#03 - Uma boa companhia

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    Ao chegar em casa, logo esqueci o ocorrido. Sentei-me ao piano e toquei músicas o dia inteiro. Percebi que com o passar do dia, a casa se transformou em uma algazarra, com Sophie e Elizabeth subindo e descendo as escadas do seu quarto para organizar seus acessórios para o baile. Os criados iam de lá para cá, tentando fazer o melhor que podiam para deixar as minhas irmãs o mais confortável possível em seu dia de princesa. No fim da tarde, ambas estavam lindas, é verdade. Sophie usava um vestido branco com bordados em pérola, sua saia um tanto mais rodada do que era de costume, os ombros à mostra. Um coque perfeito em sua cabeça adornado também com pérolas lhe dava um ar de quem acabara de amadurecer. Elizabeth estava com um vestido azul claro, mais simples, porém tão bonita quanto Sophie. Ambas haviam puxado à nossa mãe, belas e com olhos azuis, sendo Elizabeth ainda mais loira, alta e magra do que Sophie. Julgo dizer que não haveria garota mas bonita do que elas no baile.
      - Joana, você precisa se aprontar. Logo mais o baile irá iniciar, não podemos nos atrasar. Sophie olhou para mim, enigmática. - Eu sei que você não gosta destas coisas e que só está indo por minha causa! Mas eu realmente gostaria que você me visse dançar hoje!
      Lhe dei um sorriso meio forçado:
      - Você está linda, Sophie! - eu disse com sinceridade. Quase poderia jurar que sentia um pouco de ternura pela minha irmã, seja lá o que isso fosse!
      Ela segurou a minha mão e me levou até o pé da escada:
      -Maggie irá lhe aprontar imediatamente.
      Eu subi as escadas e logo já estava em meu quarto sendo vestida para mais um baile insignificante. Maggie escolheu um vestido verde escuro para mim, com detalhes em preto e ouro. Meus cabelos foram arrumados em um penteado simples, que deixava os cachos quase soltos e coloquei um batom vermelho para contrastar com as demais garotas que estariam na festa. Todos já acreditam que sou fora do padrão mesmo! Escolhi sapatos confortáveis para suportar toda aquela noite e percebi que estava bonita. Não tão deslumbrante como as minhas irmãs, mas o vestido camuflava a palidez da minha tez. Meus olhos negros, assim como os do meu pai, me davam um ar mais duro do que os olhos azuis de Sophie.
      Na carruagem estávamos eu, Sophie, Elizabeth e nosso pai. Ele parecia absorto em seus pensamentos, um tanto hipnotizado pela paisagem que se formava nas janelas do veículo. Londres não era tão longe, mas ainda assim, levamos quase uma hora para chegar ao local. A minha irmã não era a única debutante da festa, outras duas famílias da aristocracia também debutavam suas filhas, os James e os Sharman, embora eu não conhecesse a debutante desta última família. Pelo que me lembro, o velho conde Mr. Sharman havia falecido à poucas semanas e nunca comentara sobre seus parentes. Era um velho solitário e arrogante que costumava olhar para mim, quando eu era mais nova, com olhares de cobiça, chegando a me chamar para acompanhá-lo sozinha à sua carruagem. Acabei por chutar o meio de suas pernas, o que fez com que ele dissesse para todo mundo que eu o agredi e como eu era mimada e insolente. Nem me dei ao trabalho de desmenti-lo. Morreu enquanto todos acreditavam que era uma boa pessoa.
      O baile estava com uma iluminação fraca, os lustres principais não estavam acesos, apenas os lustres laterais, dando um ar mais intimista e diferenciado à festa. Os Morgan, um casal de americanos, haviam se oferecido para realizar a festa em sua residência. Acredito que gostariam de ser bem vistos pelos demais. Fizeram um bom trabalho, devo admitir. Conseguiram dar um ar de modernidade à festa. Entre os convidados estavam as pessoas de sempre, nada me surpreendeu no momento de minha entrada no salão. Algumas pessoas vieram cumprimentar a nossa família e logo minhas irmãs estavam junto às suas amigas, comparando os vestidos que usavam e observando os garotos no salão. Mr. Collins veio cumprimentar o meu pai e solicitar que Elizabeth lhe concedesse suas danças. A quem mais ela iria conceder, se todos sabiam do noivado de ambos?
