Artur nunca foi dado à mentiras. Aliás, ele detestava ter que mentir. E nem era por mera conservação de princípios. Na vida, de vez em quando, é difícil não se prender à alguma inverdade - todos sabemos disso. O medo de Artur ao mentir era mesmo conseguir sustentar a história por muito tempo.
Das poucas vezes em que mentira, sempre fora punido por isso. Não de forma violenta, porque seus pais não eram assim. O que doía nele e tornava a lição efetiva era a vergonha que sentira ao ser pego inventando algo. Lembrava-se claramente de quando, sem pensar, invadira a demarcação do pomar do Sr. Mirven e roubara duas maçãs verdes e suculentas. Fizera isso por dois motivos: um deles era porque o velho era egoísta e não dividia nada com ninguém; não raramente as pessoas viam as frutas apodrecendo nas árvores, intocadas. O segundo, foi mesmo para sentir a adrenalina no sangue. Uma travessura, simples e necessária.
Mas foi descoberto por sua mãe, que desconfiou do volume aparente na mochila de tecido do menino. Fez com que ele retirasse as duas maçãs dali e explicasse de onde tinha conseguido. Geralmente, todo o alimento que chegava em sua casa vinha com seu pai, que, como mercador de peixes, andava o dia inteiro pelas vilas locais vendendo e trocando a pescaria feita pelas manhãs. Portanto, dificilmente eles obtinham comida de outra maneira. Artur mentiu:
- Foi um presente.
De quem?, perguntou a mãe. Artur não respondeu logo, e a mãe perguntou mais algumas vezes. Em seu íntimo, ele oscilou quando a verdade manifestou-se no fundo de sua consciência. Mas ele a afastou como quem afasta um pernilongo perturbador.
- Da Lauren. O pai dela conseguiu algumas frutas com o dono da padaria.
E ela lhe deu duas frutas assim, de repente? Por que? É difícil conseguir maçãs tão boas. Essas, inclusive, se parecem com as que estão crescendo nas árvores do Sr. Mirven, logo aqui ao lado. Grandes, não? E valiosas. Sim, mas não tem problema. Vista seu casaco. Nós vamos até a casa e Lauren agradecer a ela e ao pai dela por tamanha gentileza.
As palavras da mãe deixaram Artur trêmulo. Mas ele não ousou corrigir sua mentira. Não queria contar que se apropriara de algo que não era dele. Agora, tendo aquelas palavras como um eco em sua mente, perguntava-se o motivo de não ter falado a verdade enquanto era tempo. Poderia ter dito antes mesmo de sair de casa, durante o caminho ainda não teria perdido a oportunidade. Mas preferiu ficar calado. Não era por atrevimento. A gente sempre percebe quando a vida está prestes a nos ensinar alguma coisa. Ele queria aprender.
Assim, obedeceu sua mãe, vestiu o casaco, e seguiram para a casa dos vizinhos, os quais, com pesar, desmentiram a história de Artur, que, ainda assim, reteu a verdade mantendo o silêncio diante do confronto. O tempo todo, manteve o olhar baixo, e limitou-se a sacudir a cabeça em negativa. A mãe não era boba; mãe nenhuma é. Elas sabem exatamente cada pequena coisa que você faz na sua vida, mesmo sem terem visto. E, por isso, a do menino seguiu com ele até a casa do Sr. Mirven, com o semblante sereno.
Artur roubou duas maçãs de seu pomar, Sr. Mirven. Ele está aqui para devolver e pedir desculpas. E se oferecer para ajudá-lo no que precisar em relação a seu pomar, durante um mês inteiro. Vamos, filho. Estamos aguardando suas considerações.
Diante daquelas palavras, Artur não tivera saída. Pedira desculpas e sentira a vergonha pincelar de vermelho suas bochechas. O velho nada falou e nem fez, além de pegar as frutas e cuspir no chão. No dia seguinte, antes de sair para o trabalho, o pai de Artur sentou-se na beirada da sua cama, severo, e tiveram uma conversa séria a respeito do assunto. Na maioria do tempo, o garoto ficou calado, apenas ouvindo tudo. Compreendera o acontecimento e sabia que os pais não estavam decepcionados com ele, mas que a advertência era necessária, pelo roubo, sim, mas muito mais pela mentira.
Porém, só teve mesmo a certeza dessa compreensão quando, ao acompanhar seu pai até a porta de casa, junto com a mãe, encontrara os miolos das duas maçãs jogados na porta de casa, já oxidados e cheios de formigas.
Desde então, não lembrava-se de algum outro deslize como esse. Em sua inocência, achava que nunca na vida precisaria fazer isso novamente. É lamentável concluir que estamos tão pouco preparados para o que futuro nos reserva. É decepcionante ver que, por mais que a vida nos ensine algumas lições, e que tenhamos a certeza do aprendizado, ela nos surpreende e nos teste só pra ter certeza de sua eficácia.
Por isso, quando Artur contou uma mentira de novo. Já sabia que estava sujeito a consequências. Já sabia que, cedo ou tarde, miolos carcomidos de maçãs estariam jogados à sua porta mais uma vez. Que eles viriam camuflados em forma de algo muito, muito pior. E agora, não havia pai nem mãe para ajudá-lo a encarar aquilo. Ele teria que fazer isso sozinho, confiando na premissa de que, quando a mentira era realmente necessária, ela não poderia ser de todo errada.
Artur Zafar, doze anos, filho único de Quirino e Raelene, nascido e criado em uma das vilas próximas a Ponta Quebrada, nos arredores de Cefurbo, tinha acabado de contar uma mentira. Uma mentira grande, direcionada a membros cruéis e manipuladores do governo. Uma mentira que poderia prejudicar pessoas que ele nem ao menos conhecia. Uma mentira que asseguraria mais algumas horas, com sorte, dias, de vida para um de seus melhores amigos. Uma mentira que, se usada da forma correta, poderia estender ainda mais esse prazo e traçar novas linhas em um plano que ele inconscientemente acabara de determinar.
Obrigou-se a repetir para si mesmo que tudo ficaria bem, e que ele faria absolutamente tudo o que fosse necessário para encontrar o verdadeiro Theo Garlan e pedir desculpas. Talvez, se ele visse que a mentira envolvendo seu nome salvara uma vida, o perdoasse de imediato. Artur só precisava garantir que isso acontecesse. Aqui, ele rezou intimamente para que conseguisse segurar a história o máximo de tempo possível, sem deixar a verdade escapar, conforme fez quando roubara o pomar do vizinho. Ah, e se o perdão demorasse um pouco, o menino determinou que faria tudo para obter complacência.
Estava disposto a sofrer as consequências, afinal.
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Crônicas da Nova Era - A Revolução
AdventureLIVRO 2. Seja pelos pais ou por respostas, a busca de Artur ainda não terminou. Agora, porém, ele não está mais sozinho: conta com a ajuda de alguns amigos para alcançar o que deseja, e também para desestabilizar a implantação de uma Nova Era em seu...