#15 - Próximos, porém distantes

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       Na manhã seguinte, acordei com uma boa aparência, embora tenha chorado até pegar no sono. Não havia olheiras embaixo de meus olhos nem inchaço em minhas pálpebras. Se existe uma Divindade então, ao menos desta vez, havia tido compaixão de mim. Me poupou de ter que me esconder no quarto até os sinais de tristeza deixarem meu rosto. Porém, os sinais de tristeza ainda estavam pulsando em meu coração. 
       Acordei pouco depois que o sol saiu e fui até o jardim para respirar um pouco do ar matutino. Os criados mal pareceram me notar e minha família ainda dormia. Observei a grama diante do bosque que emoldurava o cenário como em um quadro de tempos remotos. Clarence Hill estava situada diante de um pequeno paraíso, podia-se ver no horizonte, alguns quilômetros de terra coberta de grama verde e iluminada pelo sol de verão. Respirar o ar puro que vinha do bosque me fez sentir viva novamente. Pareceu reanimar a minha alma, e caminhei durante um bom tempo tentando não pensar em nada que havia me acontecido no último ano. Lembrei de minha infância, de Sophie, de nossa mãe. Pensei nos negócios de meu pai e em nosso primo que herdaria a propriedade. Sentei-me na grama um instante para recuperar o fôlego da caminhada e sorri ao lembrar a primeira vez em que cavalguei por aquele lugar com Odin. Ele ainda era bem pequeno, mas logo consegui ganhar a sua confiança. 
       No meio da manhã, retornei para casa. Estava faminta. 
       Sophie e meu pai se encaminhavam para a sala de jantar para tomar o café da manhã e me juntei à ambos. Foi um momento agradável. Papai conversava com Sophie sobre a criança de Elizabeth, enquanto minha irmã tentava convencer o nosso pai à visitar a filha mais velha. Ele teimava em dizer que ela morava longe demais e que levaria quase um dia de carruagem para chegar lá, mas logo se deixou convencer por Sophie de que a família deveria estar lá, para o nascimento do bebê.
       Não demorou muito e Sophie começou a organizar a viagem para visitar Elizabeth. Iriam partir em setembro, bem próximo ao nascimento da criança e apenas retornariam após esta vir ao mundo. Elizabeth pareceu gostar da ideia de receber a família em sua casa, mas não reclamou ao ser informada por Sophie que eu não iria acompanhá-los. Acho que até achou melhor assim. Nunca fomos muito próximas e eu não estaria muito à vontade em sua casa. Minha irmã mais nova tentou me convencer da forma que pôde, mas nada adiantou. Eu ficaria cuidando de Clarence Hill até ela e meu pai retornarem. 
       Devido à insistência de Sophie em estar presente durante o nascimento do sobrinho, Mr. Evans aceitou adiar o casamento para outubro, quando Sophie retornasse de sua viagem. Ele não pareceu muito feliz com a mudança, mas acabou cedendo aos caprichos de minha irmã que, como já falei antes, consegue persuadir qualquer um com os seus olhos azuis. Ainda mais aquele que mais a aprecia! 
       Logo, um mês se passou desde o casamento de Edward. Anastácia vinha nos visitar regularmente, sempre frisando o quanto Jane era mimada e como a cunhada sempre conseguia tudo o que queria. Culpava-a por ser bonita.
       - Com aquele rostinho belo, ninguém consegue negar-lhe coisa alguma. - disse fazendo uma careta, enquanto bordava em um travesseiro ao lado de Sophie em nossa sala de estar. 
       Eu não sabia se ela estava se comportando daquele jeito apenas para agradar as irmãs Saunders, mas estava conseguindo se dar bem com Sophie. Minha irmã não gostara de Jane desde o primeiro instante e não escondia tais detalhes de sua amiga. 
       - Agora, meu irmão está querendo me colocar em um internato. Porque Jane disse que os melhores anos de sua vida foram em Glastonbury, quando estudava em um convento católico. - disse, enquanto Sophie arregalava os olhos. - Não sei como posso fazer para escapar disso. - Anastácia soltou um suspiro. 
