Então Meridan deduziu, afinal, a verdadeira identidade de Lucas. Toda aquela trabalheira em vão. Quantos buracos haviam sido deixados, todos formando o caminho certeiro para que se expusessem diante dos olhos tiranos daquele homem. Artur percebeu que estava segurando a respiração, e a soltou em um suspiro triste. Ninguém prestou atenção a ele.
Meridan bateu palmas:
- Atenção, todos a postos. Chegou o grande momento! Abram as cortinas e toquem as cornetas.
Foi o que aconteceu. Lá embaixo, as pessoas já se acotovelavam para observar o que ia acontecer na sacada do prédio. Meridan segurou um megafone e informou:
- Queridos cidadãos. Espero que tenham aproveitado bem essa maravilhosa festa em homenagem a Viktor Thiegan. De fato, foi uma bela despedida, mesmo que não à altura do grande homem que ele foi. - A população misturou-se em murmúrios de indignação (Balela!) e exaltação (Viva Thiegan!). Artur remexeu-se desconfortavelmente em seu lugar, revirando os olhos em desaprovação. Pagou caro, pois um guarda percebeu e lhe deu um beliscão na orelha. Meridan prosseguiu. - Porém, chegou a hora de tratarmos de coisas mais. Mais importantes, mais sérias e mais comoventes. Desde que Thiegan se foi, correram em Cefurbo e região comentários maldosos sobre as intenções de nosso governo. BOATOS! Estejam certos de que agora, com a presença de Lorna Thiegan entre nós, tudo continuará correndo bem por aqui. Com a minha supervisão, é claro, e com a continuação da linhagem no governo, a unificação de nossas vilas a Cefurbo será efetiva. (suspiros de espanto do público) Mas não da maneira como dizem, meus caros. Isso tudo é para um bem maior. Eu, Meridan, garanto que não perderão a identidade própria de cada localidade. Discutiremos isso em público em breve. (vaias) Abrandem os corações, companheiros de Cefurbo e região, pois agora vocês presenciarão um ato de maior valia.
Artur prendeu a respiração novamente. Eles virão nos buscar. Eles quem? Quando? Já não estava na hora? Sentiu vontade de gritar e de chorar. Mas permaneceu imóvel, os olhos fixos na nuca de Meridan. Desejou imensamente ter uma arma e atirar no homem. Depois, repreendeu seu pensamento. O anúncio prosseguiu:
- Temos aqui - Meridan virou-se e apontou para Lucas, imóvel ao fundo - um prisioneiro. Sim, um rebelde capturado. Alguém que descobriu nossos ideais, interpretou-os de maneira errônea, disseminou mentiras e tentou causar o caos. Sim, o nome dele é Theo Garlan. (murmúrios de surpresa) Para muitos de vocês, um nome conhecido, visto que era um dos companheiros mais confiáveis que já pisaram neste prédio. Porém, o mundo dá voltas e as pessoas revelam seu verdadeiro eu. ELE ROUBOU INFORMAÇÕES VALIOSAS DO GOVERNO. ELE TRAMOU CONTRA NÓS. E ELE SERÁ EXECUTADO POR ISSO. QUE SIRVA DE LIÇÃO A TODOS VOCÊS QUE PENSAM EM SE VOLTAR CONTRA NÓS. ESTAMOS DO LADO DE VOCÊS, ACREDITEM. E ISSO É UMA DEMONSTRAÇÃO ADEQUADA DESSE FATO. CARRASCO, POR GENTILEZA.
Um guarda arrastou a cadeira de Lucas até que ele ficasse bem visível pela população, próximo à beirada da sacada. Artur ouvia vaias, aplausos e gritos vindos lá de baixo. Uns dois tiros também; era provável que os guardas estivessem tentando colocar ordem na multidão.
O carrasco tirou uma arma do cinto. Era uma revólver de cano comprido, todo preto, e bastante intimidador.
- Um tiro, - explicou Meridan - e acabaremos com isso. Tomem como exemplo o destino dele e repensem no modo que querem levar suas vidas. Ao meu sinal, o carrasco cumprirá a execução. FIQUEM ATENTOS.
