#01 - Bedfordshire: mais do mesmo!

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    Acordei naquela manhã me sentindo como sempre, entediada e sem vontade de sair do meu quarto. Ter que olhar para os rostos de todas aquelas pessoas e tentar suportar mais um dia. E esse não era um dia qualquer, era o dia do baile onde minha irmã mais nova, Sophie iria debutar. E como ela estava ansiosa por esta data! Usar vestidos de princesa, se preocupar com fitas e sapatos, sempre questionando se alguém a tiraria para dançar. Era tudo com o que Sophie se preocupava nos últimos dias! Eu não tinha paciência para isso! Não mesmo! 
      Lembro de quando debutei aos 15 anos, há quatro primaveras. Se a minha mãe estivesse viva, teria ficado imensamente frustrada. Nunca achei que as exibições sociais tinham real importância, uma vez que cada um já possui ciência sobre o lugar ao qual pertence. Nossa família, por exemplo, descende do príncipe de Leeds, 79º lugar na fila para o trono. Ele já falecera há dezenas de anos, mas o prestígio de nossa família continuou, fazendo com que frequentássemos os bailes mais aristocráticos da sociedade Londrina. Eu, assim como minhas irmãs, tinha consciência disso, é claro. Portanto, em meu baile de apresentação, esperava-se que eu fizesse parte de todo aquele teatro. As pessoas queriam que eu dançasse com todos os rapazes do salão e desferisse sorrisos amplos e insignificantes para os demais. Não aconteceu nem uma coisa e nem outra. Nunca gostei da maioria das pessoas do vilarejo, que ficava há 30km de Londres. Sempre achei que essas pessoas apenas se aproximavam de nossa família, por causa de nossos antepassados e de nossa importância, porém não se reconheciam como inferiores. Esse era o meu pensamento, elas estavam abaixo de nós, então, deveriam ser tratadas de acordo com a sua posição.
      Então, em meu baile, continuei ignorando tudo e todos, sem me importar com os olhares de reprovação e as bocas crispadas de raiva das senhoras da elite. Como meu pai sempre me ensinara, nós tínhamos maior prestígio do que todas aquelas pessoas. Além da nossa descendência principesca, Mr. Saunders, meu pai, possuía grande parte das terras da região. Era um rico comerciante de cavalos, muito respeitado - e necessitado - por todos ali. Mas tinha um ar meio moribundo desde que a minha mãe se foi. Eu tinha 12 anos quando ela foi acometida por uma grave enfermidade, os médicos lhe deram alguns meses de vida, porém, estes acabaram por se resumir a não mais do que uma semana. Na altura, Sophie não conseguiu compreender o que estava acontecendo, porém a minha irmã mais velha, Elizabeth já estava com 14 anos e observou tudo mais de perto, assim como eu.
       Esperava-se que ,depois da morte de nossa mãe, acabássemos por nos aproximar ainda mais, porém não foi o que aconteceu. Elizabeth permaneceu distante de mim, como se compartilhasse do pensamento das pessoas do vilarejo. Eu sabia o que eles pensavam de mim, amargurada, mesquinha, arrogante, rude. Já tinha ouvido um ou outro criado mencionar-me como "A megera das Saunders", provavelmente, um apelido dado à mim, carinhosamente, pelos moradores locais. Mas nunca me importei com nada disso. Se ela não deseja agir como uma irmã para comigo, eu tampouco o desejo. Nosso relacionamento, sempre se resumiu à uma falsa cortesia, onde  uma mantinha  distância considerável da outra. 
      Com Sophie tudo foi diferente. Ao perder a mãe muito cedo, precisou apegar-se ainda mais à família. Mesmo tendo crescido acompanhada de nossa tutora e atual governanta, Mrs. Flynch, ela insistia que estivéssemos sempre juntos no jantar. Não admitia que eu ficasse em meu quarto ou que o nosso pai tivesse que trabalhar até mais tarde. Ela tinha algo de diferente, até eu conseguia perceber. Mesmo depois de eu ter tentado afastá-la da minha vida inúmeras vezes, Sophie sempre estava disposta à tentar novamente. Não importava o quão rude eu fosse para com ela, sempre me rebatia com seus enormes olhos azuis e seu sorriso contagiante. Dessa forma, não pude recusar em ir ao seu baile, pois percebi que não suportava vê-la triste.
     Sentei-me cama, finalmente e contemplei as cortinas fechadas em meu quarto. Não gostava de iluminá-lo, me sentia melhor na escuridão, como se precisasse estar trancafiada para me sentir bem. Gostava de estar sozinha, pois dessa forma, não haviam olhares de reprovação, nem da aristocracia do vilarejo, nem dos meus próprios criados. Sim, eles também me odiavam, apenas porque eu os tratava de acordo com a sua posição social. Eu não compreendia como podia eu estar errada! 
