Durante as duas semanas que se seguiram, Edward esteve em minha casa todos os dias, mas eu me recusava a vê-lo. O clima estava tenso até com Sophie que não compreendia como eu não desejava falar com ele depois daquela dança que, segundo ela, havia sido maravilhosa. Me poupei de lhe dar explicações, talvez Mr. Evans a dissesse sobre a aposta cedo ou tarde. Mas por que eu tinha aceitado aquela dança mesmo sabendo do que se tratava? Sentia ódio de mim mesma.
Elizabeth se mudara para o norte do país com seu marido. Não que ela me fizesse falta na propriedade, mas Sophie sentia muitas saudades. E foi pensar em Sophie que me fez retomar o contato com Mr. Sharman e sua irmã. Em um certo dia, enquanto ele e Anastácia estavam na sala de música ouvindo Sophie tocar flauta eu me aproximei do piano e comecei a acompanhá-la com acordes perfeitos. Miss. Sharman sorriu entusiasmada, enquanto Edward me fitava de forma séria. No fim daquela tarde, onde não trocamos uma só palavra, Mr. Sharman se aproximou quando as nossas irmãs estavam distraídas à janela e tentou iniciar uma conversa boba sobre a qualidade do tapete de nossa sala. O encarei de forma séria e firme, revirando os olhos como costumava fazer quando ele falava alguma bobagem. Ele percebeu a minha trégua e deu um de seus sorrisos encantadores, evidenciando que a paz estava instalada entre nós novamente. Não precisamos mais tocar naquele assunto e com o passar do tempo, acabamos por nos ocupar de forma mais proveitosa.
Nós quatro éramos agora, quase inseparáveis, fazíamos muita coisa juntos, quase sempre acompanhados por Mr. Evans que era sempre muito gentil e divertido. Eu desconfiava que ele estava apenas aguardando a minha irmã completar 16 anos para lhe fazer a côrte e ela lhe correspondia de forma astuta e discreta. Costumávamos ir à ópera e ao teatro aos fins de semana, embora o meu pai reclamasse quanto à esse último. Dizia que boas moças não frequentavam tal ambiente, coisa que encarávamos de bom humor e sempre o desobedecíamos para assistir aos grandes clássicos. Também realizávamos passeios ao ar livre e inúmeros piqueniques. Assim transcorreu o nosso verão. Cavalgávamos todos juntos e as meninas banhavam seus pés nas águas do riacho, enquanto eu e Edward mantínhamos conversas acaloradas sobre todos os assuntos imagináveis e apropriados.
As pessoas no vilarejo já começavam a reclamar de nossa proximidade. Alguns cogitavam a possibilidade de ele me cortejar e agiam com indignação diante de tal fato. Como poderia um bom rapaz se casar com alguém tão indesejável? Ouvi alguns destes comentários pessoalmente uma ou duas vezes em que estive no vilarejo, porém apenas os ignorei. Não comentei nada sobre o assunto com Edward, mas acredito que ele sabia sobre tudo isso. Essas coisas, no entanto, não afetavam em nada a nossa convivência.
Em meu aniversário de 20 anos, no mês de outubro, pela manhã Edward veio à nossa casa, trazendo consigo uma enorme caixa de presente com um laço de fita vermelho na tampa. Fiquei espantada e ansiosa para abrir o presente. Nunca havia ganhado algo que não fosse de minha própria família e achava aquilo estranho e divertido. Antes de desfazer o laço, ouvi um latido saindo de dentro da caxa, me apressando em descobrir quem ou o que estava lá dentro. Um pequeno labrador olhava para mim, parecendo espantado. Pela sua posição, havia dormido dentro da caixa, que estava forrada com uma espuma e um tecido aconchegante. Era marrom claro e não devia ter mais de três meses! Eu sorri e agradeci verdadeiramente ao meu amigo por tamanha surpresa. Gostava de animais, porém não havia tido muitos de estimação. Edward sorriu, enquanto seus olhos brilhavam diante daquele momento.