Artur estava congelado. O carrasco já apontava a arma para a têmpora encapuzada de Lucas. Tentou imaginar como o amigo se sentia naquele momento, apenas escutando o que se passava em volta. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto. Meridan deu a volta por trás da cadeira de Lucas, foi até o garoto, agachou-se ficando cara a cara e sussurrou:
- Essa é para você, moleque.
De todos os olhares de ódio lançados por Artur aquele provavelmente foi o mais poderoso. Meridan ergueu-se, sério, e voltou para a sacada. Ergueu o braço. O menino sabia que, quando aquele braço caísse, o tiro seria dado.
Fechou os olhos. Não queria ver aquilo. Ninguém viria buscá-los. Aquilo ia acabar ali mesmo. Sem querer, acabou apurando os ouvidos. Escutou um barulho de metal se torcendo. Nhec nhec. Achou estranho, mas preferiu manter os olhos fechados; aquilo poderia ser uma premonição de algo mais horrível que um tiro, se é que era possível. Apertou as pálpebras até lacrimejar.
Nhec nhec. Nhec nhec.
Um barulho alto e medonho de milhares de pedaços de vidro espatifando-se no chão obrigou Artur a abrir os olhos. Ele foi atingido por pequenos cacos. Em seguida, o som de uma pesada estrutura de metal desmantelando-se no porcelanato. O lustre. O grande lustre da sala tinha caído, deixando um buraco enorme no teto, o gesso desprendendo-se perigosamente lá de cima e dois rostos familiares e satisfeitos encarando o rebuliço ali embaixo.
Tannis e Jean. Eles vieram nos buscar.
Artur demorou um pouco a entender que a estrutura do lustre havia prensado cerca de cinco guardas - pernas de uns, troncos de outros e sabe-se lá mais o que. Pedaços de gesso branco caíam formando poeira. O menino procurou Meridan, mas não teve tempo de encontrá-lo. Lá de fora, vagamente, escutava gritos e protestos. Tannis e Jean pularam buraco adentro, atirando e cortando guardas sem pensar duas vezes. Eram muitíssimo ábeis e Tannis, em especial, era extremamente rápida, apesar de ter levado alguns murros e tapas ao lutar com guardas. Logo chegou até Artur e puxou uma pequena machadinha de dentro da bota esquerda.
- Feche os olhos, Art! - e bateu o instrumento contra as cordas e correntes que o prendiam. Ele estava solto. Aparentemente, todos os guardas tinham sido momentaneamente abatidos. Jean tinha deitado Lucas e a cadeira no chão, para tirá-los da visão pública e o libertava agora também. Ambos levantaram-se; Lucas, já sem capuz, e foram até Artur.
- Você está bem, Art? - Artur recebeu um abraço do amigo.
- Estou. Como é que vamos dar o fora daqui? - perguntou, preocupado. - Tem uma bagunça lá fora e com certeza estão vindo atrás de nós.
Jean respondeu sua pergunta equilibrando cadeiras no mesmo rumo do buraco aberto no teto. Subiu em uma e ofereceu a mão à Artur.
- Vem, Art. Espere a gente subir, pra guiarmos o caminho.
Em minutos, Artur se apoiava no gesso frágil, com medo de escorregar, e empurrava o corpo pela abertura do teto. Tannis o seguiu, depois Lucas e, por fim, Jean.
Estavam em um corredor mal iluminado, como um duto largo e fétido, mas suficiente para que todos se mantivessem em pé, mesmo que Jean e Lucas estivessem um pouco encurvados. O primeiro foi na frente e instruiu:
- Andem o mais rápido que puderem. Não estamos muito longe da saída.
Artur esfregou os pulsos e tornozelos machucados e respirou fundo, antes de seguir a determinação do rapaz.
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Crônicas da Nova Era - A Revolução
AdventureLIVRO 2. Seja pelos pais ou por respostas, a busca de Artur ainda não terminou. Agora, porém, ele não está mais sozinho: conta com a ajuda de alguns amigos para alcançar o que deseja, e também para desestabilizar a implantação de uma Nova Era em seu...