Verona, Itália, 1901.
— Papai, acorde! Por favor, o senhor precisa levantar; não temos nada para comer! Papai, por favor, reaja! — Esta foi a súplica de Gertrudes ao ver o pai sob o efeito de forte ressaca, caído na cama.
A vida da moça, de apenas 18 anos, havia mudado completamente no último ano. Após o falecimento de sua mãe, Maristela, o pai, Joel Bertolini, que era um comerciante bem-sucedido, entrou num total quadro de desânimo e vícios, comprometendo todos os bens da família com gastos descompensados. O resultado foi a perda de tudo o que tinha e a conquista de uma vida miserável. Mas as súplicas da filha que ele tanto amava o fizeram recuperar a sanidade e, então, decidiu que algo deveria ser feito. Lembrou da carta que recebera há alguns dias do primo que estava no Brasil, na qual não tivera a lucidez necessária para dar-lhe a devida importância.
Ainda deitado, com muito esforço, esticou o braço para retirar da gaveta da escrivaninha o envelope. Encostando-se na cabeceira da cama, passou a examinar o seu conteúdo, dedicando-lhe total atenção.São Paulo, 24 de fevereiro de 1901.
Querido primo Joel,
Escrevo-lhe para demonstrar meus mais sinceros sentimentos. Se existe homem no mundo capaz de qualquer coisa pela esposa, com certeza esse homem é você; por isso sou incapaz de imaginar o tamanho da sua dor. A prima Martina me escreveu comu- nicando as últimas notícias de Verona e a carta me trouxe ao conhecimento do triste ocorrido. Rezo a Deus para que o primo encontre forças para superar.
Daqui lhe dou ótimas notícias. O Brasil é um país grande o suficiente para proporcionar boas oportunidades a todos que aqui chegam. Fixamo-nos em São Paulo, onde montamos uma pizzaria. Como os brasileiros gostam da pizza italiana! Consegui, inclusive, juntar uma soma de dinheiro considerável, o suficiente para comprar uma casa!Eu não poderia ter tomado decisão mais acertada quanto me mudar para cá.
O bom da vida é que ela se encontra em movimento constante; ela é dinâmica, meu querido primo. E, se hoje não houver motivos para contentar-se, o amanhã poderá superar suas expectativas. Com isso, quero dizer que hoje o seu momento é de luto, mas esteja certo de que este não é o fim.
Com os melhores cumprimentos,Carlos Bertolini.
Joel levantou-se da cama num sobressalto e falou em voz alta: "Brasil! É para lá que eu vou!"
Cambaleou até o banheiro, sua cabeça ainda doía, e entrou embaixo do chuveiro. Fez a barba e procurou por roupas limpas. Depois de estar finalmente apresentável, procurou a filha para compartilhar com ela a decisão que tomara. Encontrou Gertrudes sentada junto à mesa da sala de jantar e esta quando o viu, espantou-se.
— O senhor parece bem. — Foi tudo o que ela conseguiu dizer. Joel sentou-se ao seu lado.
— Minha cabeça dói um pouco, mas já estive pior — Ele fez uma
pausa com receio de iniciar a conversa — Filha, você sabe o quanto sua mãe e eu éramos ligados. Éramos tão unidos que até parecíamos um só. Éramos um só... — Suspirou.
— Sim, papai. Certamente vocês formavam o casal mais lindo.
— Éramos mesmo. — Joel suspirou novamente — Você sabe o quanto perdê-la me doeu. Eu não estava preparado para a sua partida, eu nunca estaria, como ainda não estou. Um ano se passou e continuo sentindo a mesma dor. Esta dor me fez desejar não mais viver e por isso havia enterrado minha vida junto àquele caixão. Mas olha o que fiz a você! Deixei-te órfão também de pai; estive omisso quando precisou do meu amparo. A questão é que posso até ter o direito de destruir a minha vida, mas jamais a sua! Antes de morrer, sua mãe pediu para que eu cuidasse de você e, certamente, agora ela está decepcionada comigo. — Estremeceu a voz e segurou-lhe a mão — Eu juro, minha filha, que cuidarei de você.
— Oh, papai! Não seja tão cruel consigo mesmo. Está sendo difícil para todos nós. — Respondeu Gertrudes com os olhos marejados.