      Como se uma rajada de vento forte tivesse transpassado a porta, Sophie entrou em meu quarto naquela manhã. Seus olhos brilhavam, como sempre, e ela se encaminhou para uma das enormes janelas do aposento, abrindo as cortinas para deixar o sol entrar. A tonalidade pálida de fim de primavera adentrou o quarto, contrastando com o aspecto sombrio ao qual ele estivera submerso momentos antes.
      - Joana, gostaria que me acompanhasse até a vila, preciso de algumas fitas para hoje à noite. disse sendo tão direta como sempre costumava ser. 
      Revirei os olhos e deixei-me cair de volta na cama com o rosto virado para cima. Não estava com a mínima vontade de sair daquele quarto, muito menos de ir às compras, uma atividade que eu achava muito entediante. Ela sentou-se e piscou para mim algumas vezes, aposto que tentava me hipnotizar com os seus olhos enormes. Não tinha como não se encantar com Sophie, às vezes eu gostaria de observar o mundo através de suas lentes cor de rosa. Ela pegou a minha mão gentilmente.
      - Credo, você está muito pálida. Certamente precisa tomar um pouco de sol e respirar lá fora. Quase não sai deste quarto! Vou pedir para que Maggie ilumine este lugar para que lhe traga alguma cor. 
      Sorri ironicamente, imaginado Maggie, nossa criada mais jovem trazendo lamparinas que mal seriam acesas por mim. Ela só teria o trabalho de instalá-las.
      - Sei o que está pensando, mas irei garantir que fiquem acesas. - ela sorriu de forma travessa. agora, levante-se, preciso de sua companhia. Vou chamar Mrs. Price para ajudá-la a se vestir.
     Sem ao menos esperar uma resposta minha, Sophie saiu do quarto em busca da velha camareira. Como eu disse, não era fácil contrariar Sophie diante de toda a sua gentileza. A camareira entrou no quarto de cara fechada e mal olhando para mim. Abriu o closet e se enfiou lá dentro em busca de alguma roupa que pudesse me agradar. Não era tão difícil, pois eu não costumava variar muito em meus figurinos. Gostava de cores escuras, preto, vermelho, verde escuro, talvez quisesse alimentar a fantasia daqueles do vilarejo que diziam ter certeza de que eu era uma bruxa. Se a inquisição ainda estivesse acontecendo, certamente alguém já teria tentado me colocar na fogueira.
      Mrs. Price encontrou um vestido preto adornado em fios dourados e o colocou em cima da minha cama. Em seguida, fez sinal para que eu me levantasse e ela pudesse me vestir. Com uma expressão tão fechada quanto a dela, desci da cama e me posicionei de costas para que ela pudesse despir a minha camisola. Sem dizer uma palavra, ela me deixou parecida com uma princesa gótica. Vestiu-me o vestido e posicionou os cachos do meu cabelo de forma que ficassem mais discretos, pois eu tinha longos fios negros e cacheados e me recusava a prendêlos em coque, como era de se esperar que uma moça delicada fizesse. Sem meus cachos escorrendo pelas costas, eu me sentia completamente nua. Isso auxiliava às más línguas, que reprovavam o fato de uma dama de tão alta classe social, se portar como uma cigana qualquer.
     Ignorei que Mrs. Price ainda estava no quarto, pois, segundo o meu pensamento, na época, uma criada merecia ser tratada como uma simples funcionária. Reconheço que não era nada justo da minha parte e demorei para compreender que não devemos destratar outras pessoas, que no fundo, somos mais do que títulos e classes sociais. Mas, na época, eu não pensava desse jeito. Ignorei-a e, sem sequer dizer obrigada, saí do quarto para encontrar Sophie que já me esperava junto à porta principal de nossa casa.
      Clarence Hill era uma bela mansão georgiana, com inúmeros quartos e aposentos e um salão para bailes, que não era utilizado desde a morte de nossa mãe. Os móveis, embora fossem do século XV, herdados ao longo de muitas gerações em nossa família, estavam impecáveis, como se fossem novos. Do lado de fora, havia um belo jardim, grande o suficiente para entreter qualquer um que precisasse tomar ar fresco ou fazer um piquenique numa tarde de verão. Costumávamos nos reunir em família para cavalgar até o riacho ali perto quando éramos crianças, mas esses tempos mudaram. Já não fazemos nada disso.
