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O ódio de Celaena a levou a um lugar no qual sabia apenas três coisas: que Chaol tinha sido
levado dela, que ela era uma arma forjada para acabar com vidas, e que se o capitão estivesse ferido,
ninguém sairia vivo daquele armazém.
Ela cruzou a cidade rápida e eficientemente, a destreza de um predador mantinha seus passos
silenciosos nas ruas de paralelepípedos. Tinham dito para ir sozinha, e Celaena obedeceu.
Mas não disseram nada sobre ir desarmada.
Então, pegara todas as armas que podia prender ao corpo, inclusive a espada de Chaol, a qual
estava amarrada nas costas junto com uma segunda espada, a sua própria, os dois punhos de fácil
alcance por cima dos ombros. Dali para baixo, Celaena era como um arsenal vivo.
Quando se aproximou dos cortiços, as feições escondidas por um manto escuro e um capuz
pesado, a assassina subiu pela lateral de um prédio aos pedaços até chegar ao telhado.
Também não disseram nada a respeito de usar a porta da frente do armazém.
Celaena saltou pelos telhados, as botas leves se agarravam facilmente nas telhas verde-
esmeralda em ruínas; ela ouviu, observou, sentiu a noite ao redor. Os ruídos habituais dos cortiços
a cumprimentaram conforme ela se aproximou do enorme armazém de dois andares: órfãos
semisselvagens gritando uns com os outros, o respingo dos bêbados mijando nos prédios,
meretrizes chamando possíveis clientes...
Mas havia um silêncio em volta do armazém de madeira, uma bolha de quietude que dizia a
ela que o lugar tinha homens o suficiente na frente para que os cidadãos comuns do bairro
mantivessem distância.

Os telhados próximos estavam vazios e eram planos, os espaços entre os prédios podiam ser
facilmente saltados.
Celaena não se importava com o que aquele grupo queria dela. Não se importava com o tipo
de informação que esperavam arrancar. Quando levaram Chaol, tinham cometido o maior erro de
suas vidas. O último erro.
A assassina chegou ao telhado do prédio ao lado do armazém e se agachou antes de se
aproximar da borda e olhar para dentro.
No beco estreito diretamente abaixo, três homens encapuzados patrulhavam. As portas da
frente do armazém estavam na rua adiante, com a luz escorrendo pelas frestas e revelando pelo
menos quatro homens do lado de fora. Ninguém sequer olhava para o telhado. Tolos.
O armazém de madeira era um espaço aberto gigante com três andares, e pela janela aberta do
segundo andar à sua frente, Celaena conseguia ver até o piso abaixo.
O mezanino compunha a maior parte do segundo andar, e as escadas davam no terceiro andar
e no telhado acima — uma possível rota de fuga, se a porta da frente não fosse uma opção. Dez
dos homens estavam pesadamente armados, e seis arqueiros se posicionavam ao redor do mezanino
de madeira, as flechas todas apontadas para o primeiro andar abaixo.
Ali estava Chaol, acorrentado a uma das paredes de madeira.
Chaol, o rosto ferido e sangrando, as roupas rasgadas e sujas, a cabeça caída entre os ombros.
O gelo dentro de Celaena se espalhou pelas veias.
Ela conseguiria escalar o prédio até o telhado, então descer do terceiro andar. Mas aquilo
levaria tempo, e ninguém estava olhando para a janela aberta diante dela.
Celaena virou a cabeça para trás e deu um sorriso malicioso para a lua. Fora apelidada de
Assassina de Adarlan por um motivo. Entradas dramáticas eram basicamente sua arte.
Ela recuou devagar da beirada e caminhou alguns passos para trás, calculando qual distância e
com que rapidez precisaria correr. A janela aberta era ampla o suficiente para não ter que se
preocupar com quebrar o vidro ou com as espadas ficarem presas na moldura, e o mezanino tinha
uma barra de proteção para contê-la caso pulasse além do ponto.
Celaena dera um salto como aquele uma vez antes, quando seu mundo foi completamente
destruído. Mas naquela noite, Sam já estava morto havia quatro dias, e Celaena saltara pela janela
da casa de Rourke Farran por pura vingança.