— Como não ser cruel com um homem tão fraco e egoísta? Aliás, não consigo desempenhar nem mesmo a função de pai! Preciso que me perdoe. Prometo que a partir de hoje tudo será diferente.
— Se é disso que precisa para estar tranquilo, tem o meu perdão, papai. A única coisa que quero é tê-lo de volta. — Disse a filha olhando penetrantemente nos olhos do pai.
— Estou aqui, Gertrudes, e nunca mais te abandonarei. Farei o impossível para que tenha a vida que merece e é exatamente por isso que tomei uma decisão crucial para as nossas vidas. — Joel declarou.
— Que decisão foi essa?!
— Vamos embora. E preciso que acredite que é a única decisão pertinente para o momento. Vamos embora para bem longe daqui!
— Mas, papai, por que precisamos ir embora?
— Sairemos da Itália, minha filha. Do continente! O que o homem pode ter de mais valioso que o próprio nome, que fui incapaz de honrar?! Aqui sou um homem destruído. Fui capaz de destruir e humilhar minha própria pessoa! Preciso recomeçar a vida, deixando aqui enterrado os erros que cometi.
— E aonde iremos exatamente?
— Ao Brasil. O primo Carlos me escreveu contando maravilhas de lá. Veja você mesmo. — Falou entregando-lhe a carta.
Gertrudes passou os olhos lentamente pela carta.
— O primo Carlos parece feliz.
— Sim! Aqui ele não tinha nada e no Brasil tem até uma casa! —
Joel respondeu empolgado.
— Brasil... Parece-me uma boa opção.
— Então você concorda em mudarmos para lá? — Ele perguntou
cheio de expectativa.
— Confesso que não sou capaz de enxergar perspectiva melhor
aqui em Verona. E se não há mesmo outro jeito, cuidemos de organi- zar nossa partida. — Ela deu um tímido sorriso.
— Sabia que poderia contar com seu apoio. Irei imediatamente ao Consulado Brasileiro cuidar dos trâmites da viagem.
E antes que Joel deixasse a casa, Gertrudes lhe chamou a atenção. — Papai...
— Oi, querida?
— O senhor está muito bonito. — Elogiou a filha com um sorriso
que há meses não surgia em seu rosto.
— Obrigado, minha menina. — Disse o pai, retribuindo o sorriso. Naquela época, existia na Europa uma forte campanha do Governo
Brasileiro de estímulo à imigração, pois devido à abolição da escravidão, o país necessitava de mão de obra. Então, muitos viram no Brasil uma grande oportunidade de fugir da pobreza que afligia a Europa. E, como Joel não tinha recursos próprios para custear a viagem, se encheu de esperança com a oportunidade. A viagem seria financiada pelo governo e já iria com um emprego garantido! O que mais um homem arruinado poderia desejar? Seria o início de uma nova vida.
Gertrudes animou-se com a ideia, pois, para ela, qualquer situação deveria ser melhor do que a sua realidade na Itália. Porém, um problema existia: ela teria de deixar Teodoro.
Foi até a casa do rapaz e o convidou para uma caminhada. Enquanto caminhavam pelas charmosas ruelas de Verona, ela escolhia as melhores palavras para comunicar-lhe a novidade, ainda que estivesse receosa quanto à sua reação.
— Preciso contar algo importante a você. — Gertrudes iniciou.
— Eu sei disso e estou ansioso para que comece a falar. — Incitou Teodoro.
— Como você sabe?! — Ela se espantou.
— Você está tensa e nervosa. Conheço-te como ninguém. — Ele abriu um belo sorriso.
— Sim, conhece-me como ninguém... — a moça murmurou.
— Mas agora vejo tristeza em seu rosto. O que aconteceu?
— Deixarei Verona; papai e eu iremos ao Brasil.
— Mas viajar assim de repente? — Teodoro perguntou interrompendo a caminhada — Quanto tempo pretendem ficar lá?
— Ah, Teodoro, estou tão triste que iremos de mudança! Mas, se aqui ficarmos, papai não superará a perda da mamãe. Perdemos tudo! Ele acabou todos os nossos bens e economias em bebida. Como se isso fosse trazê-la de volta... Se ficarmos aqui, iremos à ruína! E agora que ele está empolgado em refazer a vida, tenho que apoiá-lo em sua
decisão. — Explicou Gertrudes.