      Meu pai logo se recostou em um canto do salão e começou a dar algumas cochiladas que intercalavam com os momentos onde algum conhecido se aproximava para cumprimentá-lo. Eu permanecia ao seu lado, observando as pessoas representando seus papéis naquela sociedade teatral. As mulheres olhando de canto de olho umas para as outras para comparar seus penteados, os homens contando piadas vulgares ou conversando sobre seus empreendimentose os garotos apostando entre si com quais jovens dançariam naquela noite.
       Enquanto meu pai dormia sentado na cadeira, saí de seu lado para buscar uma taça de vinho. Sophie veio em minha direção com os olhos brilhando.
      - Mr. Evans me convidou para as duas primeiras danças! - falou animada. - Tive medo de que ninguém quisesse dançar comigo durante esta noite!
      Balancei a cabeça negativamente:
     - Você nunca ficaria sem um par esta noite. Não percebeu como os olhos dos rapazes se voltaram para você quando chegamos? - eu disse, tentando animá-la. Então percebi uma outra garota ao lado da minha irmã. Mais baixa do que sophie, com sardas no rosto e olhos verdes, a garota sorriu e me fez uma reverência, um tanto apreensiva.
     - Ah, deixe-me apresentá-las devidamente, embora já tenham se encontrado antes. - Sophie sorriu enigmaticamente, - Joana, esta é Miss. Anastácia Sharman, a garota que você salvou hoje cedo. Anastácia, esta é a minha irmã Joana.
      Anastácia sorriu delicadamente e segurou as minhas mãos, me puxando para mais perto. O seu gesto me fez enrijecer o corpo, não estava acostumada que as pessoas me tocassem.
     - Obrigada, Miss. Saunders. Eu e meu irmãos seremos eternamente gratos pelo que nos fez! Nem sei o que poderia ter acontecido se a senhorita não tivesse vindo em meu socorro. Talvez haja algo que possamos fazer para agradecer-lhe.
      - Talvez um jantar em sua nova casa, Anastácia! - Sophie emendou na conversa, demonstrando já ter certa intimidade com a garota ao chamá-la pelo primeiro nome. - Anastácia e o irmão se mudaram recentemente para Woodcottage. O velho conde morreu sem deixar um herdeiro, então seu sobrinho, o irmão de Anastácia acabou por herdar a propriedade. Ainda são novos por aqui e não conhecem muita gente! - acrescentou, me informando sobre onde seria o tal jantar.
      - Seria maravilhoso! Edward ficará encantado em recebê-las! E o seu pai também, é claro! Anastácia deu pulinhos de alegria. Era tão vibrante quanto Sophie.
      Nesse momento, Mr. Evans aproximou-se para cobrar a dança de minha irmã, Anastácia fez mais uma reverência e nos separamos.
      Caminhei por entre os cantos escuros do salão, tentando me manter nas sombras daquele lugar. Já estivera presente tempo suficiente para que Sophie apreciasse a minha companhia. Comecei a me sentir muito angustiada por estar ali com todas aquelas pessoas, uma falta de ar me veio aos pulmões e senti que precisava me afastar. Peguei mais uma taça de vinho e percorri os cantos do salão, até que encontrei uma escada na penumbra. Subi lentamente, esperando que ninguém estivesse vendo o que eu fazia. No topo da escada, se encontrava uma porta. A abri com cuidado, esperando que fosse dar para um lugar onde eu pudesse ficar longe de todo o alvoroço da festa. Ficaria ali até as vozes começarem a diminuir e a música parar. Ao abrir a porta não encontrei uma sala, mas sim, uma varanda espaçosa que tinha uma bela vista para o bosque. O ar frio do início da primavera fez os meus pelos do braço se eriçarem e respirei, percebendo a fumaça fria que se formava no ar.
      Era um lugar agradável, haviam bancos de madeira, alguns castiçais apagados e plantas decorativas. A luz da lua cheia iluminava o local não permitindo que ficasse completamente na penumbra. Me sentei por uns instantes em um dos bancos, contemplando o céu. Coloquei os braços ao redor do corpo tentando escapar do frio. Ali, o som da festa era quase um sussurro e eu me sentia bem comigo mesma. Costumava sentir fala de ar quando estava em lugares cheios de pessoas, não gostava de estar com elas. Me sentia bem quando estava só.
     - Se pretende ficar aqui a noite inteira, teria sido melhor pegar mais uma taça de vinho, não?
