Capítulo 07

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José Arutes esteve trancado no escritório durante toda a manhã; ele fazia o levantamento das despesas da fazenda e estava tão envolvido nos trabalhos, que não percebeu o passar do tempo. Então a Baronesa pediu que Gertrudes fosse chamá-lo para o almoço.

A dama de companhia caminhou ansiosa até o escritório, arrumou o vestido e bateu suavemente na porta.
— Entre, por favor. — Ele respondeu.
— Perdão por incomodá-lo, mas a senhora Baronesa está a sua espera para o almoço.
— Diga-lhe que demorarei mais um pouco. Estou contabilizando nossas despesas e ainda tenho que preparar a papelada para o recebimento das famílias portuguesas que estão para chegar.
— Mais famílias chegarão aqui?! — Ela exclamou.
— Sim, sim. — Arutes respondeu, ainda fazendo anotações em seu livro de registros.
— Posso fazer-lhe uma pergunta?
— Sim, claro. — Ele olhou para ela, finalmente.
— Sendo o Brasil um país tão grande e populoso, por que há necessidade de trazer imigrantes? Eu realmente não entendo isso.
— É simples: se temos que pagar alguém para fazer o serviço, que seja para alguém que o faça da melhor forma; um trabalho qualificado.

Gertrudes indagou curiosa:
— Então os brasileiros não sabem trabalhar?
— Não foi isso que eu quis dizer.
A italiana lhe lançou um olhar cheio de dúvidas.
— Bem, vou tentar explicar. Mas antes sente-se, por favor. — Arutes convidou, apontando para a cadeira a sua frente e depois que Gertrudes sentou, continuou — Os trabalhadores nacionais não querem trabalhar nas fazendas cafeeiras, pois temem que condições seme- lhantes ao trabalho escravo lhes sejam impostas; preferem viver com o mínimo necessário para sobreviver, mas gozar de total liberdade. Há alguns anos, quem fazia todo o trabalho nas fazendas eram os negros africanos, que aqui viviam em regime de escravidão. Eles deixaram seu continente forçadamente e eram vendidos, considerados propriedade dos fazendeiros que os compravam. Os negros africanos aqui chegaram por meio de um grande e lucrativo comércio, o tráfico negreiro, que foi proibido em 1850 por uma lei chamada Eusébio de Queirós. E finalmente, no dia 13 de maio de 1888, o Império aboliu a escravidão, através da Lei Áurea, sancionada pela princesa Isabel, tornando todos os negros africanos livres. Mas isto causou o descontentamento da maioria dos cafeicultores, que, tendo gastado fortunas na compra de escravos, achavam-se no prejuízo por não serem indenizados. A partir daquele momento, todos os negros, antes escravizados, trabalhariam apenas se fossem remunerados, mas os latifundiários, em sua maioria, não mais quiseram a mão de obra negra em suas fazendas. Optaram, então, por contratar mão de obra mais especializada, a mão de obra imigrante, que trouxe ao Brasil novas técnicas agrícolas. Houve então um maior incentivo à imigração, para suprir a carência de mão de obra nas lavouras cafeeiras. Consegui fazê-la entender?
— Sim, foi uma boa explicação. Mas quem vendia os africanos para serem escravos? — A italiana perguntou impressionada.
— Os próprios africanos. A escravidão era uma prática comum no continente africano, inclusive, o comércio de pessoas acontecia na África desde os egípcios antigos. Conhece a história de José do Egito, da Bíblia?
— Sim, claro. José foi vendido como escravo por seus irmãos. Mas por que os africanos eram escravizados pelos próprios africanos?
— O continente africano é formado por povos diferentes, etnias diferentes. Então, foram vários os motivos que tornavam essas pessoas escravas: aprisionamento em guerras por tribos rivais, punição por transgressão ou crime, dívidas ou mesmo por falta de recursos para a sobrevivência na mesma tribo.
