Por algum tempo, Cleo contou os minutos, os dias e as horas. Mas quando viu que seu irmão não voltaria pra casa de maneira nenhuma, desistiu. E, assim como seus pais, passou a ignorar a existência dele.
Lucas sempre fora diferente dela. Um espírito rebelde, que procurava pingos nos is e não se deixava intimidar por qualquer um; enquanto ela preferia o silêncio e a observação, o irmão estava sempre indagando e se metendo onde não era chamado. Vivia sendo castigado em casa pelo que era considerado "impertinência". Cleo temia por ele, considerava-o atrevido na maioria das vezes. Sentia-se covarde perante a coragem do irmão, mesmo que sempre tivessem sido bons amigos. A família sempre soube que um dia Lucas seria responsável por algo de efeito, mas a dúvida era se isso seria algo bom ou ruim.
A resposta veio quando um dia ele saiu para o trabalho - era mecânico e trabalhava em uma oficina que cuidava unicamente do transporte do governo de Cefurbo - e nunca mais voltou. Abandonou a casa, deixou todos sem sustento, sem sequer uma mísera satisfação.
Nos primeiros dias, os pais deles choraram. A mãe enfrentava uma séria doença mental, e o sumiço do filho mais velho a deixou desorientada por semanas. Ela chegou até mesmo a entrar em um estado crítico, porém, em um belo dia, acordou como se Lucas nunca tivesse existido. O pai, complacente da situação da esposa, acatou o delírio, fosse proposital ou não. No começo, fora um pouco difícil, mas lembravam-se da personalidade tida como difícil do filho e, por vezes, ainda que com um vago peso na consciência, davam graças a Deus por ele ter sumido. Talvez pudesse ter trazido problemas sérios diretamente à família, que já tinha demais no que pensar.
Cleo sentiu um vazio com o desaparecimento de Lucas. Não eram carne e unha, mas a presença dele a reconfortava. Nos primeiros dias, ela esperou em silêncio pelo retorno repentino do rapaz, contando alguma aventura causada por sua curiosidade aguçada. Mas, depois que a mãe adaptou-se a ideia de que o filho nunca existira e o pai foi conivente com a loucura, ela parou de esperar. Era como se Lucas tivesse morrido, e, por toda aquela ausência, sabe-se lá se não era aquilo mesmo que teria acontecido.
- Ele se foi, minha filha. Sabíamos que isso aconteceria. Sua mãe tem razão: ele deve ser esquecido. Nunca foi um de nós.
As palavras do pai cortaram o coração de Cleo e ecoavam em sua mente como um lembrete eterno de como ela deveria agir. Tentava segui-lo sempre, e doou todos os pertences do irmão para um abrigo, com exceção de um cordão de couro negro trançado que ele usava de vez em quando no pescoço, principalmente em ocasiões especiais. Este, ela amarrou em seu tornozelo, que sempre coberto pelas saias longas que gostava de usar, nunca ficava à mostra.
Alta, magra, de cabelos castanhos e ondulados como Lucas, Cleo tinha um porte delicado que encantava a todos. Falava baixo, não era tímida, porém era contida e sabia a hora certa de se manifestar. Tinha tato: sua percepção era aguçada e ela podia adivinhar os modos de alguém apenas por um olhar.
E, por obter essa qualidade, foi que Cleo começou a ouvir um burburinho peculiar na rua em que morava e decidiu prestar atenção. Pessoas desaparecendo. O filho do padeiro. O irmão mais velho da floriculturista. O neto do leiteiro. O próprio leiteiro. Rapazes e homens jovens de Cefurbo, Ponta Quebrada e de vilas próximas.
Os cochichos iam e vinham, mas como se fossem crime, um assunto proibido. Parentes e amigos de alguns desaparecidos, assim como sua própria família, simplesmente ignoravam o assunto, porque para eles não era necessário explicação, "essas coisas aconteciam". Guardas começaram a ficar mais frequentes por toda cidade, esgueirando-se pelos becos, aparecendo de surpresa em estabelecimento. Uma forma de ameaça para calar o falatório, na visão de muitos. Mas Cleo logo percebeu que eles queriam mesmo escutar melhor o que estava sendo falado pela população.
Cleo ajudava na escola de Cefurbo. Era assistente da professora que cuidava dos alunos mais novos. E foi através dela que descobriu que a a mãe de uma das crianças estava organizando um mutirão para confrontar o governo. Queria juntar nomes de homens desaparecidos, como seu próprio marido, e levar a lista até as mãos de quem quer que fosse o responsável pelo governo desde que Thiegan morreu. Meridan, diziam, seu braço direito. Ouvira dizer, inclusive, que logo apresentariam para o povo a justificativa para o acontecimento.
Isso estava sendo feito às escuras. Nomes eram passados pessoalmente em reuniões particulares marcadas em lugares aleatórios pela cidade para não chamar a atenção. A professora transmitiu o recado a Cleo tentando soar displicente.
- Seu irmão está desaparecido. Sabemos que sua família está conformada com o fato. Mas achei que deveria informar. Só para o caso de você mudar de ideia. Mesmo que não se interesse, um nome a mais na lista pode ajudar quem se importa de verdade.
Alguns dias pensando a respeito e Cleo decidiu que não falaria nada. Era a vontade de sua família, ela sabia, mesmo que nada tivesse comentado dentro de casa. Pouco importava. Continuou levando a vida normalmente e trabalhando.
Um dia, um aluno chegou sangrando em casa. Havia uma semana que seu pai estava sumido. A mãe tornava-se agressiva e violenta a cada dia, inconformada com a situação. Então, ele tinha recebido um tapa por ter dito para ela não se preocupar. Que o pai voltaria. Cleo assustou-se com o fato. No mesmo dia, através da professora da escola, agendou para dali a dois dias a conversa com a mulher responsável pela lista de desaparecidos.
Praça principal, segundo banco à direita da banca de frutas. Lugar movimentado, para não chamar a atenção. Debaixo do focinho do governo, aliás. Nada de levantar suspeitas em lugares isolados e afastados. Encontrariam-se, cumprimentariam-se, como se fosse algo muito casual. O nome deveria ser dito no meio de uma conversa aleatória. E assim foi feito.
- Sim, estamos todos bem. Papai acabou de comprar uma mesa com quatro novas cadeiras, de madeira maciça e escura, mas tão grande que cabem seis pessoas Lucas Benson. Um encanto. Você deveria vir jantar conosco depois.
Assim foi. Cleo voltou para casa naquele dia com o coração pesado e permaneceu assim por alguns dias. Notícias não tardariam a chegar, agora.
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Crônicas da Nova Era - A Revolução
AdventureLIVRO 2. Seja pelos pais ou por respostas, a busca de Artur ainda não terminou. Agora, porém, ele não está mais sozinho: conta com a ajuda de alguns amigos para alcançar o que deseja, e também para desestabilizar a implantação de uma Nova Era em seu...