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Chaol estava parado diante do trono do rei, quase se matando de tédio enquanto fornecia o
relatório do dia anterior. Ele tentava não pensar na noite anterior — em como o breve toque dos
dedos de Celaena por seus cabelos e por seu rosto havia lançado uma pontada de desejo tão forte
pelo corpo que o capitão teve vontade de agarrá-la e prendê-la ao sofá. Chaol precisara de todo o
seu autocontrole para manter a respiração equilibrada, continuar fingindo que estava dormindo.
Depois que ela saiu, o coração do capitão começou a bater tão forte que ele precisou de uma hora
para se acalmar o bastante e conseguir dormir.
Ao olhar para o rei naquele momento, Chaol estava feliz por ter se controlado. O limite entre
ele e Celaena existia por um motivo. Atravessá-lo colocaria em xeque sua lealdade ao rei que estava
diante dele — sem falar no modo como isso impactaria a amizade entre o capitão e Dorian. O
príncipe se fizera pouco presente na última semana; Chaol precisaria se obrigar a vê-lo naquele dia.
A lealdade do capitão era de Dorian e do rei. Sem lealdade, ele não era ninguém. Sem ela, teria
desistido da família, do título, por nada.
Chaol terminou de explicar os planos de segurança para o parque que chegaria naquele dia, e o
rei assentiu.
— Muito bem, capitão. Certifique-se de que seus homens vigiem os arredores do castelo
também. Sei que tipo de imundície gosta de viajar com esses parques, e não quero essa gente
perambulando por aí.
Chaol assentiu.
— Considere feito.

Normalmente, o rei o dispensaria com um resmungo e um aceno, mas naquele dia, o homem
apenas o avaliou, um cotovelo apoiado no braço do trono de vidro. Depois de um momento de
silêncio — durante o qual o capitão imaginou se havia um espião do castelo, de alguma forma,
espiando pela fechadura quando Celaena o tocou —, o rei falou:
— A princesa Nehemia precisa ser vigiada.
De todas as coisas que o rei poderia dizer, aquela era a que Chaol não esperava. Mas ele
manteve o rosto inexpressivo e não questionou as palavras que continham tanto significado
implícito.
— Sua... influência está começando a ser sentida nestes corredores. E estou achando que
talvez tenha chegado a hora de movê-la de volta para Eyllwe. Sei que já temos alguns homens
vigiando-a, mas também soube que havia uma ameaça anônima à vida de Nehemia.
Perguntas rugiam dentro do capitão, junto com a sensação crescente de pesar. Quem a havia
ameaçado? O que a princesa tinha dito ou feito para lhe garantir a ameaça?
Chaol enrijeceu o corpo.
— Não ouvi nada a respeito disto.
O rei sorriu.
— Ninguém ouviu. Nem mesmo a própria princesa. Parece que ela tem alguns inimigos do
lado de fora do palácio também.
— Pedirei que mais guardas vigiem os aposentos dela e patrulhem a ala do castelo em que
está. Vou alertá-la imediatamente da...
— Não há necessidade de alertá-la. Nem ninguém. — O rei olhou de modo significativo para
Chaol. — Ela pode tentar usar o fato de que alguém deseja sua morte como vantagem para
barganha, pode tentar se fazer de mártir de algum modo. Então diga aos seus homens que fiquem
quietos.
Ele não achava que Nehemia faria aquilo, mas Chaol manteve a boca fechada. Diria aos
homens que fossem discretos.
E não contaria à princesa — nem a Celaena. O fato de ele ser amigável com Nehemia, o fato
de ela ser amiga de Celaena, isso não mudava nada. Sabia que Celaena ficaria furiosa por ele não
contar, mas Chaol era o capitão da Guarda. Lutara e sacrificara quase tanto quanto a campeã do
rei para alcançar aquela posição. Ele permitira que ela se aproximasse demais quando a chamou
para dançar — se permitira se aproximar demais.
— Capitão?
Chaol piscou, então fez uma reverência baixa.
— Tem minha palavra, Vossa Majestade.

🍃

Dorian estava ofegante, girava a espada no ar em um bloqueio preciso que fez o guarda cambalear.