       - Acho que Joana pode ajudar, não? - Sophie falou com um tom urgente na voz, enquanto eu erguia os olhos do livro que fingia ler enquanto escutava a conversa das duas. 
      - Não será possível. Não conheço mais Mr. Sharman, como costumava conhecer. Além do mais, não é bem visto o homem que mantém amizades com outras mulheres, exceto a própria esposa. Não posso aparecer de repente e pedir que ele seja sensato. - eu disse sem esconder que havia ouvido toda a conversa. - Me desculpe. - falei com sinceridade para Anastácia. 
       Ambas acenaram afirmativamente, sabendo o que eu queria dizer. Não era mais amiga de Edward, não havia nada que eu pudesse fazer. Observei naquele momento que eu não era a única que havia percebido o fim. Talvez o beijo que ele me dera, foi a sua maneira de dizer adeus. Apesar de sentir um aperto no peito e um nó na garganta, nenhuma lágrima queimou meus olhos desta vez. Estava tudo acabado, e as minhas lágrimas haviam acabado também. 
       Mr. Norris ainda me ajudava a passar o tempo. Sempre com seu jeito astuto e, um tanto, malicioso, me fazia esquecer, por um momento, que eu estava sozinha outra vez. Cavalgávamos pelo bosque, íamos até a aldeia juntos e passeávamos pelo jardim, sempre sob os olhares curiosos que, certamente, estavam tentando compreender como um rapaz tão bonito e elegante estava sempre na companhia de um demônio. Madonna Giordana sempre nos recebia muito bem. Hugh lhe lançava elogios que aguçavam a sua vaidade e a Italiana costumava nos servir bolos e uma xícara de chá, sempre que passávamos por lá. As moças do vilarejo suspiravam pelo cavalheiro, que lhes atirava sorrisos gentis, enquanto segurava meu braço, como se eu fosse o seu troféu. Aquilo me trazia uma sensação de vingança, gostava de saber que era eu quem estava ali, de braços dados, não elas.
      Mas era apenas isso. Sensação de vingança e superioridade, enquanto eu o usava para matar o meu tempo solitário. 
       Certa vez, estávamos na sala de música nas primeiras horas da noite. Meu pai o havia convidado para ficar e jantar conosco, porém, após o jantar, se retirou para seus aposentos, nos deixando à sós na sala, eu, Hugh, Sophie e Nick. Meu futuro cunhado, então, nos lembrou que uma ópera Austríaca seria exibida naquela noite, no teatro em Bedfordshire. Logo, ficamos animadas para ir ao evento e não demorou muito para que nos aprontássemos e entrássemos na carruagem, rumo ao teatro. Sophie estava linda em um vestido rosa claro, enquanto eu usava um vestido verde esmeralda. 
       O teatro era menor do que os de Londres, mas tão bonito e aconchegante quanto. Logo na entrada, observei a aristocracia inglesa arrebitando os seus narizes, descendo de suas carruagens caríssimas e com suas jóias pesadas. Aquilo me incomodou, mas logo me lembrei de que era um deles, só que não conseguia mais arrebitar o nariz daquele jeito. Eu olhava para todos os lados, enquanto segurava o braço de Mr. Norris, que sorria e parecia conhecer cada pessoa que passava por nós. 
       Quando entramos no teatro as luzes já estavam apagadas. Por pouco, não chegamos atrasados! Não tivemos tempo para reservar uma cabine e assistir ao espetáculo com maior conforto, mas conseguimos bons lugares em uma fileira no alto de onde se podia observar todo o palco, imersos na penumbra. Nos sentamos, de modo que Sophie e Hugh ficaram no espaço entre eu e Nick. 
       A ópera ainda não iniciara e muita gente ainda procurava por lugares para se acomodar. Nossa fileira, que estava vazia, logo se encheu com sombras que se aproximavam e se sentavam, uma a uma, completando os lugares vazios. 