— Algo triste e difícil de imaginar. Eu sei que tornar escravos os povos derrotados ou considerados inferiores foi uma prática comum em culturas antigas. Os romanos fizeram escravos os povos dominados; os mouros, quando dominaram a Península Ibérica, fez também escrava a população nativa. Mas não pensei que pudesse acontecer tão recentemente.
— E apesar da escravidão ser prática antiga na África, ela aumentou consideravelmente com a chegada dos europeus no continente. Estima-se que 12 milhões de pessoas deixaram a África para serem escravizadas, tendo o Brasil recebido em torno de 4,8 milhões destas pessoas. E por causa do tráfico negreiro, muitas tribos foram destruídas, muitas guerras aconteceram na África. Ainda bem que o tráfico foi proibido. Só Deus sabe o sofrimento desse povo... toda forma de escravidão é desumana! — Arutes falou, dando um longo suspiro — Nunca concordamos com essa prática. Esta fazenda, no tempo do meu avô, possuía muitos escravos, mas meu pai sempre foi abolicionista e tornou todos livres.
— E como o tráfico de negros teve fim no Brasil?
— Por pressão da Inglaterra, que estava interessada num possível mercado consumidor. Como a Inglaterra sempre teve relações comerciais com o Brasil, o fim da escravidão ocasionaria o aumento considerável de consumidores, pois boa parte da população brasileira era escrava. Os negros africanos passariam a ser trabalhadores livres e remunerados.
— Mas, se a lei que proibia o tráfico negreiro é de 1850, por que então o Brasil demorou tanto a tornar os escravos livres?
— Essa era uma questão muito delicada para o Império do Brasil. Nosso imperador, Dom Pedro II, era contra a escravidão, inclusive, ele não possuía nenhum escravo; todos que trabalhavam para ele recebiam por seus serviços. Mas o que causou a estabilidade econômica do Brasil Império foi a produção cafeeira, que dependia essencialmente da mão de obra escrava. E como o Brasil se tornou o maior exportador mundial de café, os cafeicultores passaram a gozar de muito prestígio, sendo denominados como Barões do Café. É fácil entender que D. Pedro II não queria correr o risco de perder o nosso importante apoio. Então, mesmo contrário à escravidão, o imperador dependia do apoio dos Barões do Café, os detentores do poder econômico, já que a economia do Brasil era substancialmente dependente do produto. Para você ter uma noção, a importância do café para o Brasil é tão grande que está até representada na bandeira imperial brasileira.
— Percebe-se a importância. E se a escravidão foi abolida em 1888 e pouco tempo depois o império caiu, em 1889, significa dizer que estes fatos estão relacionados?
— Totalmente. Com a abolição da escravidão, praticamente toda a aristocracia cafeeira se voltou contra o imperador D. Pedro II, unindo- se aos republicanos.
— Não acredito! Entendo a raiva dos cafeicultores, mas penso que a decisão de D. Pedro II foi a mais acertada e justa possível!
— Certamente. Sempre defendemos a causa abolicionista. Inclusive, meu pai lutou junto à Princesa Isabel para que a abolição se tornas- se uma causa possível. Embora tenhamos perdido o nosso Imperador, graças a Deus conseguimos.
— Pode-se dizer que a república foi motivada por um sentimento de vingança?
— Não somente. O Exército Brasileiro estava descontente, achava-se desprivilegiado pelo regime monárquico, principalmente após a Guerra do Paraguai, na qual o Brasil foi vitorioso. Também tinha a questão da igreja, que não gostava de ser subordinada ao Estado, por meio do regime de padroado, e que por este motivo mantinha relação conflituosa com o Império, pois o imperador tinha o poder de nomear bispos e cardeais. E, por fim, a perda do apoio da maioria dos cafeicultores, causado pelo fim da escravidão. A soma destes fatores resultou no golpe contra D. Pedro II e a instalação de uma nova forma de governo: a república. O imperador foi destronado por um golpe dos militares.
— E como D. Pedro II reagiu?
— Ele não reagiu.
— Como pode?! — Gertrudes se espantou.

