#09 - Tarde demais

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         Ao chegar em casa a noite já caíra. Deixei meu cavalo aos cuidados de nosso cocheiro e ignorei os olhares de espanto quando adentrei o lugar à passos firmes, com a cabeça erguida e sem olhar para os lados. Se alguém tivesse falado qualquer coisa comigo, eu haveria desabado. Mas não podia desmoronar, não agora. Sophie tentou se aproximar, mas percebeu que algo estava muito errado. Subi as escadas e segui no corredor que dava para o meu quarto, o corredor onde ele tentara enxugar minhas lágrimas uma vez. Depois daquele dia, nunca mais havia encostado um dedo em mim, exceto quando despertei da minha enfermidade. Bem, agora haveriam lágrimas de verdade para serem enxugadas, mas ninguém para fazê-lo.
      Me tranquei no quarto e encostei na porta sentindo que havia segurado o choro o bastante e que já não seria possível. Lágrimas quentes caíam de meus olhos enquanto o meu coração ainda batia forte e a minha falta de ar me dava a sensação de afogamento. Não sabia se sentia tristeza ou raiva. Raiva de mim mesma, raiva de Edward por ter conseguido me transformar em alguém que eu não era. Antes quando as pessoas não se aproximavam de mim, eu estava blindada contra esse tipo de coisa. Agora não conseguia segurar a tristeza, embora falasse para mim mesma o quanto Mr. Sharman era um babaca e que eu poderia me recuperar. Pensei em Elizabeth com seu esposo e em Sophie e Mr. Evans. Estes últimos se olhavam com paixão, apesar de suas poucas idades, pareciam compreender mais sobre tudo isso do que eu mesma. Se o amor existisse, certamente seria como o que eles sentiam um pelo o outro, diferente de Elizabeth e seu noivo rico e frio. 
      Depois de algumas horas soluçando e enxugando as lágrimas, Sophie bateu à porta do quarto.
     - Joana, você precisa se alimentar. Não pode ficar aí para sempre, vamos, me deixe entrar! 
      Não lhe respondi e ela veio ainda outras duas vezes naquela noite. Mr. Evans ainda estava em Clarence  Hill quando eu cheguei, mas acredito que ela o dispensou por estar preocupada comigo. Adormeci ainda com o vestido, encostada na cabeceira da cama. No dia seguinte, mantive as cortinas de meu quarto fechadas e dispensei todos os cuidados de Sophie e de Maggie. Tentei tomar uma sopa, que esta havia me preparado, mas não consegui. Meus olhos ainda estavam inchados, mas nem ela, nem a minha irmã fizeram perguntas sobre o que ocorrera. Talvez já soubessem. Ouvir Edward a chamando pelo primeiro nome me tinha sido um mal presságio, já se conheciam há um bom tempo, acredito. Mais quanto tempo? Ele sequer me contou. E não era difícil ver a maneira em como olhavam um para o outro, como se... como se... 
      Respirei sentindo o ardor em meus olhos. Mais lágrimas se formaram, mas eu já tinha chorado o suficiente. 
      - Miss. Saunders - disse Maggie do outro lado da porta. - Mr. Sharman está aqui para saber de sua saúde. Está preocupado com a senhorita. - permaneci em silêncio e ela compreendeu que eu não gostaria de vê-lo. 
      Minha cabeça estava turva de tantos pensamentos. Não era eu mesma quem havia escrito que preferiria poupar os meus sentimentos desde que não o perdesse? Agora parecia muito mais difícil, eu só queria que ele sumisse da minha vida. 
      No outro dia, ele também tentou me visitar, mas eu não o recebi. Quando eu conseguiria olhar em seus olhos lindos outra vez, sabendo que não olhavam para mim como olhavam para Jane? O odiei e o estimei durante momentos alternados naquele dia, porém consegui conter as lágrimas e meu rosto começou a desinchar. Ao cair da noite, já conseguiria sair do quarto se quisesse. Mas como explicar tudo aquilo? Como falar com Edward outra vez? Será que meu coração se partiria de uma vez?
     Me lembrei de quando ele beijou a minha testa e me abraçou como se nada mais houvesse no mundo. Senti um arrepio cortado por uma batida forte na janela de meu quarto. Levantei e fui até a janela afastando a cortina. Ele estava pendurado em uma escada, pedindo para que eu abrisse. Fazia um gesto de súplica para que eu conversasse com ele. Era a última pessoa com quem eu queria falar, mas também era a única que poderia me entender. Abri a janela e segurei a sua mão para ajudá-lo a se apoiar no parapeito. Sua mão estava gelada como o vento da noite que se estendia, eu abri espaço para que ele entrasse no quarto.