       Meu coração deu um salto quando observei uma sombra alta caminhando em minha direção. Evitei olhar, mas pude perceber que se sentou na cadeira ao meu lado, sem dizer uma só palavra. Não era outra pessoa, com certeza. Não havia outra pessoa que usava este mesmo perfume. Prendi a respiração, enquanto sentia o seu corpo ao meu lado, tão próximo novamente. Será que ele havia me reconhecido? Rezei para que não tivesse. 
       As luzes ficaram ainda mais escuras quando o espetáculo teve início. Eu não conseguia prestar atenção em uma só canção. Meu pensamento estava confuso e, o tempo todo, me vinham lembranças daquela noite sombria na penumbra da sala de música, onde eu bebera uma taça de vinho em um só gole e onde a língua de Edward encontrara a minha. Senti minhas bochechas corarem diante destes pensamentos. Ele conseguia se lembrar? 
       Vez ou outra, Hugh fazia algum comentário pertinente à peça e eu acenava ou murmurava alguma coisa ininteligível. Ele segurava a minha mão com intimidade, enquanto aproximava seus lábios de meu ouvido sempre que falava. Minha respiração ofegava, mas não era por causa disso. Apenas estar à centímetros de Edward Sharman, deixava meu corpo descontrolado. Eu não era assim. Tudo ficou pior depois daquele beijo. 
       No intervalo da ópera as luzes acenderam. Hugh não se deu ao trabalho de soltar a minha mão e a manteve entrelaçada à sua, como se fossemos comprometidos. Evitei olhar para o lado até que o encontro se tornou inevitável. 
       - Olá, cunhado! - disse Hugh, enquanto se levantava da cadeira para cumprimentar Edward.
      Edward fez uma reverência contida para Mr. Norris, com pouca animação, os olhos pousados em nossas mãos entrelaçadas. Logo, Sophie e Nick se juntaram à nós. Ao lado de Edward, Anastácia parecia animada, mas não havia sinal de Jane.
     - Onde está a minha irmã? - Perguntou Hugh com olhar desaprovador ao perceber que o cunhado havia ido à ópera sem a esposa. 
       Anastácia respondeu: 
       - Ela estava cansada para vir. Não se importou que Edward me fizesse companhia, pois sabe muito bem o quanto aprecio as artes. - dizendo isso, abraçou Sophie e caminhamos para o lado de fora, para que pudéssemos tomar um pouco de ar naquela noite quente. Os rapazes nos seguiram em silêncio e não parecia haver muito companheirismo entre ambos. 
       Lá fora, estava cheio de esnobes da alta sociedade. Hugh, Sophie e Anastácia sorriam sempre que alguém passava. Nick permanecia passivo ao lado de sua noiva e Edward mostrava seriedade em seu olhar. Eu apenas me perguntava em silêncio onde estava o meu amigo sorridente e gentil. Será que o veria sorrir novamente? Não um sorriso de conveniência, mas um sorriso verdadeiro, daqueles que faziam meu coração despedaçar.
      Por um instante os olhos azuis de Edward cruzaram com os meus. Mesmo que eu tentasse não encará-lo, algo insistia em virar a minha cabeça em sua direção. Nunca estivemos tão perto e tão longe ao mesmo tempo. Seu olhar queria me dizer algo, mas não compreendi, enquanto meu olhar tentava, à todo o momento lhe dizer, "não se aproxime". 
       Retornamos alguns minutos depois para acompanhar o restante do espetáculo. Desta vez, Hugh sentou-se no lugar onde eu estava, ao lado de Edward, me deixando entre ele e Sophie. Me perguntei se aquilo havia sido um movimento calculado. Porque ele e Edward aparentemente se odiavam? 
       Na carruagem, enquanto voltávamos para casa, eu não conseguia prestar atenção na conversa animada entre Sophie, Mr. Evans e Mr. Norris. Só conseguia lembrar de como Edward me olhou com cara de preocupação quando a ópera terminou, mas não conseguia compreender. Será que ele estava preocupado que eu dissesse à Hugh sobre o que acontecera no dia de seu casamento? Sobre suas palavras de desculpas e como derrubou a flor de seu inimigo que estampava meu vestido? 

Tarde demaisOnde histórias criam vida. Descubra agora