      A voz suave atrás de mim, me despertou de meus devaneios, fazendo com que eu me virasse para conhecer o seu dono. Mr. Sharman, irmão de Anastácia estava ali, parado junto à porta. Em suas mãos, segurava duas taças de vinho. Na penumbra, mal pude enxergar seus olhos, porém percebi os contornos de seus cabelos e de seu rosto. Sua pele estava pálida à luz da lua e seus cabelos castanho escuros, estavam tão negros quanto os meus naquela escuridão. Seus olhos, de um azul tão intenso antes, agora estavam cinzentos e inexpressivos, obscurecidos pelas sombras. Ele caminhou em minha direção e, quando me estendeu uma das taças, me dei conta de que a que eu segurava anteriormente já havia acabado. Não peguei a taça de sua mão, apenas permaneci o encarando de forma que esperava que ele percebesse meu desejo em ficar sozinha.
      Ele colocou as taças em outro banco de madeira e foi até o parapeito da varanda, admirando a vista. Respirou fundo o ar noturno, fazendo com que eu pudesse ver a fumaça de sua respiração. Em seguida, olhou para mim.
      - Está frio aqui. - disse mostrando-se verdadeiramente preocupado. Tirou seu casaco e, em um gesto ousado para duas pessoas que nem se conhecem, o colocou em volta de meus ombros. Senti seus dedos tocarem o meu braço por um instante e uma onda de choque me percorreu o corpo. Ele, aparentemente percebeu e se afastou rápido. Pegou uma das taças e deu um grande gole. - Eu gostaria de agradecer pelo que você fez hoje. Anastácia é uma garota teimosa e quando eu disse que não poderia ir até o vilarejo sozinha para comprar um chapéu, ela simplesmente pegou um de nossos cavalos e saiu. Ele não estava acostumado com ela e acabou estranhando o jeito que ela tentou conduzi-lo. É um bom animal, só ficou assustado. Se a senhorita não tivesse aparecido, este baile não passaria de um velório para a minha família.
     - Mr. Sharman, da próxima vez, cuide bem da sua irmã. Ela só tem 15 anos, vai agir impulsivamente ainda muitas vezes. - retruquei de forma arrogante. Ele não pareceu ter se importado com a arrogância em minha voz, mas sim, com o fato de eu já conhecer o seu nome.
      - Vejo que me conhece, senhorita. Mas ainda não tive o prazer de lhe ser apresentado. - disse sentando-se ao meu lado no banco de madeira. Procurei não encarar o seu rosto e me mantive olhando para a frente. Não me interessava se ele não me conhecia. Senti a minha respiração acelerar, como se aquela falta de ar estivesse voltando, porém, tentei controlá-la, o que não o impediu de escutar. Tudo o que eu queria era estar sozinha, não precisava de ninguém me atrapalhando.
      - Está nervosa, senhorita? Ou está passando mal? - Vi que seu tom de voz oscilava entre preocupação e deboche. Continuei em silêncio, tentando controlar a minha respiração.
      - Se precisar de ajuda, posso providenciar um médico imediatamente. - continuou em seu monólogo. - Ou será que está nervosa porque não é apropriado que estejamos sozinhos aqui? Perdoe-me senhorita se for isso, mas não intenciono nenhum mal. Só gostaria de agradecer-lhe a generosidade ao salvar a minha irmã.
     Sim, eu nem havia me dado conta de quão inapropriado era estarmos ali sozinhos, na penumbra. O que o meu pai iria pensar? Fiquei tão preocupada em desejar que ele se retirasse, que nem percebi o quão grave era aquilo.
      - Ou eu a deixo nervosa, senhorita? - disse isso quase sussurrando, ainda sentado, enquanto encarava meu rosto bem de perto. Ao ouvir esta provocação, virei a cabeça em sua direção, ficando apenas à alguns centímetros de seu rosto. Sentia uma raiva me subir pelo estômago.
      - Ainda não nasceu o homem que vai conseguir me deixar nervosa, Mr. Sharman. E, sim, é muito inapropriado estarmos os dois aqui sozinhos. Então, sinta-se à vontade para se retirar.
     - Em todo caso, continua sendo inapropriado para uma jovem permanecer nesta penumbra, ainda que sozinha. - retrucou, parecendo se divertir com a minha raiva. - Então, não me resta outra alternativa, que não seja lhe fazer companhia.
      Desviei o rosto da proximidade do dele. Era insolente, sim. Provavelmente, mais um desses rapazes cheios de si. Algo nele me incomodava profundamente, eu deveria naquele momento, ter aberto a porta, descido as escadas e retornado para a festa, mas me sentia fincada no chão como se fosse uma âncora.