     - Estão todos preocupados. - falou isso me dando um abraço acalorado. Depois percebeu o que estava fazendo e se afastou, meio sem graça. - Não imagino o que pode ter acontecido. Você estava tão bem! 
      Surpreendentemente, pude controlar todos os sentimentos que estiveram me perturbando nos últimos dias. Ele era meu amigo, afinal de contas, e eu nada mais deveria desejar, se não a sua felicidade. Nem eu conseguia mais me reconhecer, eu que não desejava o bem estar de mais ninguém exceto o meu próprio. 
      -E u não estive me sentindo muito bem. Precisava ficar sozinha, você sabe como me sinto às vezes no meio de tantas pessoas. Naquele dia, em Madonna Giordana, tive a impressão de que o local estava cheio de gente e não pude me conter. Me desculpe se o preocupei. Eu só precisava de um momento para recuperar o controle.
     - Acho que a senhorita deveria procurar um médico. Essas crises, você vem convivendo com isso há um certo tempo, mas nunca foram tão fortes quanto agora. - disse enquanto se sentava na poltrona do meu quarto e olhava despretensiosamente para o estofado da cadeira. - Tive medo de que fizesse alguma besteira. - ergueu os olhos que cintilavam com um brilho profundo à luz das lamparinas. 
      Dei uma gargalhada forte, sendo interrompida pelos protestos dele em insistir que eu falasse baixo. 
      - Todos já estão dormindo, senhorita. Não seria de bom grado acordá-los, ainda mais comigo aqui dentro de seu quarto. Se o seu pai me encontrar aqui, não terei outra alternativa, a não ser quebrar a promessa que lhe fiz. - Não me pareceu uma má ideia quando o ouvi mencionar o fato. Mas eu não gostaria de ser uma pedra em seu sapato, não agora que ele encontrara o outro par. 
      -Achou que eu iria suicidar-me? - continuei diminuindo o tom de voz, mas ainda achando graça de sua preocupação. - Não percebeu que isso seria um crime grave contra a linhagem e superioridade de minha família?
      Ele me encarou entrando na brincadeira, com cara de travesso. 
      - Poderia acabar com a sua dinastia, não é?
      Dei de ombros: 
      - Bem, acabará de um jeito ou de outro, uma vez que eu não terei filhos. 
      - Tem certeza de que nunca irá se casar, Joana? - me perguntou com ar de preocupação.
     Balancei a cabeça negativamente e me sentei na cama. Eu tinha certeza sim, não porque eu não quisesse, mas porque todas as alternativas para isso haviam se encerrado quando o vi olhar para Miss. Norris. 
      - E você, Edward? - se ele queria iniciar aquela história, que me contasse sobre seus sentimentos logo de uma vez. Ele suspirou. 
      - É tudo tão complicado. Anastácia precisa de uma mãe que cuide dela, não temos uma influência feminina na família há um bom tempo e também preciso de herdeiros para minhas terras e meus negócios. Já tenho quase 30 anos e as pessoas começam a me cobrar isso.
      Acenei afirmativamente, compreendia o que ele queria dizer. Era bobagem pensar que ele ficaria solteiro a vida inteira. Que teríamos os nossos melhores tempos de amizade novamente. Mas ele estava crescendo e eu sentia que as coisas mudariam em breve. 
      - Mas você não pode se casar apenas porque precisa de uma mãe para Anastácia, tem que sentir amor, não é? - comentei corando. 
      Ele sorriu: 
      - Pensei que a senhorita não acreditava no amor. 
      - E não acredito. - retruquei rapidamente. - Mas qualquer um pode perceber como Sophie e Mr. Evans se gostam, por exemplo. Não que isso seja amor, mas pode ser confiança e respeito.
     Ele se aproximou de mim, sentou na cama e segurou a minha mão. Agora já estava quente e seus dedos se entrelaçaram aos meus. 
     - Nem sempre nós podemos ter a pessoa que amamos, Joana. - ele falava como se lesse os meus pensamentos. Senti lágrimas surgirem em meus olhos e rapidamente se dissiparem. - As coisas podem não ser como imaginamos, mas não significa que não podemos continuar vivendo. 
