21/04/2014

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Houve uma convenção hoje. Das mais importantes! A CCXP acontece uma vez por ano e reúne gente de todos os cantos do mundo num barracão enorme. Quadrinhos, filmes, livros e animes. Cosplays até perder de vista. Eu estava tão ansioso...quem poderia imaginar o desfecho que a história levou?

Às 7h, eu já estava vestido, sentado em frente ao balcão da cozinha, comendo os cereais de chocolate que minha mãe preparara e mandando mensagens para Mônica. Ela guardaria um lugar para mim no ônibus. Ela estava fazendo segredo sobre o seu cosplay havia duas semanas. Toda noite, eu recebia alguma foto dela trabalhando nele, linha e agulha na mão, olhos vermelhos de sono.

Parti, enfrentando o vento gelado lá fora, prometendo a minha mãe ter cuidado e tomar conta de Mônica. Nossas mães eram amigas da época de faculdade, uma era madrinha de casamento da outra e a coisa toda. Foi por isso que crescemos juntos, frequentamos sempre a mesma escola e revezamos carona para todas as festinhas de aniversário do ensino fundamental. Foi só no primeiro ano que tudo começou a mudar.

Parado no ponto de ônibus, usando fones de ouvido e pensando a respeito, imaginei se a culpa da distância crescente entre nós dois seria minha. Nesse ponto, eu sempre colocava a responsabilidade sobre Mônica; fora ela quem encontrara novos amigos (especialmente, amigas) e passara a frequentar as casas deles em vez da minha. Ela quem arranjou dois namorados ciumentos em 6 meses e disse não poder mais dormir em casa nos finais de semana. Ela quem arranjara outras companhias para o cinema e parara de escrever no nosso fórum de resenhas.

Naquele dia, no entanto, não foi essa a conclusão à qual cheguei. Enquanto o ônibus dobrava a esquina e eu estendia o braço, pedindo que parasse, imaginei ser eu o problema. Já tínhamos 15 anos. Não íamos mais a festinhas de aniversário ou líamos gibis, tarde da noite, à luz de lanternas. Mônica estava crescendo, vivendo e fazendo o que se espera de uma adolescente. E eu ficara para trás.

***

Quando subi no ônibus, procurei Mônica, passando os olhos pelos rostos cansados de tanta gente acordada àquele horário para trabalhar. Nem sinal dos cabelos loiros. Sentei-me num banco escolhido a esmo e enviei uma mensagem.

Jack: Cadê você?

Mônica: Tive um contratempo. O primeiro ônibus quebrou e ainda não chegamos nem à rodoviária. :'( Vou demorar um pouco. Guarde comida para mim.

Jack: Vou comer tudo. ¯\_(ツ)_/¯

Estaria sozinho mais uma vez. É claro, a culpa não era dela. Mas isso não me deixava mais aliviado. Tanta coisa para ver e fazer e eu estaria sozinho. Balancei a cabeça. Combinamos de eu mandar fotos de tudo que fosse mais interessante até ela chegar, mas eu sabia, no meu íntimo, que era bem possível ela perder todo o primeiro dia de evento.

***

A primeira hora dentro do barracão foi enlouquecedora. Não sabia o que fazer primeiro, se deveria concentrar minhas energias nas atrações — como palestras e prévias dos jogos que seriam lançados apenas no ano seguinte — ou ir até as bancas de revista em quadrinho, esperar nas filas gigantes de autógrafo e ter a chance de dar uma boa olhada nos meus ídolos. Parecia uma criança na manhã de natal.

No entanto, havia algo de estranho num dos corredores. E eu não podia deixar de pensar naquilo. Talvez fosse a minha obsessão declarada por jogos de zumbi, mas estava encantado com a fantasia de um cosplay específico.

Na área de exposição do novo The last of us, um cara tinha as feridas falsas mais realistas já vistas. Elas cheiravam a sangue e podridão. Seu modo claudicante de mover-se era fidedigno demais. Seus dentes amarelos...davam-me agonia só de olhar. E seus gemidos, eles entravam como uma sinfonia hipnótica nos ouvidos e eram capazes de enlouquecer o mais saudável dos visitantes. Eu vira-o de longe, mas estava tomado pela vontade de voltar até lá e perguntar como conseguira aquele resultado com maquiagem.

Não pensei duas vezes. Já cansado de tanto andar por aquela infinidade de barraquinhas, rumei para o corredor com os fãs de The last of us. Mal havia alcançado o moço, inquiri:

— Cara, seu cosplay é incrível! Eu tenho uma amiga que vai querer todas as suas dicas, sério. Posso tirar uma foto com você?

Só obtive resmungos ininteligíveis em resposta. Será que alguma parte da fantasia cobria-lhe a boca? Abri a câmera frontal do celular e sorri. Ele continuou virado para o outro lado. Pedi que dissesse "xiiiiiis!". Ele olhou-me, lançando a mão em direção ao meu rosto. Tinha unhas enormes e sujas.

Tentei livrar-me de suas garras, mas pude sentir o arranhão fundo na minha pele. Empurrando-o, verifiquei o estrago em meu rosto pela câmera do celular. Ali estavam, as três marcas perfeitas na minha bochecha.

—Qual é o seu problema? Eu só queria uma foto! Minha mãe vai me matar.

Ele olhou-me de esguelha, continuava com a boca entreaberta. Tinha um gemido constante e baixinho vindo de sua garganta. Um som animalesco que me lembrava Sméagol. Um louco? Afastei-me dali o mais depressa possível.

Mas havia algo esquisito no lugar. Subitamente, a onda de vozes e risadas, som permanente dentro do galpão, foi substituída por um silêncio avassalador. Olhei ao redor. Senti um arrepio percorrer-me a espinha. Vi-me completamente sozinho.

Diário Zumbi [em revisão]Onde histórias criam vida. Descubra agora