      Ele esticou as pernas preguiçosamente, ainda sentado na cadeira. Tinha um perfume marcante, provavelmente comprado em Paris, era forte e só agora eu me dera conta de que incensara todo o lugar. O seu gesto me indicou que ele não iria sair dali, nem se eu agisse da maneira mais desagradável do mundo. Soltei uma respiração forte e dramática, para ele perceber o quanto eu estava com raiva e peguei a taça que estava no banco à minha frente. Agora eu não iria embora, aquele era o meu lugar e eu tinha encontrado primeiro. Se era para ficar ali, aturando uma pessoa desagradável, era melhor que fosse bebendo.
     Ele soltou uma risada, como se estivesse rindo da minha raiva e apreciando o fato de que eu havia me rendido à taça que me trouxera.
      - Porque me acha desagradável, senhorita? - perguntou como se lesse os meus pensamentos. - Poderíamos estar rindo, nos apresentando adequadamente ou simplesmente combinando uma dança.
      - O acho desagradável porque não respeita o fato de que quero ficar sozinha. Eu não danço senhor, e não gosto de dar risadas à toa.
      - A verdade é que acredito que a senhorita não deseja ficar sozinha. Apenas se acostumou a solidão. Não pode ser de hoje que é acostumada a fugir no meio da festa!
      - Ouça - tentei conversar de uma forma menos desagradável, na tentativa de fazê-lo compreender. - Essa nossa conversa não está contribuindo para nada, estamos os dois aqui, apenas perdendo o nosso tempo. Seria mais inteligente da sua parte, utilizar o seu tempo de forma mais proveitosa.
     - Ah, mas eu estou aproveitando muito. - sorriu, mostrando um sorriso perfeito. Imaginei que se ele sorrisse assim para as outras garotas do vilarejo, elas desmaiariam na mesma hora. - A senhorita é muito divertida, sabia?
      Divertida? Certamente ou ele estava maluco, ou era algum psicopata masoquista.
      Fiquei ainda com mais raiva por ele fazer pouco caso do que eu estava sentindo. Era realmente um idiota.
     - Só se você for algum tipo de masoquista. Ele se espantou ao ver o meu vocabulário, mas ao invés de me repreender, continuou sorrindo.
     Decidi calar a minha boca, talvez, se eu o ignorasse ele voltaria para a festa e me deixaria em paz.
      Ficamos em silêncio por mais alguns minutos, até que ele se levantou do banco, abriu a porta e saiu. Senti como se estivesse prendendo a respiração todo aquele tempo em que estivemos juntos e expirei o ar profundamente após a sua saída. Ele não me deixava nervosa, não mesmo. Apenas me deixava exasperada ao ponto de eu não conseguir controlar a minha respiração. Senti os músculos do meu corpo relaxarem uma vez que estava sozinha. Me levantei e fui até o parapeito da varanda, onde pude observar melhor o bosque. Reparei que ainda estava com seu casaco em meus ombros. Uma sensação de arrepio percorreu o meu corpo, mas não era o frio. Achava aquilo muito estranho e estava com raiva de mim mesma, por me sentir assim e sentia o perfume do casaco me deixar um tanto enjoada.
      Apenas alguns minutos depois, ele retornou segurando mais duas taças de vinho. Aproximouse de mim e estendeu uma com um olhar insistente. Murmurei um agradecimento a contragosto e aceitei a bebida. Claro que ele não tinha ido embora. Era tão orgulhoso como eu. Ficamos observando o bosque lá embaixo, a lua se movimentava rapidamente pelo céu. Eu quase estava me acostumando com a sua companhia.
      Algum tempo depois, ele cortou o silêncio. Falando de maneira mais séria agora
     - Anastácia deseja convidá-la para jantar conosco essa semana. - acenei afirmativamente com a cabeça. Ele continuou como se soubesse que eu e sua irmã já havíamos sido apresentadas. - Não aceitarei um não como resposta.
      Voltou novamente seus olhos para mim, desta vez, a lua mostrava um azul profundo em cada um deles. Evitei olhar para ele e o observei respirar calma e profundamente. Eu não pretendia aceitar o jantar, porém, já estava praticamente tudo confirmado através do comentário que Sophie havia feito uma hora atrás.
      - Tenho uma proposta para fazer. - ele pareceu solene em suas palavras. - Se a senhorita aceitar jantar conosco daqui a dois dias, posso retornar para o baile e deixá-la novamente consigo mesma. Se não aceitar, terei que ficar aqui a noite inteira tentando persuadi-la.