       Sophie e Elizabeth tem muitas amigas no vilarejo e estão sempre cercadas de pessoas. Parece que todos as adoram. Eu, simplesmente permaneço em casa na maior parte do tempo. Às vezes gosto de tocar piano ou passo horas na biblioteca do nosso pai. Também, costumo sair para cavalgar sozinha. Há três anos, Sophie sugeriu que eu tentasse dar uma volta pelos jardins ou adentrasse o bosque, em uma época onde eu não conseguia sair de casa, pois nada me parecia interessante lá fora. Ela convenceu o nosso pai a me dar um cavalo de presente. Odin, foi o nome que escolhemos, por causa do seu ar de superioridade. Sophie disse que ele combinava perfeitamente comigo, também tinha pelos negros e era alto, assim como eu. Logo nos tornamos amigos, eu e Odin.
      Sim, nosso pai teve apenas três filhas, o que significava que ele não possuía nenhum herdeiro para toda aquela propriedade. Por mais que outros familiares houvessem insistido para que ele se casasse novamente, ele sempre afirmava que não poderia se casar com outra pessoa, porque ainda amava a nossa mãe. Então, acabou por nunca ter um filho que pudesse tomar conta de seus negócios quando falecesse. Eu o ajudava sempre que podia com assuntos relativos à contabilidade da venda de seus cavalos. Ele confiava em mim, embora ninguém soubesse que eu era a responsável por ajudá-lo. Afinal, o que saberia uma mulher sobre cálculos e estatísticas, não é mesmo? Meu pai e eu mantínhamos isso em segredo e, além do mais, era uma maneira de eu me sentir útil naquele lugar. No mais, não tínhamos um relacionamento muito próximo, eu e ele. Depois que minha mãe faleceu, ele se distanciou de todas as filhas, tentando estar longe de casa o máximo de tempo possível. E quando não estava viajando para comercializar seus cavalos, mantinha-se sempre cuidando de seus afazeres, apenas aparecendo na hora do jantar para satisfazer as exigências de Sophie. Tínhamos um primo, Mr. Elliot, filho da irmã de meu pai, este herdaria Clarence Hill, tendo em vista que era o homem da família mais próximo. Ele e meu pai mantinham um bom relacionamento, embora eu nunca o tivesse conhecido pessoalmente. Ele era um importante advogado e além de possuir muitas outras terras, ainda havia conquistado o título de Sir, devido aos seus favores prestados à coroa.
      Diante disso tudo, nosso pai fez o papel de mãe, tentando nos casar com homens de boa família e ricos o suficiente para manter o nosso padrão de vida. Elizabeth havia ficado noiva há alguns dias de Edmund Collins e estava eufórica com os preparativos de seu casamento, que não levaria mais de um mês para acontecer, tendo em vista que ela já estava com idade avançada para o casamento. O noivo em questão, pertencia à família do duque de Brighton e era dono de metade de Bedfordshire. Só esse detalhe fazia com que as moças do vilarejo até as de Londres a invejassem. Eu não acreditava que ela o amasse, mas isso não parecia importar nem para ela, nem para as outras pessoas. Apenas para Sophie.
       Minha irmã mais nova costumava ler novelas e poemas e sonhava em casar-se com alguém que amasse realmente, mesmo sabendo que isso seria praticamente impossível. Eu tentava não contrariar seu coração jovem, mas sabia que ela iria se machucar profundamente quando descobrisse a verdade. O amor não existe. Pensava eu. O que existe são interesses e troca de favores. Mesmo quando alguém julga estar apaixonado, pode observar como as coisas mudam com o passar dos meses. Cansei de observar casais, onde no início tudo era perfeito e depois, a esposa aparece com uma enorme roncha no pulso dizendo que enroscou o braço na carruagem.     
      No meu caso, meu pai havia desistido. Tentara por diversas vezes arranjar-me um noivo, mas eu sempre acabava por espantar os pretendentes. Não que isso fosse a minha pretensão, mas quando eles viam que eu não era tão delicada e obediente como meu pai os havia informado, caiam fora rapidinho. Nos poucos bailes aos quais eu era obrigada a frequentar, ninguém me tirava mais para dançar, depois de eu dar o fora em metade dos homens do vilarejo. Eles também haviam desistido e às vezes faziam chacotas com o fato de que eu não iria me casar com ninguém. Isso não me deixava frustrada, eu até gostava de ter magoado seus egos à ponto de precisarem esconder seu desapontamento através de brincadeiras hostis. Isso só comprovava a minha teoria sobre o amor. Desconfio que meu pai pediu para que o nosso primo, Mr. Elliot, continuasse me mantendo na casa e cuidando de todas as minhas necessidades, quando a propriedade passasse a ser deste. Depois de o acordo ser firmado, meu pai desistiu de me empurrar para cima de qualquer pretendente idiota.

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