A terceira partida, e o terceiro oponente estava prestes a cair. O príncipe não dormira na noite
anterior nem conseguira ficar sentado naquela manhã. Então foi até o quartel, esperando que
alguém o cansasse o suficiente para que a exaustão tomasse conta.
Ele bloqueava e defletia os ataques do guarda. Só podia ser um erro. Talvez tivesse sonhado
tudo. Talvez fosse apenas uma combinação dos elementos certos no momento errado. A magia
havia sumido, e não havia motivo para ele ter aquele poder quando nem mesmo seu pai tinha
recebido o dom da magia. Ela estava adormecida na linhagem dos Havilliard havia gerações.
Dorian venceu a defesa do guarda com uma manobra fácil, mas quando o jovem ergueu as
mãos em sinal de derrota, o príncipe se perguntou se o guarda não o havia deixado ganhar. Essa
ideia fez um rosnado percorrer seu corpo. Ele estava prestes a exigir outra partida quando alguém
caminhou tranquilamente até os dois.
— Posso me juntar?
O príncipe encarou Roland, cujo florete mal parecia ter sido usado. O guarda olhou uma vez
para o rosto de Dorian, fez uma reverência e encontrou outro lugar para ir. Dorian observou o
primo, o anel preto no dedo.
— Acho que não quer me enfrentar hoje, primo.
— Ah — disse Roland, franzindo a testa. — Quanto a ontem... sinto muito por aquilo. Se
soubesse que os campos de trabalhos forçados eram uma questão tão sensível para você, jamais
teria levantado o assunto ou discutido-o com o conselheiro Mullison. Cancelei a votação depois
que você partiu. Mullison ficou furioso.
Dorian ergueu as sobrancelhas.
— Ah?
Roland deu de ombros.
— Você estava certo. Não sei nada a respeito daqueles campos. Só assumi a causa porque
Perrington sugeriu que eu trabalhasse com Mullison, que tinha muito a ganhar com a expansão
por causa dos laços com a indústria do ferro.
— E devo acreditar em você?
Roland deu um sorriso de vencedor.
— Somos família, afinal de contas.
Família. Dorian jamais se considerara de fato parte de uma família. E certamente não o fazia
agora. Se alguém descobrisse sobre o que acontecera naquele corredor no dia anterior, sobre a    
magia que ele poderia ter, seu pai o mataria. Afinal, o rei tinha um segundo filho. Famílias não
deveriam exatamente pensar dessa forma, não é?
Dorian fora procurar Nehemia na noite anterior por desespero, mas à luz da manhã, ficou feliz
por não a ter encontrado. Se a princesa obtivesse aquele tipo de informação a respeito dele, poderia
usar em vantagem própria — chantageá-lo o quanto quisesse.
E Roland... Dorian começou a dar as costas.
— Por que não guarda suas manobras para alguém que se importe?
Roland manteve o ritmo ao lado do primo.
— Ah, mas quem é mais digno do que meu próprio primo? Que desafio maior do que
conquistar você para as minhas tramoias? — Dorian lançou um olhar de aviso para Roland e viu
que o jovem sorria. — Se ao menos tivesse visto o caos que irrompeu depois que você saiu —
continuou Roland. — Enquanto eu viver, jamais me esquecerei do olhar no rosto de seu pai
quando você gritou com todos eles. — Roland gargalhou e, apesar de não querer, o príncipe
percebeu um sorriso se formando nos próprios lábios. — Achei que o velho desgraçado entraria em
combustão bem ali.
Dorian balançou a cabeça.
— Ele já enforcou homens por terem-no chamado por tais nomes, sabe.
— Sim, mas quando se é tão bonito quanto eu, querido primo, ficaria surpreso com o quanto é
possível se safar.
Dorian revirou os olhos, mas avaliou o primo por alguns instantes. Roland poderia ser próximo
de Perrington e do rei, porém... talvez só tivesse sido puxado para as armações do duque e
precisasse de alguém que o guiasse na direção certa. E se o rei e os outros conselheiros achavam
que poderiam usar Roland para conquistar apoio para suas negociações obscuras, bem, então estava
na hora de Dorian entrar no jogo também. O príncipe poderia virar o peão do pai contra ele
mesmo. Entre eles dois, certamente poderiam influenciar parte suficiente do conselho a se opor a
mais propostas desagradáveis.