     Ponderei sua proposta. O jantar já estava confirmado, isso era certo. Mas eu já não tinha certeza se gostaria de continuar ali sozinha. A sua presença era perturbadora, isso é verdade, mas talvez eu estivesse me acostumando a ela. Não compreendi o porque de naquele momento eu preferir que ele tentasse me persuadir a noite inteira. Ao menos, continuaria ali, me atormentando. Mas eu sabia que não podia pensar desta maneira, ele tinha que ir e me deixar em paz. Eu não podia me deixar descontrolar como uma garota adolescente.
      -O que me diz, Miss. Saunders? - Agora seus olhos me encaravam profundamente, tentando ver se eu reagiria de alguma maneira estranha ao ouvi-lo pronunciar meu nome. No entanto, mantive a cabeça erguida, mesmo que meu estômago desse voltas - provavelmente por causa do cheiro enjoado de seu perfume. Comecei a me dar conta de que nada daquilo havia sido por acaso. Ele havia me seguido escada acima.
      -Eu prefiro peixe, batatas e um bom vinho. Pudim de chocolate amargo para a sobremesa e um café preto para encerrar. - foi a minha resposta.
      Ele tentou disfarçar o espanto ao perceber que nem precisou de muito tempo para me convencer. Uma mistura de desapontamento e diversão perpassou o seu rosto que brilhava à luz da lua. Com um meio sorriso, ele colocou a taça que segurava em cima de um dos bancos de madeira, fez uma reverência e saiu pela porta. Fiquei novamente sozinha, desta vez com duas taças de vinho e o perfume de seu casaco.

      No final da noite, desci as escadas e encontrei Sophie com as bochechas coradas de tanto dançar. Ela e Elizabeth já estavam ao lado de nosso pai, aparentemente me procurando para irmos embora.
      - Estivemos procurando você, Joana! Onde se enfiou durante o baile? - Elizabeth perguntou de forma repreendedora.
      Dei de ombros e caminhamos porta afora. Olhei para os lados, mas nem sinal de Mr. Sharman ou de sua irmã. Aparentemente, já era tarde. Sophie caminhava ao meu lado, enquanto meu pai segurava o braço de Elizabeth um pouco mais atrás. Ela olhou interessada para o casaco que agora eu segurava em meus braços.
     - Não me faça perguntas. - Sussurrei meio mal humorada, meio nervosa.
     Ela deu um sorriso conspiratório, mas nada comentou sobre o casaco.
     Entramos na carruagem e seguimos viagem até nossa casa. Nem meu pai, nem Elizabeth pareceram notar que eu segurava um casaco masculino em meu colo. Minha irmã mais velha parecia estar quase adormecida e nosso pai observava a janela pensativo. Sophie interrompeu seus devaneios: 
      - Mr. Sharman e sua irmã nos convidaram para jantar daqui a dois dias em Woodcottage. Eles são pessoas de muito respeito, ouvi dizer. Se mudaram a pouco tempo e ainda não conhecem muita gente. Seria muito gentil de nossa parte aceitar o encontro.
      Mr. Saunders afirmou com um aceno de cabeça, parecendo um tanto perturbado por ter seus pensamentos interrompidos.
     - Ouvi dizer que Mr. Sharman é um bom negociante de vinho. Tem algumas propriedades no norte da França. - disse Mr. Saunders, mais para si mesmo do que para Sophie. - Pena que teve que interromper seus negócios para assumir a propriedade do tio. Ainda é muito jovem o rapaz, não deve ter mais de 30 anos. Uns 27, talvez. - disse isso olhando para mim.
      Sophie parecia prestar atenção em cada palavra, era sempre muito curiosa sobre os moradores do vilarejo. Eu continuei olhando pela janela, fingindo que não estava escutando. Se meu pai estava planejando um casamento utópico entre eu e Mr. Sharman, deveria desistir logo neste primeiro momento. Não me importava se ele era rico ou jovem, eu não queria me casar com ninguém e pronto. Ouvi meu pai suspirar e balançar a cabeça quando percebeu que eu não esbocei nenhuma reação diante de sua informação. Acredito que ele deve ter se lembrado de que nenhum esforço que fizera valeu à pena e provavelmente não valeria se esforçar outra vez.
      Chegamos em casa e logo fui para o meu quarto, coloquei o casaco de Mr. Sharman em cima da minha penteadeira e me aprontei para dormir. Não foi fácil conseguir dormir naquela noite. O perfume do casaco se espalhava pelo quarto ou o meu nariz estava recordando seu aroma. Me lembrei de tudo o que acontecera naquele dia e acabei por me sentir fraca demais, não poderia deixar que isso se repetisse. O casaco, o perfume, ficar à sós com um estranho. Pensando nisso, adormeci.

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