De pé ao lado de Luca, velando por seu corpo adormecido como se vela um cadáver em um caixão, Nancy notou quando um fino corte surgiu em sua bochecha esquerda, rosada e de pele levemente ressecada. Seus olhinhos escuros imediatamente tornaram-se preocupados e atentos. Conhecia Luca muito bem para saber que não era um rapaz desajeitado a ponto de cortar-se por acidente; se um ferimento surgira em seu rosto, significava que as coisas no Reflexo não andavam assim tão calmas como August desde o princípio dera por entender.
O espírito da menina já estava sozinho na sala por uma dúzia de minutos, junto ao amigo em sono profundo. Os momentos de quietude eram quebrados, porém, a cada dez minutos, quando um dos funcionários do Equilibrium surgia na sala e pingava, cuidadosamente, gotas de algum tipo de colírio no olho azul de Luca, visando evitar o extremo ressecamento do globo ocular em contato ininterrupto com o ar. O velho Barwell, por sua vez, demorava-se em outra sala. Pedira licença a Nancy, alegando não se sentir muito bem, rumando logo depois com dificuldade em sua cadeira pelo estreito corredorzinho. Da sala do ponto de simetria, Nancy podia ouvir com clareza os surtos de tosse do pobre velho subindo garganta afora em um som seco e desagradável. Soava até como um cachorro engasgado. Repentinamente, então, as tosses cessaram e a casa ficou completamente silenciosa.
Minutos depois o velho reapareceu no ponto de simetria, mas desta vez chegou trazido por um de seus homens. Não nutria mais forças para mover a cadeira de rodas sozinho. O homenzarrão deixou-o ao lado da poltrona onde Luca dormia, imediatamente saindo sem pronunciar qualquer palavra. Exibia um rosto ainda mais fantasmagórico do que antes dos minutos que passou ausente.
—Desculpe-me pela demora, pequena Nancy.
—O senhor está bem? – perguntou ela com sua vozinha delicada.
—Não direi que estou bem, pois estaria mentindo. Precisei ir tomar um pouco de ar fresco do lado de fora. Ficar trancafiado aqui o tempo todo não colabora muito. Tem muitas coisas velhas na outra sala e que me causam alergias.
A menina examinou August por breves momentos e notou que ele realmente não estava em posição de definir-se com a palavra "bem". Seu corpo magro e enrugado tremia incessantemente e seus braços finos pareciam prestes a despencar do tronco. Até sua voz soava desprovida de força vital.
Nancy não vivera muito tempo com seu corpo, seus meros nove anos passaram e findaram como o desabrochar de uma breve primavera; sendo um espírito vagante por mais de trinta anos não lembrava exatamente como era ser um corpo sólido, com sangue pulsando nas veias. Não tinha lembranças de como era sentir dor, de como era a sensação de uma tosse, ou de uma topada com o dedão do pé em uma maldita pedra na calçada. Ao olhar para aquele pobre velho, porém, era quase capaz de sentir sua angústia, sua luta para viver por apenas mais um dia. Não era preciso muito, no entanto, para ter a certeza de que a vida de August já havia comprado a passagem e que esperava apenas pela chegada do trem que a levaria embora numa viagem só de ida.
—O rosto dele está ferido – ela sibilou devagar, novamente recostando ao lado de Luca e apontando para o corte que se destacava vivo e vermelho na pele branca.
—Não parece nada sério.
—Ele não deveria se machucar.
—Tenho certeza que Luca está se saindo muito bem, pequena Nancy. Ele é um rapaz muito competente, e sei que conseguirá resolver nosso pequeno problema.
A garotinha continuava fixamente olhando para o ferimento, um fino corte sem sangue, sentindo-se ligeiramente desconcertada com toda aquela situação.
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EQUILIBRIUM
ParanormalAo cair em uma emboscada durante uma ação de flagrante contra um grupo de traficantes, a agente federal Ji-Yun Kwon é sugada por um fenômeno paranormal, uma espécie de falha entre mundos que a transporta para uma versão desbotada e distorcida da cid...