— Você realmente cancelou a votação?
Roland gesticulou.
— Acho que está certo quanto a estarmos abusando da sorte com os demais reinos. Se
quisermos manter o controle, precisamos encontrar um equilíbrio. Enviá-los para a escravidão não
vai ajudar; pode apenas voltar mais pessoas para a rebelião.
Dorian assentiu devagar, então parou.
— Preciso ir a um lugar — mentiu ele, embainhando a espada —, mas talvez eu o veja nosalão para o jantar.
Roland deu um sorriso tranquilo para o primo.
— Tentarei reunir algumas damas adoráveis para nos fazer companhia.
Dorian esperou até que Roland tivesse virado a esquina para ir até o pátio, onde o caos o
engoliu. O parque que a rainha havia contratado para Hollin — o presente de Yule atrasado para o
filho — finalmente chegara.
Não era um parque enorme; apenas algumas tendas escuras, uma dúzia de vagões com jaulas e
cinco vagões cobertos tinham sido montados no pátio aberto. A coisa toda parecia bastante
sombria, apesar do violinista tocando e dos gritos alegres dos trabalhadores correndo para terminar
de montar as tendas a tempo de surpreender Hollin naquela noite.
As pessoas mal olhavam para Dorian conforme ele vagava pela multidão. Mas também, o
príncipe vestia roupas velhas e suadas e estava com a capa bem fechada ao redor do corpo. Apenas
os guardas — altamente treinados e cientes de tudo — repararam nele, mas entendiam a
necessidade do anonimato sem precisar de ordens.
Uma mulher impressionantemente linda saiu de uma das tendas — loira, esguia, alta e vestida
em roupas finas de montaria. Um homem do tamanho de uma montanha também emergiu,
carregando grandes mastros de ferro que Dorian duvidava que a maioria dos homens sequer
conseguisse levantar.
O príncipe passou por um dos grandes vagões cobertos, parando diante das palavras escritas
com tinta branca na lateral:
O PARQUE DOS ESPELHOS!
VEJA ILUSÕES E REALIDADE COLIDIREM!
Ele franziu a testa. Será que a mãe havia dedicado um minuto de consideração ao presente, a
respeito do que aquilo poderia parecer, de qual mensagem enviaria? Parques, com as ilusões e os
truques, sempre beiravam abertamente o limite da traição. Dorian soltou uma risada de deboche.
Talvez ele pertencesse a uma daquelas jaulas.
A mão de alguém pousou em seu ombro, e o príncipe se virou, deparando-se com Chaol
sorrindo.
— Achei que o encontraria aqui. — Dorian não ficou nem um pouco surpreso por Chaol tê-lo
reconhecido.
O príncipe estava prestes a sorrir para ele também quando reparou em quem estava com o
capitão. Celaena estava parada ao lado de uma das jaulas cobertas, escutando pelas cortinas de
veludo preto o que quer que houvesse dentro.
— O que estão fazendo aqui tão cedo? A abertura das cortinas só acontecerá à noite. —
Próximo a eles, o homem pantagruélico começou a martelar pregos de 30 centímetros na terra
congelada.
— Ela queria caminhar e... — Chaol, de súbito, xingou violentamente. Dorian não queria
muito, mas seguiu o capitão quando ele foi até Celaena e puxou o braço dela da cortina preta. —
Vai perder a mão assim — avisou o capitão, e Celaena o olhou com raiva.
Então deu a Dorian um sorriso de lábios fechados que pareceu mais um dar de ombros. O
príncipe não mentira para ela na noite anterior sobre querer ver Nehemia. Mas também se pegou
querendo vê-la — até que a assassina surgiu com aquele bolo ridículo pela metade, que,
obviamente, tinha planos de devorar sozinha.
