Liberdade. Essa é uma palavra - ou seria sentimento? - que remete àquele velho clichê: só damos valor a algo quando não mais possuímos. Independente do motivo. Artur estava cansado e triste. Queria dormir, sentia fome, percebia a sujeira e o mau cheiro encrustados na pele e, pela primeira vez, desejou estar em qualquer lugar que não fosse o prédio do governo ou a Central. No meio do mato, exposto a perigos - sim, isso seria melhor.
Assim, pelo menos, poderia respirar sem aquele maldito saco na cabeça, além de permitir que ele se certificasse de que Lucas ainda caminhava a seu lado. O barulho de passos estava alto o suficiente para ele não ter certeza de quem exatamente estava ao seu redor, além dos vários guardas que o guiavam.
De repente, ele ouviu uma voz masculina, trêmula, se pronunciar acima de todos os barulhos, vindo aparentemente de trás dele. Todos pararam de caminhar para ouvir a ordem.
- O menino. Levem-no para a sala de interrogatório. Meridan quer falar com ele a sós.
- NÃO! - gritou Lucas. Ele deve ter tentado lutar contra os guardas, às cegas, pois Artur escutou um barulho oco que o calou, como se tivesse ganhado um soco no estômago. Mãos fortes e desajeitadas o ergueram do chão, ele gritou e se esperneou, mas sentiu que braços passaram também por suas pernas, prendendo-as. Provavelmente estava sendo carregado por duas pessoas.
Logo, as investidas de Lucas silenciaram-se e Artur passou a escutar somente os passos dos guardas que o carregavam. Não demorou para ser jogado no chão, e escutou uma porta se fechando. Tentou desvencilhar-se do capuz e prontamente alguém o ajudou, puxando-o e libertando seu rosto. Era Meridan.
Artur sentiu o suor frio descendo da testa para suas bochechas. Incomodou-se por ter as mãos presas sem poder afastá-lo também dos olhos. Tentou manter o olhar duro mediante a encarada cínica desferida pelo homem.
A sala era escura e não possuía móveis. Era comprida, estreita, com o teto alto. Mal dava para caminhar ali, era suficiente apenas para que duas pessoas ficassem em pé, conforme acontecia naquele momento.
Meridan pronunciou-se:
- Vamos direto ao que interessa, garoto. Não sou Zion, não grito à toa e dificilmente vou te torturar usando métodos duvidosos para saber o que preciso. Essa é uma conversa. De amigo para amigo. Você pode me ajudar, eu posso te ajudar. Você é só uma criança. Ainda está em tempo de mudar seu pensamento, sua lealdade e seus valores. Diga-me o que preciso, eu te despacho de volta para casa. Estamos entendidos?
Artur sentiu a raiva percorrer suas veias.
- Eu não posso ir para casa. - cuspiu; faíscas saindo pelos olhos. Fechou as mãos com tanta força que teve certeza de que as unhas cravadas na pele tinham tirado sangue. Mais um acréscimo à lista de feridas e escoriações que carregava sob a sujeira de dias.
- Como é? - perguntou Meridan, interessado. Ele vestia um sobretudo preto, fechado, e botas pretas como as dos guardas, porém muito mais lustrosas. Seus cabelos tão pretos quanto as vestes emolduravam o rosto pálido e fantasmagórico, deixando Artur quase que hipnotizado.
- Eu não posso ir para casa porque o seu rastreador idiota pegou os meus pais. E eles estão presos naquela Central estúpida. E vão morrer. Não vou dizer nada que você queira saber, porque prefiro morrer também.
- Parece que não adianta mesmo que eu diga nada, então... Artur, não é?
- Sim, e não, não adianta.
- Certo. Então eu vou lhe dizer o que eu sei. Pode ser?
Artur ficou desconfiado. Apesar de ter olhos frios e uma aparência ameaçadora, Meridan conversava com ele sem a violência tão característica pela qual vinha passando nos últimos tempos. Por um momento, quase relaxou. Limitou-se a menear a cabeça afirmativamente, afinal, queria sim ouvir o que aquele homem tinha se gabado de saber. Deu um passo para trás, encostando as costas na parede fria. Meridan continuava imóvel, os braços cruzados na frente do corpo, como um professor passando sermão em seu aluno favorito.
- Eu sei que você foi pego por um rastreador. Sei também que foi parar no bando de um tal Lucas Benson. Como eu sei? Aquele Hiam, lembra-se? Sim, porque você estava no mesmo grupo que ele traiu de acordo com minhas ordens.
O mundo de Artur desmoronou-se lentamente diante dessa declaração. O que fora conversado dentro da van é que Jean e Tannis, os prisioneiros capturados no trajeto à Cefurbo, é que eles encobririam Lucas até o último minuto em seu disfarce como Theo Garlan. Passaram, inclusive, informações verossímeis que Lucas poderia utilizar em caso de interrogatórios. Tinham consciência de que a aparência dele também não enganaria por muito tempo. Não faziam ideia do rosto de Garlan, mas pelo que seus companheiros diziam, não se pareciam realmente. Alguém que trabalhava dentro do prédio do governo o reconheceria em algum momento. E Artur estava às cegas em relação a como Lucas agiria dentro daquele complexo. Sentiu o coração pulsando na garganta com uma rapidez incrível. Estava perdido. Meridan prosseguiu.
- O fato é que ele me informou a respeito de um garoto por lá e eu não tenho dúvidas de que seja você. Meus rastreadores foram enviados com algumas falhas, mas de todas que me foram reportadas, só um menino da sua idade foi mencionado nos registros. Por Hiam. Ele está morto, e não vamos ter uma acareação por aqui, infelizmente. De qualquer forma, são provas suficientes e não se dê ao trabalho de negar. Você veio de outro grupo rebelde e agora encontra-se com Theo Garlan. Há um furo nessa história. Eu não sou idiota. E também não sou Zion. É por isso que, com sua colaboração ou não, eu vou descobrir o que tem de errado. Vou lhe fazer uma única pergunta, mesmo você tendo se recusado a me ceder informações. Você não precisa responder, se não quiser. Não vou forçá-lo a nada. O que quero saber, é: aquele homem com quem você chegou é mesmo Theo Garlan?
- Sim.
A palavra escapou da boca de Artur sem querer. Ele não teve realmente tempo para pensar, mas aquilo pareceu tão, tão errado, embora ele soubesse que tecnicamente seria o certo a se responder. Meridan sorriu.
- Ótimo. Virão buscá-lo em breve para levá-lo para a cela.
O homem arrastou-se, um grande morcego negro na brancura da pequena sala, destrancou a porta e saiu, deixando Artur sozinho em meio a pensamentos confusos e desesperadores.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Crônicas da Nova Era - A Revolução
AventuraLIVRO 2. Seja pelos pais ou por respostas, a busca de Artur ainda não terminou. Agora, porém, ele não está mais sozinho: conta com a ajuda de alguns amigos para alcançar o que deseja, e também para desestabilizar a implantação de uma Nova Era em seu...