Dessa vez, ela não falharia.
Os homens sequer olhavam para a janela quando ela a atravessou. E quando pousou no
mezanino e rolou até ficar agachada, duas das adagas que carregava já estavam voando.
🍃

Chaol viu o lampejo de luar no aço no segundo antes de Celaena saltar pela janela do segundo
andar, pousar sobre o mezanino e atirar duas adagas nos arqueiros mais próximos. Eles caíram, ela
subiu — outras duas adagas foram atiradas em mais dois arqueiros. O capitão não sabia se deveria
observá-los ou observar a assassina quando ela apoiou as mãos na barra do mezanino e saltou por
cima, caindo no chão no momento em que diversas flechas acertaram o lugar em que as mãos dela
haviam segurado a barra.
Os homens no salão gritavam, alguns fugiam para a segurança de pilastras e para a saída
enquanto outros corriam até Celaena, as armas em punho. E Chaol pôde apenas observar
horrorizado e maravilhado quando ela sacou duas espadas — uma delas pertencia a ele — e liberou
a ira sobre os homens.
Eles não tinham a menor chance.
No embate dos corpos, os dois arqueiros restantes não ousaram disparar flechas que poderiam
acertar um dos seus — outra manobra intencional de Celaena, Chaol sabia. O capitão puxou as
correntes diversas vezes, seus pulsos doíam; se conseguisse apenas chegar até ela, os dois
poderiam...
A assassina era um redemoinho de aço e sangue. Enquanto Chaol a observava cortar os
homens como se fossem espigas de trigo em um campo, entendeu como ela havia chegado tão
perto de tocar a muralha de Endovier naquele dia. E, por fim — depois de tantos meses —, ele viu
a predadora letal que tinha esperado encontrar nas minas. Não havia nada humano nos olhos dela,
nada remotamente misericordioso. Aquilo congelou o coração do capitão.
O guarda que o provocara o dia inteiro permaneceu por perto, espadas gêmeas em punho,
esperando por ela.
Um dos homens encapuzados tinha se afastado o suficiente de Celaena para começar a gritar:
— Basta! Basta!
Mas a jovem não ouvia, e conforme Chaol impulsionava o corpo para a frente, ainda tentando
arrancar as correntes da parede, ela abriu um caminho entre os homens, deixando corpos gemendo
ao encalço. Para mérito do homem, o torturador do capitão se manteve no lugar conforme Celaena
caminhava na sua direção.
— Não atirem! — ordenava o homem encapuzado para os arqueiros. — Não atirem!
A assassina parou diante do guarda, apontando uma espada encharcada de sangue para ele.
— Saia do meu caminho ou vou cortá-lo em pedaços.
O guarda de Chaol, o tolo, riu com deboche, erguendo um pouco mais a espada.
— Venha buscá-lo.
Celaena sorriu. Mas então o homem encapuzado com a voz idosa se apressou até eles, os
braços abertos para mostrar que não estava armado.
— Basta! Abaixe as armas — disse ele ao guarda. O homem obedeceu, mas as espadas de
Celaena permaneceram em punho. O homem mais velho deu um passo na direção dela. — Basta!
Já temos inimigos suficientes! Há coisas piores a serem enfrentadas lá fora!
Celaena se virou para ele devagar, o rosto sujo de sangue e os olhos incandescentes.
— Não há não — disse ela. — Porque estou aqui agora.
Roupas, mãos e pescoço estavam encharcados de sangue que não era de Celaena, mas a assassina
só conseguia ver os arqueiros a postos no mezanino acima e o inimigo ainda parado entre ela e
Chaol. O seu Chaol.
— Por favor — falou o homem, retirando o capuz e a máscara para revelar um rosto que
combinava com a voz idosa. Cabelos brancos rentes, marcas de expressão ao redor da boca e olhos
cinzentos, claros como cristal, que estavam arregalados em súplica. — Talvez nossos métodos
tenham sido errados, mas...
Celaena apontou a espada para ele, e o guarda mascarado entre ela e Chaol esticou o corpo.
— Não importa quem você é e o que quer. Vou levar o capitão agora.
— Por favor, ouça — disse o homem idoso, baixinho.