— Mas não precisa mudar de país para mudar de comportamento! — Tem razão, mas agora que papai caiu em si, está envergonhado
de tudo que lhe ocorreu. Para ele, sua imagem em Verona está destruída.
— Compreendo o pensamento do Joel, mas por que ir embora para tão longe?
— Um primo, que se mudou para o Brasil, escreveu-lhe recentemente contando maravilhas de lá. Papai acredita que esta é a oportunidade de nossas vidas.
— Então já está mesmo decidido?
— Sim, meu pai saiu para providenciar nossa viagem.
Teodoro permaneceu pensativo por alguns segundos.
— Neste caso, posso acompanhá-los. — Voluntariou-se.
— Quer também deixar Verona?!
— Por que não? Trabalharei duro para conseguir um bom sustento
para nós. Sei de várias pessoas que foram para lá e conquistaram ri quezas! Aliás, ouvi dizer que o homem mais rico do Brasil é um italiano, o Francesco Matarazzo. Então, temos grandes chances! — Teodoro falou com toda empolgação.
—Teria mesmo coragem de abandonar a sua terra, sua família?! — Gertrudes estava impressionada.
— Claro! Conseguirei tanto dinheiro, que mandarei buscar todo mundo. O Brasil ficará cheio de italianos! Só não posso te deixar ir embora. — Segurou a mão de sua amada.
— Eu não acredito que deixará tudo para ir comigo! — Ela disse eufórica — Seria muito difícil também perder você! — Abraçou-lhe.
— Você não imaginou que eu te deixaria partir sozinha, imaginou?!
— Ah, Teodoro! — Suspirou — Não imagino minha vida sem você. Claro que pensei em chamá-lo para ir embora comigo, mas eu não poderia persuadi-lo numa decisão que mudará o curso de sua vida. Ali- ás, nem sabemos o que exatamente encontraremos no Novo Mundo.
— O Novo Mundo nos estará inteiramente disponível. Será uma experiência incrível! — Ele disse com brilho no olhar — Não tenho medo do que possamos lá encontrar, contanto que você esteja junto a mim, qualquer contratempo será superado.
Gertrudes sorriu. A tensão do início da conversa desaparecera e ela até se sentia mais tranquila agora. Teodoro era o seu porto seguro e, com ele ao lado, ela se sentia capaz de tudo suportar.
— Agora precisamos convencer o papai a deixá-lo ir conosco. Mas devo lembrá-lo de que ele não poderá suspeitar do nosso romance, senão não permitirá que moremos sob o mesmo teto. Falaremos apenas que você também decidiu tentar a vida no Brasil. — Disse ela.
— Precisamos mesmo agir desta forma?
— Sim, Teodoro. Essa é a única maneira de ficarmos juntos.
— Confesso que não me sinto nada confortável em mentir, mas faço qualquer coisa para ao seu lado estar.Teodoro Veronesi, rapaz de 20 anos, era vizinho de Gertrudes e trabalhara como vendedor no comércio de vinhos de Joel. Por sua simpa tia, desempenhava muito bem a função de vendedor, sem falar que sua beleza atraia as moças de Verona ao comércio. Ele e Gertrudes perceberam que seus sentimentos iam muito além de amizade e iniciaram o romance no início da adolescência. Como eram vizinhos e por medo de perderem a liberdade que tinham um com o outro, guardaram o romance como o maior dos segredos. Mas agora Gertrudes teria de ir embora e Teodoro estava disposto a fazer qualquer coisa para não a perder. Pediu a Joel para com eles partir para o Brasil, que concordou e até gostou da ideia de levar um ajudante consigo. A família de Teodoro também o apoiou, com a condição de que ele mandasse buscá-los quando estivesse estável no novo país.
Então, em abril de 1901, Joel, a filha Gertrudes e o jovem Teodoro seguiram para Gênova, de onde partiriam. E depois de quarenta dias navegando no oceano Atlântico, desembarcaram no porto do Rio de Janeiro. Já existia um destino certo para eles: a Fazenda Boa Fé, da família Arutes.
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Encantos do Café
RomanceUma família italiana decidiu mudar-se para o Brasil, após a perda de todos os seus bens e para fugir da crise que a Itália se encontrava. Seu destino era a Fazenda Boa Fé; propriedade da família Arutes e uma das maiores produtoras de café do início...