Capítulo 11

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Respondendo ao chamado direcionando especialmente a ele, o Inversor apareceu nos céus como uma ave de penas negras, primeiro sobrevoando a cena, em seguida descendo em um vôo vertical rápido, implacável. Como se uma gárgula de pedra escura houvesse caído do campanário de uma gigantesca catedral, o monstro pousou diante de Tonya com o peso de um sino de ouro maciço, provocando uma onda de vento que afastou para longe todas as folhas de jornal que forravam os arredores.

Com o coração em desalinho, Ji-Yun viu o monstro de costas para ela – assim como o vira no momento em que matara a mulher na alameda –, repetindo todos os movimentos que precederam a execução. Diante dele, com o rosto lavado de suor frio e horror, Tonya mantinha o cão entre os braços como um escudo, enquanto o mesmo já latia e rosnava para o ser sobrenatural que se aproximava. As mãos de osso se moviam como as de um mestre de marionetes, e a fumaça que surgia onde o tronco do Inversor se findava deixava um rastro obscuro que se dissipava um segundo depois. E foi com esta aproximação que Ji-Yun percebeu que Tonya, naquele instante, avistava algo que ela ainda não conseguira: a face da horripilante criatura.

Como se revivesse uma memória, Ji-Yun viu o Inversor avançar na direção da vítima sem nenhuma pausa, até que parou a um espaço de poucos centímetros. Teve, assim, a visão de Tonya bloqueada, e tudo o que conseguiu fazer foi esperar por algo: se algo bom ou ruim ela não sabia dizer. Os muitos metros que a separavam da cena dificultavam a compreensão dos fatos, mas nem mesmo o medo, a incerteza ou a raiva que crescia em seu peito conseguiram mascarar o que iria, a partir dos segundos seguintes, se desenvolver.

Primeiro, o zumbido metálico ecoou pelos ares, desta vez pouco afetando as duas mulheres. As luzes piscantes, originadas por algo que vinha de lugar nenhum, aconteceram logo em seguida, criando a atmosfera que os dois seres humanos que a presenciavam já conheciam muito bem. Depois disso, em uma total emulação da ação realizada diante da casa onde se escondia o garoto de olhos coloridos, o Inversor produziu um fio avermelhado e que Ji-Yun conseguia apenas avistar de longe. O fio, assim como antes, deixara um corte suspenso no ar, corte que abriu-se em uma fenda através da qual o mundo dos vivos se exibia em cores vivas, em contrastes e nuances quentes. O cenário finalmente estava pronto, e o destino de Tonya seria decidido nos momentos seguintes.

De olhos fechados, incapaz de encarar tamanha monstruosidade, a mulher tremia com o cão apertado entre os braços. Não havia conseguido olhar por mais de meio segundo nos olhos do Inversor, mesmo que este curto espaço de tempo houvesse sido o suficiente para ela notar que ele, na verdade, não possuía olhos: sua cabeça era também feita de osso, osso puro e gasto, de cor amarelada e salpicado de sangue. Era apenas um crânio exposto, comprido e completamente distinto; era um crânio inumano que um dia, no mundo dos vivos ou no dos mortos, pertencera a algum tipo de animal.

Sentindo o pavor enregelar suas entranhas, Tonya lutou contra a necessidade de gritar, de se mover, de correr dali o mais rápido que conseguisse. Evitara tais ações de maneira proposital, pois sabia que disto dependia o sucesso ou o fracasso de seu plano. Esperou o tempo necessário para que o Inversor, ao encarar o pequeno animal em seus braços, se visse dividido entre mandá-lo de volta e eliminar o ser humano que o segurava. "O Inversor é um funcionário deste mundo", lembrou-se de ouvir o garoto do casarão dizer. "Ele expulsa os impuros com sangue, mas envia sãos e salvos os inocentes de alma e coração". Usando-se de sua esperteza, Tonya havia criado ali uma dualidade, uma dúvida que faria o monstro ter que tomar uma decisão. E ele o fez.

Pelas portas do Ponta Oeste, não muito tempo depois, Ji-Yun viu o braço direito do Inversor se movendo de forma suave, quase cuidadosa. Com as garras que compunham seus dedos esqueléticos, viu-o puxando Tonya lentamente pelo ombro. E com uma sensação agridoce na boca e na garganta, viu a dançarina – graças à pureza do animalzinho de pêlos alvos – ser mandada de volta para o mundo dos vivos, intacta e inteira, sem nenhuma gota de sangue e sem nenhuma palavra de despedida.

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