A assassina conseguia sentir a ira e a agressão emanando do guarda encapuzado diante dela, via
como ele segurava os punhos das espadas gêmeas com força e ansiedade. Não estava pronta para o
fim da carnificina também. Não estava nem um pouco pronta para desistir.
Então a jovem sabia exatamente o que aconteceria quando se virasse para o guarda e desse a ele
um sorriso preguiçoso.
O homem atacou. Quando Celaena cruzou a espada com as dele, os homens que estavam do
lado de fora entraram às pressas, o aço reluzindo. Em seguida, não havia nada além de metal
zunindo e os gritos dos feridos que caíam ao redor da assassina; e ela os atravessava, deliciando-se
com a canção bestial que percorria seu sangue e seus ossos.
Mas alguém gritava o nome dela — uma voz familiar que não era a de Chaol. Ao se virar,
Celaena viu o lampejo de uma flecha com ponta de aço disparando em sua direção, em seguida o
reflexo de cabelo castanho-dourado e então...
Archer caiu no chão, com a flecha destinada para ela no ombro. Celaena precisou de apenas dois movimentos para soltar uma espada e sacar a adaga da bota, lançando-a na direção do guarda
que havia atirado a flecha. Quando olhou para Archer, ele estava se levantando e se colocando
entre ela e a parede de homens, um braço estendido diante da assassina — voltado para ela.
Protegendo os homens.
— Isto é um mal-entendido — disse o cortesão a Celaena, ofegante. O sangue do ferimento
no ombro vazava pela toga preta. Toga. A mesma que aqueles homens vestiam.
Archer fazia parte daquele grupo; Archer armara para ela.
Então aquele ódio, o ódio que misturara os eventos da noite em que Celaena fora capturada
com os dessa noite, que fez os rostos de Chaol e de Sam se confundirem, tomou conta da assassina
tão ferozmente que ela levou a mão à outra adaga presa à cintura.
— Por favor — falou Archer, dando um passo na direção dela e encolhendo o corpo ao sentir
a flecha se mover. — Deixe-me explicar. — Quando Celaena viu o sangue descer pela toga de
Archer, percebeu a agonia e o medo e o desespero nos olhos dele, e o ódio dela vacilou.
— Solte-o — disse Celaena, a voz cheia de uma tranquilidade mortal. — Agora.
Archer se recusava a tirar os olhos de Celaena.
— Ouça o que tenho a dizer primeiro.
— Solte-o agora.
Archer ergueu o queixo para o guarda que tolamente iniciara o último ataque contra ela.
Mancando, mas surpreendentemente ainda inteiro e com as lâminas gêmeas, o guerreiro soltou
devagar o capitão da Guarda Real.
Chaol ficou de pé em um instante, mas Celaena reparou no modo como ele cambaleou, no
encolher de ombros que tentou esconder. Mesmo assim, o capitão conseguiu encarar o guarda
encapuzado que estava diante dele, os olhos brilhando com a promessa de violência. O guarda
apenas recuou, levando a mão às espadas de novo.
— Você tem direito a uma frase para me convencer a não matá-los — disse Celaena a Archer
quando Chaol foi para o lado dela. — Uma frase.
O cortesão começou a balançar a cabeça, olhando de Celaena para Chaol, os olhos cheios, não
de medo ou ódio ou súplica, mas de sofrimento.
— Estou trabalhando com Nehemia para liderar estas pessoas durante os últimos seis meses.
O corpo de Chaol se enrijeceu, mas Celaena piscou. Foi o suficiente para que Archer soubesse
que havia passado no teste. Ele inclinou a cabeça para os homens ao redor.
— Deixem-nos — disse ele, a voz ecoando com uma autoridade que a assassina não ouvira
antes.
Os homens obedeceram, aqueles que ainda restavam de pé e arrastavam os companheiros feridos para longe. Celaena não se permitiu considerar quantos estavam mortos.
O homem mais velho que tinha exposto o rosto a encarava com um misto de espanto e
incredulidade, e Celaena imaginou que tipo de monstro ela parecia ser naquele momento. Mas ao
reparar na atenção da assassina, fez uma reverência com a cabeça na direção dela e saiu com os
demais, levando aquele guarda impulsivo e arrogante consigo.