Dorian sequer conseguia imaginar como Celaena o encararia se descobrisse que ele poderia —
poderia, continuava dizendo a si mesmo — ter algum traço de magia dentro de si.
Próxima a eles, a linda mulher loira se sentou em um banquinho e começou a tocar um alaúde.
Dorian sabia que os homens — e os guardas — que começavam a se reunir em volta não estavam
ali apenas pela bela música.
Chaol mudou o peso do corpo entre as pernas, e o príncipe percebeu que estavam ali parados,
em silêncio, sem dizer nada. Celaena cruzou os braços.
— Encontrou Nehemia ontem à noite?
Dorian tinha a sensação de que ela já sabia a resposta, mas disse:
— Não. Voltei para o quarto depois que encontrei você.
Chaol olhou para Celaena, que apenas deu de ombros. O que aquilo queria dizer?
— Então — prosseguiu a assassina, avaliando o parque —, precisamos esperar seu irmão para
ver o que tem nessas jaulas? Parece que os artistas já estão começando.
E estavam. Todo tipo de malabarista, assim como engolidores de espadas e de fogo,
perambulavam; acrobatas se equilibravam em coisas impossíveis: encostos de cadeiras, mastros,
camas de pregos.
— Acho que é apenas treino — respondeu Dorian, e esperava estar certo, porque se Hollin
soubesse que alguém havia começado sem a aprovação dele... Dorian se certificaria de estar bem
longe do castelo quando o chilique ocorresse.
— Hum — falou Celaena, e foi mais para dentro do parque que fervilhava.
Chaol estava observando o príncipe com cautela. Havia perguntas nos olhos do capitão —
perguntas que Dorian não tinha intenção de responder —, então ele saiu andando atrás de
Celaena, porque sair do parque seria muito parecido com estabelecer limites. Seguiram até o
último e maior dos vagões no semicírculo improvisado de tendas e jaulas.
— Bem-vindos! Bem-vindos! — gritou uma mulher idosa, curvada e retorcida pela idade, de
um pódio na base das escadas. Uma coroa de estrelas adornava seu cabelo prateado, e embora o
rosto bronzeado estivesse flácido e manchado, havia um brilho nos olhos castanhos dela.
— Olhem para meus espelhos e vejam o futuro! Deixem que eu examine a palma de suas mãos
para que eu mesma possa dizer! — A idosa apontou com uma bengala retorcida para Celaena. —
Gostaria que eu lesse sua sorte, garota? — Dorian piscou, então piscou de novo ao ver os dentes da
mulher. Eram afiados como uma lâmina, como os de um peixe, e feitos de metal. De... de ferro.
A assassina fechou o manto verde com força ao redor do corpo, mas continuou olhando a
velha.
Dorian ouvira as lendas do decaído Reino das Bruxas, em que as bruxas sedentas por sangue
haviam destronado a pacífica dinastia Crochan e então dividiram o reino pedra por pedra.
Quinhentos anos depois, ainda se cantavam músicas sobre as guerras mortais, ao fim das quais os
clãs Dentes de Ferro foram os únicos de pé no campo de massacre, com rainhas Crochan mortas
por todo lado. Mas a última rainha Crochan lançara um feitiço para se certificar de que, enquanto
as bandeiras dos Dentes de Ferro oscilassem, nenhum pedaço de terra daria vida ao clã.
— Entre em meu vagão, coração — cantarolou a idosa para Celaena —, e deixe a velha Baba
Pernas Amarelas dar uma olhada em seu futuro. — E como dizia o nome, despontando do vestido
marrom da velha havia tornozelos cor de açafrão.
O rosto de Celaena estava sem cor, e Chaol foi até o lado dela e pegou o cotovelo da jovem.
Apesar do modo como o gesto protetor fez o estômago de Dorian se contrair, ele ficou feliz pelo
capitão ter feito isso. Mas aquilo tudo era apenas um golpe — aquela mulher provavelmente tinha
colocado dentes de ferro falsos e meias-calças amarelas, e se intitulava Baba Pernas Amarelas para
fazer com que os clientes do parque lhe dessem um bom dinheiro.
— Você é uma bruxa — falou Celaena, a voz contida.
