A rua tinha pouco movimento, mas ainda assim ouvia-se de longe a gritaria que ocorria na casa dos Mendez. Uma calorosa – e por vezes agressiva – discussão se desenvolvia por entre as paredes da casinha amarela, de janelas e cortinas brancas, e que não fosse pela situação poderia confundir-se com apenas mais um lar tranquilo e pacífico do subúrbio.
Minutos depois, após esbravejar com todo o fôlego que lhe cabia, à janela que dava para a rua surgiu uma mulher morena, cabelos lisos e escorridos até os ombros, usando um uniforme de um cinza referente a uma rede de fast-food qualquer. De seus olhos castanhos escorriam grossas lágrimas, que borravam-lhe a maquiagem e davam forças para realizar sua tarefa: atirar pela janela pares e mais pares de roupas, variadas entre camisas, calças e bermudas masculinas. Enquanto se livrava dos pertences, gritava palavras incompreensíveis, carregadas de fúria e regadas a um choro desmedido.
—Jane, meu amor! – disse um homem moreno e alto, depois de deixar a casa e prostrar-se em frente à porta. – Não faça isso, vamos conversar!
—Não tenho nada pra conversar com você, seu cafajeste! Saia da minha frente!
—Jane, acalme-se, por favor! – foi a vez de uma mulher também morena, de cabelos pretos e roupas curtas, implorar.
—E você não se dirija a mim, vagabunda! Você era minha melhor amiga!
Depois que o último par de roupas alcançou a calçada, o homem e sua acompanhante apanharam o que conseguiram, e sem qualquer outra opção, rumaram até o velho Corcel cor-de-oliva que esperava à frente da casa. Aflitos, ocuparam o veículo, que foi ligado depois de alguns segundos de silêncio constrangedor. O ronco do velho motor atravessou a rua, e o trajeto foi assim iniciado.
—O que vamos fazer? – perguntou o homem, visivelmente afetado pela intensa briga com a esposa traída.
—Você pode se hospedar na minha casa por um tempo, até a poeira baixar. Sabe que ela vai te aceitar de volta – a amante respondeu, sem parecer perturbada.
O homem então levou a mão direita, de dedos grossos e peludos ao rádio, e com um clique fez tocar uma rádio que reproduzia uma enfadonha seleção de músicas românticas. Depois, guiou a mesma mão até a coxa de sua passageira, aproveitando para olhá-la nos olhos.
—É. Sei sim – ele devolveu, agora sorrindo cinicamente.
O carro, soltando fumaça e engasgando a cada cem metros percorridos, seguiu seu caminho e logo chegou a uma alameda comprida, com casas pequeninas dos dois lados. Completamente silenciosa, a rua parecia não ter movimento constante, visto que havia sido substituída por uma avenida maior e mais organizada, passando a funcionar apenas como caminho alternativo para o bairro onde vivia a mulher no banco de carona. As casas e prédios de ambos os lados não exibiam sinais de vida humana, e tudo remetia a abandono e sujeira de mendigos que só retornavam para dormir. O silêncio do lugar era quebrado apenas pelos estalos do velho carro, que seguia a uma centena de quilômetros por hora sem que seu motorista se preocupasse com as condições dos freios, que por muitos e muitos meses necessitavam de um intenso reparo. Tal reparo, entretanto, jamais seria realizado.
Ao virar em uma curva fechada da quieta avenida, o velho Corcel descontrolou-se. Deixou a estrada, rodopiou pela calçada como um carrinho de brinquedo e chocou-se contra a parede de uma antiga e abandonada loja de estivas. Os tijolos velhos não resistiram ao impacto e cederam perante a fúria do carro desgovernado, permitindo que um rombo indiscreto se formasse na parede e engolisse toda a frente do veículo. A fumaça escura passou a escapar do motor em grossos fios, e os ocupantes, após breves momentos utilizados para a recuperação da consciência, deixaram o interior do carro. Ambos exibiam ferimentos na cabeça, com cortes ensanguentados a tingir seus rostos de vermelho, mas ainda assim mantiveram-se firmes, andando para o meio da rua. Pareciam não sentir qualquer sinal de dor, visto que o sangue a escorrer não os incomodava de nenhuma maneira. Entreolharam-se, perdidos e confusos, mas nada disseram.
O fato realmente incomum deu-se segundos depois: os acidentados, virando-se para todos os lados, notaram que a rua, antes adormecida e vazia, agora estava preenchida por dezenas e dezenas de pessoas. Pessoas sentadas pelas calçadas, ou a caminhar pela rua, ou a observar o que havia por entre as janelas abandonadas. Todas completamente despreocupadas, olhares distantes, totalmente indiferentes ao acidente que ocorrera naquele exato local.
—De onde saiu toda essa gente? – a mulher ferida questionou, ainda incrédula.
—Não faço ideia. Como não as vimos antes?
As perguntas, porém, tornaram-se apenas leves questionamentos quando o homem e sua amante avistaram, ao olharem ao mesmo tempo na direção do carro, que eles mesmos estavam ainda na cabine. Curvados para frente, os membros imóveis e encharcados de sangue, não pareciam respirar. Eram cadáveres.
—Juan... o que... o que está havendo aqui?
Ohomem, porém, desta vez nada respondeu. Ainda não compreendia, mas ele e suaamante eram, agora, nada mais do que espíritos vagantes – assim como todasaquelas dezenas de pessoas despreocupadas que ocupavam a silenciosa avenida.
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EQUILIBRIUM
ParanormalAo cair em uma emboscada durante uma ação de flagrante contra um grupo de traficantes, a agente federal Ji-Yun Kwon é sugada por um fenômeno paranormal, uma espécie de falha entre mundos que a transporta para uma versão desbotada e distorcida da cid...