#04 - O jantar

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      Os dois dias que se seguiram antes do jantar não foram lá tão movimentados. Passei mais tempo na biblioteca do que estava acostumada. Sophie me fazia companhia de vez em quando, enquanto tentava ler um livro qualquer. Logo acabava recordando a noite de seu baile e como Mr. Evans dançava maravilhosamente. Ela acreditava que estava apaixonada, enquanto eu revirava os olhos diante de sua declaração. Eu achava tudo aquilo muito idiota.
     Na noite do jantar pensei em inventar qualquer desculpa para não comparecer. Poderia fingir que estava com cólicas ou indisposição e era exatamente isso que meus pensamentos me diziam que deveria ser feito. Mas ao mesmo tempo em que pensava nesta possibilidade, algo dentro de mim desejava profundamente participar daquele momento. Comparecer à uma reunião social tão insignificante, entregar o casaco de Mr. Sharman e aceitar os agradecimentos pelo ocorrido dias atrás. Seriam apenas algumas horas e logo não teríamos mais que manter contato algum. E Sophie me garantiu que não haveria mais ninguém, além dos Sharman e de nossa família.
      Me aprontei rapidamente sem a ajuda de criada alguma. Coloquei o casaco de Mr. Sharman dentro de uma bolsinha de pano para evitar perguntas vindas de meu pai. Afinal, era um casaco masculino que estivera comigo nos últimos dias. Como ele havia parado ali? Não seria fácil explicar. Saímos de casa relativamente cedo para o jantar. Elizabeth não parecia entusiasmada, embora compreendesse que era seu dever comparecer junto a família em um jantar de tal importância. Sophie sorria e parecia muito à vontade durante todo o trajeto, porém se mantinha silenciosa. Fiquei me perguntando qual seria o motivo de sua alegria, mas não pude captar o que ela estava pensando através de seus olhos.
      Descemos da carruagem e fomos recebidos pelo mordomo. Um gentil senhor, magro e alto que nos levou para a sala de estar onde Mr. e Miss Sharman nos esperavam. Era um local muito bonito e aconchegante, um tapete vermelho, provavelmente feito de lã se estendia sob nossos pés. A lareira estava acesa, embora o inverno tivesse acabado há cerca de dois meses e havia uma mesa há um canto da sala, provavelmente para jogos de cartas ou xadrez. Sentado em um dos sofás dispostos no aposento, olhando em nossa direção, estava Mr. Evans, que parecia muito à vontade no local. Ele deu um sorriso meio nervoso para Sophie e logo pude perceber o porque ela sorrira tanto durante o trajeto.
      - Mr. Saunders, fico feliz em recebê-lo hoje! - Mr. Sharman se aproximou. - Este jantar é para agradecer sua filha, Miss. Saunders, de ter salvado a vida de minha irmã. - disse isso me dirigindo um olhar novamente cheio de gratidão.
     - Miss. Saunders é uma mulher esperta, Mr. Sharman. - falou meu pai, me fazendo corar com o elogio que eu sabia ser pura bajulação para uma última tentativa de me arranjar um casamento. - Sabe cantar, tocar, fazer contas e é uma amante de leitura. Tem um bom coração, mesmo que seja difícil de observar. - Senti o rubor se acentuar em minhas faces, junto com uma raiva que crescia no peito. Parecia que meu pai estava fazendo a propaganda de um produto a ser comprado.
      - Tenho certeza de que ela tem um coração de ouro, Mr. Saunders. Só alguém com grande nobreza arriscaria a própria vida para salvar alguém que não conhece. - Mr. Sharman parecia estar falando aquilo diretamente para mim, uma vez que ainda olhava em meus olhos.
      Meu estômago se contraiu. Era só o que faltava, receber elogios de um desconhecido! No fim desta noite, certamente ele não manteria essa impressão sobre a minha pessoa. Anastácia estava ao seu lado e acenava afirmativamente com um sorriso. Eu, entretanto, permaneci imóvel. Nunca fui o tipo de pessoa que se rende fácil a elogios vagos.
      Mr .Evans se aproximou e cumprimentou a minha família, fazendo uma reverência mais demorada para Sophie. Olhando-o de perto, pude perceber como havia crescido. Em outros tempos, Nick Evans era considerado um garoto esguio, sem traços rústicos, nada chamativo ou atraente, porém agora possuía boa aparência. Jovem ainda, no entanto ganhara mais expressão no rosto e em seus olhos azuis. Ainda era meio desengonçado, talvez, como efeito de sua enorme altura e de seus cabelos quase louros, rebeldes e despenteados. Vestia-se de modo conservador, o que o fazia parecer ser menos magro do que era.