Ela não achava que era um golpe, pelo visto. Não, o rosto da assassina ainda estava branco
como a morte. Pelos deuses, estaria realmente com medo?
Baba Pernas Amarelas gargalhou, a risada de um corvo, e fez uma reverência.
— A última bruxa de nascença do Reino das Bruxas. — Para o choque de Dorian, Celaena
deu um passo para trás, aproximando-se, então, de Chaol, levando a mão ao colar que sempre
usava. — Gostaria que eu lesse sua sorte agora?
— Não — respondeu Celaena, quase encostada em Chaol.
— Então saia do meu caminho e me deixe continuar com meus afazeres! Nunca vi uma
clientela tão pão-dura! — Baba Pernas Amarelas grunhiu e ergueu a cabeça para olhar por cima
dos três. — Leio a sorte! Leio a sorte!
O capitão deu um passo na direção da mulher, a mão na espada.
— Não seja tão grosseira com os fregueses.
A velha riu, os dentes refletindo a luz da tarde enquanto ela o farejava.
— E o que um homem que tem cheiro do Lago Prateado faria com uma velha bruxa inocente
como eu?
Um calafrio percorreu a coluna de Dorian, e foi a vez de Celaena de pegar o braço de Chaol e
tentar puxá-lo para longe. Mas ele se recusou a se mover.
— Não sei que tipo de golpe está armando, senhora, mas é melhor tomar cuidado com a língua
antes que a perca.
Baba Pernas Amarelas passou a língua pelos dentes afiados como lâminas.
— Venha pegar — ronronou a mulher.
O desafio brilhou nos olhos de Chaol, mas Celaena ainda estava tão pálida que Dorian a
pegou pelo braço, levando a jovem para longe.
— Vamos — disse ele, e a idosa virou os olhos para o príncipe. Se realmente conseguia ver
coisas a respeito deles, então o último lugar em que Dorian queria estar era ali. — Chaol, vamos.
A bruxa sorria para o príncipe enquanto usava uma das unhas longas e metálicas para retirar
alguma coisa dos dentes.
— Podem se esconder à vontade do destino — falou Baba Pernas Amarelas quando os três se
viraram. — Mas ele vai encontrá-los em breve!
— Você está tremendo.
— Não estou, não — grunhiu Celaena, afastando a mão de Chaol do braço. Já era ruim o
bastante que Dorian estivesse ali, mas que o capitão testemunhasse o encontro de Celaena com
Baba Pernas Amarelas...
Ela conhecia as histórias — lendas que lhe davam pesadelos violentos quando era criança, o
relato em primeira mão que um velho amigo lhe contou certa vez. Considerando que esse amigo
desprezível a havia traído e quase a matado, Celaena esperava que as histórias horríveis sobre as
bruxas Dentes de Ferro fossem apenas mais mentiras. Contudo, ao ver aquela mulher...
A campeã engoliu em seco. Ao ver aquela mulher, ao sentir a estranheza que irradiava da
velha, Celaena não teve problemas para acreditar que aquelas bruxas eram capazes de consumir
uma criança humana até que não sobrasse nada além de ossos limpos.
Congelada até a alma agora, ela seguia Dorian, que caminhava para longe do parque.Enquanto estava de pé diante daquele vagão, tudo o que queria, por algum motivo, era entrar nele.
Como se houvesse algo esperando por ela lá dentro. E aquela coroa de estrelas que a bruxa usava...
E então o amuleto começou a parecer pesado e quente, do mesmo modo como ficara na noite em
que Celaena viu aquela pessoa no corredor.
Se alguma vez voltasse para o parque, levaria Nehemia consigo, apenas para ver se Pernas
Amarelas era, de fato, quem alegava ser. Celaena não dava a mínima para o que havia nas jaulas.
Não mais, não com Pernas Amarelas roubando seu interesse. Ela seguiu Dorian e Chaol sem ouvir
uma só palavra do que os dois diziam até que, de algum jeito, chegaram ao estábulo real, e o
príncipe os levou para dentro.
— Eu ia lhe dar isto de aniversário — disse ele a Chaol —, mas por que esperar mais dois
dias?
