Capítulo 33

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A viagem de volta, assim como a de ida, foi marcada por um rápido flash, um piscar de olhos que em um imperceptível milésimo de segundo transportara Luca entre os mundos. E lá estava ele, novamente no mesmo lugar, mas de uma forma diferente.

Tudo estava agora mais claro, mais vivo. A luz amarela da sala do Sr. August Barwell no mundo dos vivos substituiu a atmosfera acinzentada do Reflexo, e não foi preciso muito tempo para que o jovem viajante espiritual percebesse que estava de volta. Seu blumergard estava ainda aberto pelos estranhos óculos com garras que sustentavam as pálpebras, que de imediato foram removidos quando Luca sentiu uma quase insuportável ardência em seu globo ocular, causada pelas três horas de pouca lubrificação. Jogando longe o objeto, ele piscou incontáveis vezes até que recobrasse o conforto visual, e tão logo isto aconteceu, passou a procurar por qualquer sinal de vida na sala. Não havia ninguém.

Sentindo o movimento das pernas levemente afetado por uma dormência que se esvaiu em breves segundos, Luca levantou-se e esperou. Encarou o corredor que levava até a sala de coleções do velho, tentando recobrar os últimos momentos de memória, e no mesmo instante foi invadido por um choque intenso, uma lembrança deixada pelos últimos segundos em que estivera no Reflexo. No chão, bem abaixo de seus pés, havia um rastro de sangue que prosseguia na direção da outra sala. Seu coração então palpitou fortemente. As terríveis imagens mais uma vez retornaram. "Ji-Yun", sussurrou, imediatamente atravessando o corredor, temendo o que surgiria diante de seus olhos.

A porta que separava os dois cômodos foi escancarada, e o coração do jovem médium despencou dentro de seu peito quando avistou o velho August, Nancy e um dos seguranças parados bem no centro da sala, observando um corpo sem vida. Uma moça magra, de cabelos pretos e olhos puxados.

—Ji-Yun! – Luca exclamou antes mesmo que os outros notassem sua presença.

Os três voltaram-se bruscamente para ele e o assistiram largar-se sobre o cadáver da colega, sujando suas roupas limpas com o sangue que escorria dos ferimentos no peito da moça. Abraçou-a, sentindo uma incontrolável mistura de tristeza e raiva por não ter conseguido salvá-la. As lágrimas lavaram seu rosto e pingaram nos ombros de Ji-Yun, e o silêncio perdurou por momentos curtos, mas que pareceram durar uma completa eternidade.

A mão enrugada de August, tocando o ombro de Luca, foi o que o trouxe de volta de seu repentino luto. Sem vontade, o rapaz cuidadosamente deitou a agente de volta ao chão, endireitou seus cabelos e por fim se levantou. Olhou ao redor, e apenas esperou que qualquer um deles dissesse qualquer coisa que quebrasse o doloroso momento.

—Sinto muito pela sua amiga – disse o velho em condolência.

Nancy, por sua vez, apenas aproximou-se de Luca e, como costumava fazer, agarrou-se em seu braço e causou-lhe a sensação de frio costumeira. Ele olhou para ela e agradeceu em silêncio, mas foi repentinamente arrebatado por uma surpresa: tinha os dois olhos abertos, e mesmo assim conseguia vê-la. Algo havia mudado. Sua expressão espantada foi assistida por August, que acompanhou os movimentos de seus olhos, incrédulos e confusos, até que por fim direcionaram-se a ele. Entreolharam-se, e com um sorriso o velho denunciou possuir todas as respostas que Luca mais uma vez precisaria ouvir.

—Já chamamos a emergência, em poucos minutos estarão aqui. Já expliquei a todos a situação. A moça foi esfaqueada e entrou aqui pedindo socorro, mas infelizmente não resistiu – disse August enquanto acenava para o segurança, indicando-lhe que gostaria de ir até a sala da poltrona. –Venha comigo, rapaz. Preciso esclarecer algumas coisas.

—Você vai ficar bem? – Nancy perguntou ao rapaz, que respondeu positivamente com um triste balançar de cabeça, lançando mais um olhar na direção de Ji-Yun, e imediatamente caminhou atrás do homem gigantesco que empurrava a cadeira de rodas.

Uma conversa de curtos cinco minutos aconteceu na sala onde ficava o ponto de equilíbrio entre o Reflexo e o mundo dos vivos. Frente a frente, Luca e August discutiram os resultados da curta viagem e que, apesar dos perigos e da perda de uma das peças mais importantes no sucesso da missão, havia saído conforme o planejado. O velho Barwell fizera muitas e muitas perguntas, atento a cada detalhe que o levasse a montar na própria mente toda a grande e arriscada aventura, e Luca prontamente respondeu cada uma das inúmeras questões. O Equilibrium fora encontrado e levado de volta ao ponto de equilíbrio, e os causadores do problema haviam sido devidamente punidos. O fluxo dos espíritos vagantes parecia, por fim, prestes a ser recuperado.

—Creio que agora seja sua vez de ouvir algumas respostas – sibilou August, com a voz frágil de alguém que não viveria o suficiente para ver o próximo pôr do sol.

Luca, gentil, afirmou e sentou-se novamente na poltrona, ao lado do velho Equilibrium. Tinha o casaco chamuscado de vermelho, mas parecia não se incomodar. Entre tudo que vivera naquela agitada noite, manchas de sangue não seriam nem de longe capazes de abalar ainda mais seus pensamentos.

—Percebi o seu espanto após notar que agora é capaz de ver a pequena Nancy sem precisar cobrir seu olho castanho. Não foi só você quem se surpreendeu, tenho que confessar. Esse fato, somado a alguns outros, significa muitas mudanças, especialmente para mim. Um dono de blumergard passa a ver espíritos com os dois olhos apenas quando está cada vez mais iminente o dia em que ele se tornará o novo Equilibrium. Você, Luca, é o novo Equilibrium desta cidade.

—Não estou surpreso, mas suponho que isso também queira dizer que sua vida esteja chegando ao fim. Estou certo?

—Você não poderia estar mais certo, rapaz. Creio que eu não viva mais do que alguns dias a partir de agora.

—Sinto muito – Luca disse depois de alguns segundos.

—Não sinta. Deixarei este plano, mas estarei ainda por muito tempo em outro. Quando um novo Equilibrium é escolhido pelo olho azul dos espíritos e o anterior morre, ele é transportado para o Reflexo, para substituir sua contraparte no mundo dos mortos. O garotinho que você conheceu, Luca, já cumpriu seu trabalho como Equilibrium por duas vezes seguidas, neste mundo e no outro. Infelizmente uma doença tirou-lhe a vida muito cedo, isso há mais de cinquenta anos, e eu logo fui escolhido para ocupar seu lugar. E agora é a vez dele de receber o descanso merecido.

—Então sua jornada está apenas na metade.

August afirmou, com aquele sorriso de dentes amarelos e lábios ressecados.

—E asua, Luca, está apenas começando.

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