      Não precisamos de muita cerimônia para que o jantar fosse servido. Mr. Sharman sentara-se ao canto da mesa, tendo ao seu lado direito sua irmã e ao outro lado o meu pai. Eu e Sophie sentamos lado a lado, de modo que ela ficou em frente à Mr. Evans, com Elizabeth em frente à mim. A minha irmã e o seu pretendente trocavam olhares a cada minuto, não consigo entender como meu pai não percebeu. Elizabeth observava tudo com ar de reprovação, tentando chutar as pernas de Sophie por baixo da mesa. Anastácia parecia se divertir com aquilo tudo e eu não duvidava que ela havia persuadido o irmão à convidar o cavalheiro, tão amiga de Sophie havia ficado nos últimos dias. Ambas se encontraram nas duas tardes que se seguiram ao baile, sempre tendo muitos assuntos em comum e com sorrisos contagiantes. Meu pai conversava com Mr. Sharman sobre negócios e afazeres e eu mantinha a atenção na minha sopa, servida como entrada. Vez ou outra, eu sentia olhares vindos do canto da mesa em minha direção, mas mantive o meu foco em ser o mais desagradável possível. Se meu pai acreditava que poderia me "vender" à Mr. Sharman, eu não iria permitir que isso acontecesse.
      Ao fim da sopa de entrada, os criados serviram peixe e batatas. Não pude resistir em olhar para Mr. Sharman, que sorriu sem mostrar os dentes quando percebeu a minha cara de espanto. Uma expressão divertida brincado em sua face. O jantar transcorreu tranquilo, seguido de um pudim de chocolate amargo e um bom café. Tudo estava delicioso, servido com um bom vinho, provavelmente da vinícola de Mr. Sharman ao norte da França.
      O fato de ele ter mantido o cardápio de nosso acordo, me deixou tão alerta quanto seus olhares supostamente divertidos. Ouvir meu pai tentando me vender para um homem desconhecido, me fez perceber o perigo de estar naquela situação. Caso Mr. Sharman acreditasse nas palavras de meu pai e passasse a insistir em se casar comigo, seria um tanto desgastante para mim ter que lidar com aquilo tudo. Ele e sua irmã pareciam ser boas pessoas, gentis e corteses. Agradeciam aos empregados sempre que estes lhes serviam e buscavam deixar os convidados o mais à vontade possível. Havia ainda a recente e crescente amizade entre Sophie e Anastácia, eu as considerava pessoas adequadas uma à outra. Não queria atrapalhar, pois sempre observei o quanto Sophie precisava de bons amigos.
      - Algo a perturba, senhorita? - Mr. Sharman interrompeu meus pensamentos uma hora mais tarde, quando estávamos todos descansando na sala de estar. Sophie e Anastácia conspiravam sentadas no sofá próximo à lareira, enquanto meu pai e Mr. Evans discutiam acaloradamente algum assunto sobre leis e comércio. - Por um instante me pareceu que a senhorita estava fazendo caretas enquanto pensava em algo muito desagradável.
      Eu estava de pé, olhando através de uma das janelas e não me dei ao trabalho de encará-lo.
      - Preciso ser clara de uma vez por todas. - ele silenciou e aguardou que eu continuasse. - Meu pai está tentando fazer com que o senhor se case comigo. Desde já, preciso que entenda que isso não será possível nunca. De forma alguma me casarei com o senhor, então, caso tenha considerado essa hipótese, espero que reconsidere e ignore as coisas que o meu pai tem falado sobre mim. Não quero ter problemas com mais um pretendente, principalmente quando sua irmã está se tornando uma grande amiga para a minha. Entendeu?
      Ele falou em um tom de sorriso que me fez sentir um arrepio:
     - Isso nunca me passou pela cabeça, Miss. Saunders. As coisas que o seu pai diz sobre você são verdadeiras, eu acredito. Você tem um bom coração, disso eu sei. E também sei lidar com pais querendo casar as suas filhas. O seu não é o primeiro, nem será o último a me aparecer.
      Se aproximou, de forma que não me deu outra escolha, se não encará-lo.
      - Se isso a deixar mais tranquila, posso prometer que nunca me casarei com a senhorita. - acenei enquanto encarava seus olhos azuis e prendia a respiração. - Então, eu lhe prometo. Nunca nos casaremos. Mas gostaria de conhecer a senhorita melhor, pois, como falei antes, acredito que possui um coração de ouro. Ainda estou profundamente grato pelo que fez.
