Houve uma convenção hoje. Das mais importantes! A CCXP acontece uma vez por ano e reúne gente de todos os cantos do mundo num barracão enorme. Quadrinhos, filmes, livros e animes. Cosplays até perder de vista. Eu estava tão ansioso...quem poderia imaginar o desfecho que a história levou?
Às 7h, eu já estava vestido, sentado em frente ao balcão da cozinha, comendo os cereais de chocolate que minha mãe preparara e mandando mensagens para Mônica. Ela guardaria um lugar para mim no ônibus. Ela estava fazendo segredo sobre o seu cosplay havia duas semanas. Toda noite, eu recebia alguma foto dela trabalhando nele, linha e agulha na mão, olhos vermelhos de sono.
Parti, enfrentando o vento gelado lá fora, prometendo a minha mãe ter cuidado e tomar conta de Mônica. Nossas mães eram amigas da época de faculdade, uma era madrinha de casamento da outra e a coisa toda. Foi por isso que crescemos juntos, frequentamos sempre a mesma escola e revezamos carona para todas as festinhas de aniversário do ensino fundamental. Foi só no primeiro ano que tudo começou a mudar.
Parado no ponto de ônibus, usando fones de ouvido e pensando a respeito, imaginei se a culpa da distância crescente entre nós dois seria minha. Nesse ponto, eu sempre colocava a responsabilidade sobre Mônica; fora ela quem encontrara novos amigos (especialmente, amigas) e passara a frequentar as casas deles em vez da minha. Ela quem arranjou dois namorados ciumentos em 6 meses e disse não poder mais dormir em casa nos finais de semana. Ela quem arranjara outras companhias para o cinema e parara de escrever no nosso fórum de resenhas.
Naquele dia, no entanto, não foi essa a conclusão à qual cheguei. Enquanto o ônibus dobrava a esquina e eu estendia o braço, pedindo que parasse, imaginei ser eu o problema. Já tínhamos 15 anos. Não íamos mais a festinhas de aniversário ou líamos gibis, tarde da noite, à luz de lanternas. Mônica estava crescendo, vivendo e fazendo o que se espera de uma adolescente. E eu ficara para trás.
***
Quando subi no ônibus, procurei Mônica, passando os olhos pelos rostos cansados de tanta gente acordada àquele horário para trabalhar. Nem sinal dos cabelos loiros. Sentei-me num banco escolhido a esmo e enviei uma mensagem.
Jack: Cadê você?
Mônica: Tive um contratempo. O primeiro ônibus quebrou e ainda não chegamos nem à rodoviária. :'( Vou demorar um pouco. Guarde comida para mim.
Jack: Vou comer tudo. ¯\_(ツ)_/¯
Estaria sozinho mais uma vez. É claro, a culpa não era dela. Mas isso não me deixava mais aliviado. Tanta coisa para ver e fazer e eu estaria sozinho. Balancei a cabeça. Combinamos de eu mandar fotos de tudo que fosse mais interessante até ela chegar, mas eu sabia, no meu íntimo, que era bem possível ela perder todo o primeiro dia de evento.
***
A primeira hora dentro do barracão foi enlouquecedora. Não sabia o que fazer primeiro, se deveria concentrar minhas energias nas atrações — como palestras e prévias dos jogos que seriam lançados apenas no ano seguinte — ou ir até as bancas de revista em quadrinho, esperar nas filas gigantes de autógrafo e ter a chance de dar uma boa olhada nos meus ídolos. Parecia uma criança na manhã de natal.
No entanto, havia algo de estranho num dos corredores. E eu não podia deixar de pensar naquilo. Talvez fosse a minha obsessão declarada por jogos de zumbi, mas estava encantado com a fantasia de um cosplay específico.
Na área de exposição do novo The last of us, um cara tinha as feridas falsas mais realistas já vistas. Elas cheiravam a sangue e podridão. Seu modo claudicante de mover-se era fidedigno demais. Seus dentes amarelos...davam-me agonia só de olhar. E seus gemidos, eles entravam como uma sinfonia hipnótica nos ouvidos e eram capazes de enlouquecer o mais saudável dos visitantes. Eu vira-o de longe, mas estava tomado pela vontade de voltar até lá e perguntar como conseguira aquele resultado com maquiagem.
Não pensei duas vezes. Já cansado de tanto andar por aquela infinidade de barraquinhas, rumei para o corredor com os fãs de The last of us. Mal havia alcançado o moço, inquiri:
— Cara, seu cosplay é incrível! Eu tenho uma amiga que vai querer todas as suas dicas, sério. Posso tirar uma foto com você?
Só obtive resmungos ininteligíveis em resposta. Será que alguma parte da fantasia cobria-lhe a boca? Abri a câmera frontal do celular e sorri. Ele continuou virado para o outro lado. Pedi que dissesse "xiiiiiis!". Ele olhou-me, lançando a mão em direção ao meu rosto. Tinha unhas enormes e sujas.
Tentei livrar-me de suas garras, mas pude sentir o arranhão fundo na minha pele. Empurrando-o, verifiquei o estrago em meu rosto pela câmera do celular. Ali estavam, as três marcas perfeitas na minha bochecha.
—Qual é o seu problema? Eu só queria uma foto! Minha mãe vai me matar.
Ele olhou-me de esguelha, continuava com a boca entreaberta. Tinha um gemido constante e baixinho vindo de sua garganta. Um som animalesco que me lembrava Sméagol. Um louco? Afastei-me dali o mais depressa possível.
Mas havia algo esquisito no lugar. Subitamente, a onda de vozes e risadas, som permanente dentro do galpão, foi substituída por um silêncio avassalador. Olhei ao redor. Senti um arrepio percorrer-me a espinha. Vi-me completamente sozinho.
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Diário Zumbi [em revisão]
Science FictionJack é um adolescente excluído de 15 anos que passa todo seu tempo livre jogando video game. Ele nem imagina que sua experiência de gamer level expert em jogos de zumbi será tão útil...