— D. Pedro II, àquela altura, devia estar cansado. Tornou-se imperador quando tinha apenas cinco anos, quando seu pai, o imperador D. Pedro I, abdicou do trono para retornar a Portugal.
D. Pedro II foi um homem erudito, esteve sempre voltado à cultura e à ciência. Falava vinte e três idiomas, era um homem viajado e buscava sempre inovações. Conseguiu manter a unidade territorial do extenso Brasil e alcançou a estabilidade do país. Era um homem respeitado também no exterior, tão respeitado que recebeu, só na Filadélfia, mais de 4 mil votos espontâneos nas eleições presidenciais dos Estados Unidos, em 1877. E, por ser querido por quase toda a população, teve de deixar o Brasil durante a madrugada quando foi exilado, para que a população não soubesse de sua partida, evitando possíveis rebeliões.
Na véspera, lhe foi oferecido uma grande soma de dinheiro como indenização, que foi prontamente recusada por ele. Seguiu, então, para o exílio, fazendo uma parada em Portugal. Quando chegou a Lisboa, o rei era seu sobrinho-neto e ofereceu-lhe um palácio como moradia, mas ele recusou a proposta, preferindo se hospedar num hotel. Ainda em Portugal, na cidade de Porto, D. Pedro II perdeu sua esposa, a imperatriz Tereza Cristina, e seguiu para o que acreditava ser o seu destino: a França. Lá viveu os seus últimos dois anos, com poucos recursos e morando num hotel simples. Morreu de pneumonia aos 66 anos e suas últimas palavras foram: "Deus que me conceda esses últimos desejos: paz e prosperidade para o Brasil."
— Que triste fim para uma figura tão memorável! Ao menos a república trouxe alguma mudança ao Brasil?
— Nesses primeiros anos de República, não percebemos nenhuma mudança considerável. Continuamos com os mesmos problemas de antes e posso afirmar que alguns se tornaram até mais evidentes. Por exemplo, o regime republicano não realizou nenhuma medida de assistência aos ex-escravos até o momento. Os negros africanos estão livres, mas como a maioria não tem instrução alguma e com o preconceito que existe na sociedade, são poucas as oportunidades que eles têm. O resultado disso é que os ex-escravos estão se concentrado nas regiões marginais da cidade do Rio de Janeiro, improvisando habitações em morros e vivendo miseravelmente. Um recomeço difícil para estas pessoas. — Arutes explicou — Vejo que se interessa por política, senhorita. — Sorriu.

— Não, não. Apenas gosto de entender a realidade na qual estou inserida. Se este agora é o meu país, devo entendê-lo.
— Claro. E como se encontra a política na Itália?
— A Itália, até pouco tempo, era dividida em vários reinos, sendo a sua unificação um fato recente. Foram anos de guerra, até que, com a ajuda da França, finalmente conseguimos vencer a Áustria. O rei Victor Emanuel II foi proclamado rei, em 1861. Após sua morte, assumiu o trono o filho Humberto I, que sofreu um atentado e foi morto por um anarquista. Em seu lugar, assumiu o trono Vitor Emanuel III, seu filho. As coisas devem continuar agitadas por lá. — Gertrudes fez uma breve pausa, recordando-se do motivo que a levou até o escritório de Arutes. — Meu Deus! A conversa está tão interessante que acabei me distraindo. A Baronesa já deve estar impaciente! — Ela falou se levantando.
— Acho que acabei prolongando a conversa...
— Eu que não deveria ter feito tantas perguntas! Desculpa por incomodá-lo, Arutes.

E ele respondeu em pensamento: "Definitivamente, não foi incômodo algum."

Como Arutes bem explicou, o incentivo à imigração no Brasil teve como objetivo a obtenção de mão de obra, mas existiu um outro motivo além deste: promover a miscigenação da população. Na época, entre 1889 a 1914, em virtude da grande quantidade de pessoas negras no Brasil, alguns intelectuais acreditavam que para o país alcançar o desenvolvimento econômico e social, seria necessário o branqueamento da população, teoria conhecida como Branqueamento Social. A elite brasileira adotou esta ideologia e acreditou que a solução para os problemas sociais seria estimular a imigração, promovendo assim a miscigenação da população com o passar do tempo.
O Branqueamento Social tinha como base a eugenia; tese que defendia um padrão genético superior para a raça humana.
Essas ideias racistas estimularam diversos conflitos entre povos, o maior deles foi a Segunda Guerra Mundial; guerra motivada pela imposição da Alemanha da supremacia da raça ariana sobre as demais.

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