiros começaram
a se agitar, redobrando os esforços para se preparar para deixar o porto e velejar pelo Avery, então
para o próprio Grande Oceano.
Para Wendlyn.
Celaena engoliu em seco. Faça o que precisa ser feito, dissera Elena. Será que isso significava
matar de verdade a família real de Wendlyn, ou outra coisa?
Uma brisa salgada bagunçou seu cabelo, e a assassina deu um passo adiante.
Mas alguém surgiu das sombras dos prédios que ladeavam o cais.
— Espere — falou Chaol.
Celaena congelou quando o capitão se dirigiu até ela, e não se moveu mesmo quando se viu
olhando para o rosto dele.
— Você entende por que fiz isso? — perguntou ele, baixinho.
Celaena assentiu, mas respondeu:
— Preciso voltar para cá.
— Não — falou Chaol, os olhos brilhando. — Você...
— Ouça.
Celaena tinha cinco minutos. Não poderia explicar agora — não poderia explicar que o rei o
mataria se ela não voltasse. Esse conhecimento seria fatal para Chaol. E mesmo que o capitão
fugisse, o rei havia ameaçado a família de Nehemia também.
Mas Celaena sabia que Chaol estava tentando protegê-la. E não podia deixá-lo
completamente ignorante. Porque se morresse em Wendlyn, se alguma coisa acontecesse com ela...
— Ouça com atenção o que estou prestes a dizer.
Chaol ergueu as sobrancelhas. Mas Celaena não se permitiu um momento para reconsiderar,
para questionar a decisão.
Da forma mais sucinta possível, contou ao capitão sobre as chaves de Wyrd. Contou sobre os
portões de Wyrd e sobre Baba Pernas Amarelas. Contou sobre os papéis que havia escondido no
mausoléu — sobre a charada com os lugares das três chaves de Wyrd. E então contou a Chaol que
sabia que o rei tinha pelo menos uma. E que havia uma criatura morta selada sob a biblioteca. E
que o capitão jamais deveria abrir a porta para as catacumbas — jamais. E que Roland e Kaltain
poderiam ser parte de um plano maior e mais mortal.
E quando aquela verdade horrível foi revelada, Celaena abriu o fecho do Olho de Elena do
pescoço e o colocou na palma da mão de Chaol.
— Nunca tire o cordão. Ele o protegerá do mal.
Chaol balançava a cabeça, o rosto pálido como a morte.
— Celaena, eu não posso...
— Não me importo se você vai sair em busca das chaves, mas alguém precisa saber sobre elas.
Alguém além de mim. Todas as provas estão no mausoléu.
O capitão segurou a mão dela com a única mão livre.
— Celaena...
— Ouça — repetiu ela. — Se não tivesse convencido o rei a me mandar para longe,
poderíamos... tê-las encontrado juntos. Mas agora...
Dois minutos, gritou o capitão do navio. Chaol apenas a encarava, tanta dor e medo nos olhos
que Celaena ficou sem palavras.
Então ela fez a coisa mais inconsequente que já tinha feito na vida. Celaena ficou na ponta dos
pés e sussurrou as palavras no ouvido de Chaol.As palavras que o fariam entender, entender por que isso era tão importante para ela, e o que
ela queria dizer quando afirmava que voltaria. E Chaol a odiaria para sempre por causa daquilo,
depois que entendesse.
— O que isso quer dizer? — indagou ele.
Celaena deu um sorriso triste.
— Você vai descobrir. E quando o fizer... — Ela balançou a cabeça, sabendo que não deveria,
mas disse mesmo assim: — Quando entender, quero que lembre que não teria feito diferença
nenhuma para mim. Nunca fez diferença nenhuma para mim quando se tratou de você. Eu ainda o
escolheria. Sempre vou escolher você.
— Por favor... por favor, apenas diga o que quer dizer.
Mas não havia tempo, então Celaena balançou a cabeça de novo e deu um passo para trás.
Chaol deu um passo na direção dela, no entanto. Um passo, então falou:
— Amo você.
A jovem conteve o choro que se acumulava na garganta.
— Desculpe — disse ela, esperando que Chaol se lembrasse dessas palavras depois, mais
tarde, quando descobrisse tudo.
As pernas de Celaena encontraram forças para se mover. Ela tomou fôlego. E com um último
olhar para o capitão, a assassina caminhou pela rampa de entrada. Sem reparar naqueles a bordo,
Celaena apoiou a sacola e ocupou um lugar perto da borda. Ela abaixou o rosto para o cais e viu
Chaol ainda parado próximo à passarela enquanto a erguiam.
O capitão do navio gritou para que zarpassem. Marinheiros se apressaram, cordas foram
desamarradas, atiradas e amarradas novamente, e o navio partiu. As mãos de Celaena se agarravam
com tanta força à borda do navio que doíam.
A embarcação começou a se mover. E Chaol — o homem que Celaena odiava e amava tanto
que, perto do qual, mal conseguia pensar — apenas ficou ali, observando-a partir.
A correnteza tomou o navio e a cidade começou a diminuir. A brisa do oceano logo acariciou
seu pescoço, mas ela jamais deixou de olhar para Chaol. Ela olhou na direção dele até que o castelo
de vidro não passasse de uma faísca reluzente e distante. Celaena olhou na direção de Chaol até
que só houvesse oceano brilhante ao redor. Ela olhou na direção do capitão até que o sol caísse
além do horizonte e um punhado de estrelas pendesse acima.
Somente quando as pálpebras se fecharam e o corpo oscilou, Celaena parou de olhar na direção
de Chaol.
O cheiro de sal enchia suas narinas, tão diferente do sal de Endovier, e um vento alegre
açoitou seus cabelos.Depois de emitir um chiado entre dentes, Celaena Sardothien deu as costas para Adarlan e
velejou em direção a Wendlyn.

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