      Ele sabia sobre o que eu estava sentindo? Sobre o que eu estivera pensando durante os últimos dois dias, depois de vê-lo todo derretido por aquela jovem? Retirei a minha mão da proximidade da sua o que o fez se desculpar, se levantar e sentar-se na poltrona novamente. Senti um olhar de decepção perpassar o seu rosto, mas ele se recompôs. Estava decepcionado com o meu comportamento diante de sua felicidade? 
      Fiquei em silêncio prevendo a explicação que viria a seguir. Controlei cada célula de meu corpo para não gritar ou agredir. Respirei profundamente enquanto ele me contava sobre a minha sentença de morte, algo que eu sabia que aconteceria cedo ou tarde. 
      - Tem essa moça, Miss. Norris. - começou. - É de boa família e seus pais eram amigos dos meus, porém só a conheci quando se mudou para Bedfordshire recentemente. Viveu em Paris por parte da adolescência, mas agora está de volta à Inglaterra. É encantadora, tem olhos brilhantes e um sorriso contagiante. Muito fina e educada, bela também. Acredito que seria uma boa companhia para Anastácia. - falava isso como se estivesse relembrando cada detalhe de sua amada. Meu estômago doía e eu sentia vontade de vomitar, porém, me mantive firme. 
     - Já debutou há 4 primaveras e seus pais estão à procura de um bom casamento. - oscilou nessa parte, como se esperasse que eu assentisse ou autorizasse seu matrimônio. 
      Mantive-me passiva, apenas absorvendo suas palavras que me desciam como uma espécie de veneno. Consegui recuperar a frieza em meu olhar e me senti como eu mesma novamente.
      - O que você acha, Joana? - pisquei sem compreender o porque de ele estar me perguntando aquilo. - O que acha de eu cortejá-la? - ouvi-lo se referir a ela dessa maneira me fez sentir calafrios. 
      - Você a ama?
     Os olhos dele piscaram algumas vezes e ele ficou pensativo por uns instantes. 
      - Bem, já que a senhorita não acredita em amor, posso afirmar que confio nela e a respeito. Imagino que poderá trazer felicidade para mim e para Anastácia.
      - Há quanto tempo a conhece, Edward? - perguntei, tentando fingir pouco interesse em sua história. 
      - Desde fevereiro, quando seu pai me procurou, informando que se mudariam para esta região. Tem sempre sido muito agradável estar em sua companhia, mas confesso que não gosto muito de sua amiga, Miss. Morgan.
      Assenti, compreendendo que ele já estava me escondendo aquilo há bastante tempo. Antes tivesse me falado de seus sentimentos em tempo de eu não sucumbir aos meus. 
      Um silêncio se estendeu entre nós dois e eu pude perceber que ele estava ansioso para ouvir o que eu tinha a dizer. 
      "Não, você mal a conhece. Ela é uma dondoquinha que mal compreende como a vida pode ser difícil. Deve atrair a admiração de toda a aristocracia local. Nunca perdeu alguém que amava e agora eu estou perdendo pela segunda vez. Ela não sabe que você costuma pintar quando se sente entediado, mas que tem vergonha de suas pinturas, não sabe como seus olhos brilham quando você faz alguma coisa fora da lei, como roubar maçãs do pomar do vizinho. Ela não sabe como é o sabor de seu wisky favorito e que o seu cantil fica guardado no lado esquerdo de seu casaco." Era o que eu deveria ter dito, mas o que saiu da minha boca foi algo bem diferente. 
      - Se você acredita que pode ser feliz ao lado dela, nada posso desejar além de que isso aconteça. 
       Ele me olhou profundamente e senti os seus lábios afinarem, como se estivesse tenso ou com raiva. Logo seu semblante se recompôs e ele permaneceu em silêncio mais uma vez, olhando para mim. Depois de mais alguns segundos, se levantou, o que me fez caminhar com ele até a porta do quarto.
     - Isso é tudo o que tem a dizer? - Perguntou como se esperasse mais alguma coisa. 
     - Sim - acenei afirmativamente com o tom mais firme que consegui usar desde nosso último encontro. Como havia sido tola em pensar que algo aconteceria entre nós. E se ele afirmava que confiava nela e a respeitava, assim como Sophie e Mr. Evans, nada mais me restava a não ser preservar a nossa amizade. Não suportaria o perder por completo. 
      Ele deu um beijo educado em minha testa e saiu pela porta corredor abaixo. De repente senti um enorme cansaço, minhas pernas se enfraqueceram e eu caminhei até a cama lentamente. Não havia mais lágrimas para chorar naquela noite, encarei o teto até adormecer.

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