      - Você sabe que isso não foi nada. Qualquer um poderia ter feito e correr em um cavalo quando se tem prática não é algo perigoso. - retruquei pensando em toda a minha experiência cavalgando.
      - Sim, qualquer um poderia ter feito. No entanto, ninguém mais o fez. Então, continuo agradecido. Anastácia é a única família que tenho, ela é a coisa mais importante para mim. - falou de modo sério. - Também gostaria de cavalgar com a senhorita, poderíamos apostar uma corrida. - se mostrou mais descontraído ao fazer esta proposta.
      - Sabe o que dizem de mim por aí, Mr. Sharman? - Permaneci com o tom sério.
      - Eu posso fazer uma ideia do que dizem, senhorita. E pouco me importa. Estou cansado de pessoas superficiais, cheias de máscaras e que só se importam consigo mesmas. Por isso, gostei de conhecer a senhorita e a sua família. E acho que o seu jeito mau humorado contribui para que nossas conversas nunca fiquem entediantes. Olhei para ele com a maior frieza que consegui.
      - Acho que se enganou, Mr. Sharman. Eu só me importo comigo mesma, afinal, o que é a vida senão interesses próprios.
      Ele afirmou com a cabeça lançando um sorriso bem humorado: 
      - Sim, a vida é cheia de interesses próprios Miss. Saunders. Mas consigo perceber que a senhorita tem algo a mais. Algo que a fez se preocupar com a minha irmã naquele dia. - ficamos nos encarando em silêncio por alguns instantes. O que eu poderia dizer que o fizesse ficar exasperado? Ele parecia ter um sorriso para tudo! 
      Prendendo a respiração enquanto nos encarávamos, me lembrei do seu casaco que estava em minha bolsa. Deixei-o sozinho por uns segundos, enquanto ia ao armário de casacos e retirava a minha bolsa de dentro dele. Retornei para junto da janela e lhe estendi o seu casaco, um tanto constrangida, esperando que ninguém tivesse notado. Ele pegou o casaco com um sorriso e fez um gesto de agradecimento com a cabeça. Percebi Sophie e Anastácia cochichando e tive certeza de que elas observaram o ocorrido. Meu pai, no entanto, continuava conversando com Mr. Evans absorto. 
      - Então, quando cavalgaremos? - me perguntou Mr. Sharman, retomando o assunto. Eu deveria ter lhe dito que jamais me reuniria a ele em uma cavalgada, que iria aproveitar melhor o meu tempo e que agora que eu já lhe devolvera o seu casaco e que ele havia me agradecido sobre o que acontecera com sua irmã, não deveríamos mais nos encontrar porque a sua companhia era repugnante. Era isso o que eu falaria para qualquer outra pessoa, mas não consegui dizer-lhe nada. Nem uma só palavra em resposta, sendo o meu silêncio interrompido por meu pai que se aproximava para dizer que já estava ficando tarde e que deveríamos ir para casa. 
      - Sim, claro Mr. Saunders. - falou Mr. Sharman cortesmente. - Espero que possamos nos juntar novamente em outros momentos.
      - Claro, vamos organizar um jantar em Clarence Hill para agradecer por sua hospitalidade. - disse meu pai enquanto eu revirava os olhos. - Joana ficaria encantada, não é querida? 
      Eu poderia ter respondido que não ficaria, mas pensei em Anastácia e em como ela ficaria triste ao ouvir a minha resposta. Ela era feito Sophie, não era possível querer magoá-la com todo aquele sorriso e suas sardas. Elizabeth, esquecida até então, aconchegava-se no grande sofá e fingia que estava dormindo. Logo, todos nós estávamos na carruagem de volta para casa. Sophie sorria misteriosamente, enquanto meu pai tirava um cochilo e Elizabeth olhava pela janela. Olhei para Sophie tentando pedir para que ficasse quieta em seus pensamentos.      

     - Anastásia disse que o irmão dela não lhe deu muitas explicações quando se encontraram no final do baile e ele estava sem o casaco. Parece que disse ter esquecido em algum lugar, quando precisou tirá-lo porque estava com calor. Mas como se podia sentir calor com este vento gelado de primavera? - Ia comentando, à medida em que avançávamos o corredor rumo aos nossos quartos.
     -Pois eu encontrei o casaco em questão. - retruquei sabendo que não era nem um pouco convincente.
      - E como soube que era de Mr. Sharman? - riu-se Sophie.
      Resmunguei qualquer coisa que ela não conseguiu entender e lhe dei boa noite. Avancei para o meu quarto e me tranquei lá dentro tentando dormir e esquecer as horas anteriores. 

Tarde demaisOnde histórias criam vida. Descubra agora