Dorian parou diante de um curral.
— Você perdeu a cabeça? — exclamou Chaol.
Dorian sorriu — uma expressão que Celaena não via havia tanto tempo que a fez se lembrar
das longas noites passadas abraçada com ele, do calor de sua respiração na pele dela.
— O quê? Você merece.
Um garanhão Asterion preto como a noite estava dentro do curral, encarando o grupo com
sábios olhos escuros.
Chaol recuava com as mãos erguidas.
— Isto é um presente para um príncipe, não...
Dorian estalou a língua.
— Besteira. Ficarei ofendido se não aceitar.
— Não posso. — Chaol voltou os olhos suplicantes para Celaena, mas ela deu de ombros.
— Tive uma égua Asterion certa vez — admitiu a jovem, e os dois piscaram. Celaena foi até o
curral e ergueu os dedos, permitindo que o garanhão sentisse seu cheiro. — O nome dela era
Kasida. — A assassina sorriu com a lembrança enquanto acariciava o nariz macio como veludo do
cavalo. — Significava “Bebedora do Vento” no dialeto do deserto Vermelho. Ela parecia um mar
revolto.
— Como você conseguiu uma égua Asterion? Valem ainda mais do que os garanhões —
observou Dorian. Era a primeira pergunta normal que fazia a Celaena em semanas.
Ela olhou por cima do ombro para os dois e deu um sorriso malicioso.
— Eu a roubei do senhor de Xandria. — Os olhos de Chaol se arregalaram e Dorian inclinou
a cabeça. Foi tão cômico que ela começou a rir. — Juro por Wyrd que é verdade. Contarei a
história outra hora. — A campeã recuou, cutucando Chaol para que se aproximasse do curral. O cavalo bufou nos dedos do capitão, e besta e homem se olharam.
Dorian ainda fitava Celaena com as sobrancelhas franzidas, mas quando ela o pegou
encarando-a, o príncipe se voltou para Chaol.
— Está cedo demais para perguntar o que vai fazer no seu aniversário?
Celaena cruzou os braços.
— Temos planos — disse ela, antes que o capitão pudesse responder.
Não quis parecer tão grosseira, mas... Bem, estava planejando a noite havia algumas semanas.
Chaol olhou para ela por cima do ombro.
— Temos?
Celaena deu um sorriso adoravelmente venenoso para o capitão.
— Ah, sim. Pode não ser um garanhão Asterion, mas...
Os olhos de Dorian brilharam.
— Bem, espero que se divirtam — interrompeu o príncipe.
Chaol rapidamente voltou o olhar para o cavalo enquanto Celaena e Dorian se encaravam.
Quaisquer expressões familiares que ele um dia tivesse estampado no rosto haviam sumido. E parte
dela — a parte que passara tantas noites ansiosa para ver aquele rosto lindo — realmente
lamentou. Olhar para Dorian tinha se tornado difícil.
Ela deixou os dois no estábulo com um breve boa-noite, parabenizando Chaol pelo novo
presente. Celaena não ousou virar na direção do parque, onde o som da multidão sugeria que
Hollin tinha aparecido e descobria as jaulas. Em vez disso, saiu correndo escada acima para o calor
dos aposentos, tentando afastar a imagem dos dentes de ferro da bruxa e o modo como ela gritara
para os três aquelas palavras sobre destino, tão parecido com o que Mort dissera na noite do
eclipse...
Talvez fosse intuição, ou talvez fosse porque Celaena era uma pessoa horrível que nem
conseguia confiar no conselho de uma amiga, mas ela queria voltar para o mausoléu. Sozinha.
Quem sabe Nehemia estivesse errada quanto à irrelevância do amuleto. E Celaena estava cansada
de esperar que a amiga encontrasse tempo para pesquisar a charada do olho.
Ela voltaria apenas uma vez, e jamais contaria a Nehemia. Porque o buraco na parede tinha a
forma de um olho; o que seria a íris formava um espaço no qual se encaixaria perfeitamente oamuleto que usava no pescoço.

coroa da meia noite Onde histórias criam vida. Descubra agora