Quando ficaram sozinhos, Celaena apontou a espada para Archer de novo, dando um passo à
frente, mantendo Chaol atrás de si. É claro que o capitão da Guarda se colocou bem ao lado dela.
— Nehemia e eu estamos liderando este movimento juntos. Ela veio para cá para nos
organizar, para formar um grupo que poderia entrar em Terrasen e começar a reunir forças contra o
rei. E para descobrir quais são os verdadeiros planos do rei para Erilea — falou Archer.
Chaol ficou tenso, e Celaena conteve a surpresa.
— Isso é impossível.
Archer riu com deboche.
— É mesmo? Por que a princesa está tão ocupada o tempo todo? Você sabe aonde ela vai à
noite?
O ódio congelado vacilou de novo, deixando o mundo lento, lento, lento.
E então ela se lembrou: se lembrou de como Nehemia a convenceu a não pesquisar a charada
que descobrira no escritório de Davis e estava tão vagarosa e esquecida com relação à promessa de
pesquisá-la; lembrou-se da noite em que Dorian foi aos aposentos dela porque Nehemia estava
fora e ele não conseguira encontrá-la em lugar algum do castelo; lembrou-se das palavras de
Nehemia para ela antes da briga das duas, sobre como a princesa tinha assuntos importantes para
cuidar em Forte da Fenda, coisas tão importantes quanto Eyllwe...
— Ela vem aqui — falou Archer. — Vem aqui para fornecer a todos nós as informações que
você confidencia a ela.
— Se Nehemia é parte de seu grupo — replicou Celaena —, então onde ela está?
Archer pronunciou as palavras lentamente e apontou para Chaol.
— Pergunte a ele.
Uma dor lancinante se revirou no estômago de Celaena.
— Do que ele está falando? — perguntou a Chaol.
Mas Chaol encarava Archer.
— Não sei.
— Desgraçado mentiroso — disparou Archer, e exibiu os dentes com uma ferocidade que o
fez, pelos menos uma vez, parecer qualquer coisa, menos atraente. — Minhas fontes me disseram
que o rei o informou há mais de uma semana sobre a ameaça à vida de Nehemia. Quando planejava contar a alguém sobre isso? — O cortesão se voltou para Celaena. — Nós o trouxemos
aqui porque ele recebeu ordens de interrogar Nehemia a respeito do comportamento dela.
Queríamos saber que tipo de perguntas foi ordenado a fazer. E porque queríamos que você visse o
tipo de homem que ele realmente é.
— Isto não é verdade — replicou Chaol. — Isto é uma maldita mentira. Você não fez sequer
uma pergunta, seu pedaço de imundície da sarjeta. — O capitão voltou os olhos suplicantes para
Celaena. As palavras ainda estavam sendo absorvidas, cada uma pior do que a seguinte. — Eu
sabia sobre a ameaça anônima à vida de Nehemia, sim. Mas fui informado de que ela seria
interrogada pelo rei. Não por mim.
— E nós percebemos isso — falou Archer. — Momentos antes de você chegar, Celaena,
percebemos que não seria o capitão. Mas não é um interrogatório que vão fazer esta noite, é,
capitão? — Chaol não respondeu, e Celaena não se importou com o motivo.
Ela se afastava do próprio corpo. Centímetro a centímetro. Como a maré se afasta da praia.
— Acabei de enviar homens ao castelo — continuou Archer. — Talvez eles consigam impedir.
— Onde está Nehemia? — Celaena se ouviu perguntar, com lábios que pareciam distantes.
— Foi o que meu espião descobriu esta noite. Nehemia insistiu em ficar no castelo para ver
que tipo de perguntas queriam fazer, ver o quanto suspeitavam e sabiam...
— Onde está Nehemia?
Mas o cortesão apenas balançou a cabeça, os olhos brilhando com lágrimas.
— Não vão interrogá-la, Celaena. E quando meus homens chegarem, acho que vai ser tarde
demais.
Tarde demais.
Celaena se virou para Chaol. O rosto dele estava perturbado e pálido.
Archer balançou a cabeça de novo.
— Sinto muito.


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