Sophie deu pulinhos de alegria ao ver o filhote que logo se tornou um grande companheiro em nossas caminhadas. Eu lhe dei o nome de Zeus, esperando que se tornasse forte e esperto,apesar de achar que o nome não combinava com ele. Era muito fofo, dócil, porém fiel e observador. Fizemos uma pequena cama para ele, colocando um colchão macio ao pé da minha cama, onde sempre dormia. Meu pai também logo se apegou a ele, com quem costumava passear pela manhã logo cedo. A amizade entre os Sharman e os Saunders crescia de forma saudável e apropriada.
- Ele gosta de você, Joana. - Sophie repetia vezes sem conta sempre que Edward aparecia. Todo mundo percebe isso, menos você.
- Não quero falar sobre isso. - retruquei - e não me importo se ele gosta ou não, embora acredite que isso não passe de sua imaginação.
Vez ou outra ainda me vinha à mente a aposta que Edward fizera para alimentar o seu ego de futilidade. E me sentia uma idiota por ter aceitado aquela dança, mesmo que aquele momento tenha sido inesquecível. Sim, não conseguia dormir às vezes pensando em tudo aquilo. A intensidade de seu olhar, o nervosismo da sua voz sem perceber o que fizera. Tudo aquilo partira meu coração, embora eu não admitisse que tinha um.
- Sabia que ele defendeu você no vilarejo quando os outros rapazes zombaram de sua situação? - A situação à qual ela se referia era o fato de eu já ter 20 anos e ainda não ter me casado, isso eu sabia.
Dei de ombros ao comentário dela. A defesa dele foi apostar que conseguiria dançar comigo, isso sim.
Em meados de janeiro, quando o inverno já assolava toda aquela região, fui acometida por uma enfermidade que me deixou acamada durante mais de uma semana. Primeiro iniciou-se com uma tosse, seguida de febre e calafrios. Meu pai mandou chamar o médico que me receitou alguns xaropes e água fria para baixar a febre. Porém, quando os delírios iniciaram as coisas ficaram mais sérias. No início, eu ainda conseguia perceber a presença de Sophie, Edward e Mrs. Flynch ao meu lado, tentando fazer com que a temperatura do meu corpo caísse. Depois, não me lembro mais de nada quando passei a delirar profundamente de forma contínua. Segundo Sophie me informou após o ocorrido, tanto o médico como o meu pai acharam que eu iria desfalecer, pois não conseguia responder à nenhuma das medicações. Não havia mais nada que fosse feito para me ajudar e eu logo morreria de inanição pois não conseguia recobrar a consciência para me alimentar. Minha pele estava tão pálida quanto à de um fantasma e meus lábios ressecados como o barro.
Abri os olhos repentinamente em uma tarde sombria. Edward estava um tanto atordoado diante de mim, seu rosto se inclinava em minha direção e percebi que esteve chorando segundos antes. Não sabia o que estava acontecendo mais a sua cara de assombro me fez despertar ainda mais. Ele deu um grito à plenos pulmões chamando por Maggie, Mrs. Flynch, Sophie e meu pai. O espanto em seu rosto deu lugar à alegria e excitação. Me deu vários beijos na testa, transferindo o calor de seu corpo para o meu, como se não acreditasse no que estava acontecendo. Eu ainda não entendia nada, mas já não delirava como antes. Ele sorria euforicamente e encostou sua testa na minha permitindo que ficássemos há centímetros um do outro.
- Pensei que tinha perdido você. - falou baixinho, como se estivesse falando consigo mesmo. Voltou a beijar intensamente a minha testa e cheguei a pensar que ele gostaria de me beijar daquele jeito para sempre. Com ternura e desejo. Abraçou, com intensidade, minha cabeça contra seu peito e encostou os lábios em meus cabelos embaraçados. Ouvi sua respiração acalmar-se, enquanto os batimentos de seu coração diminuíam e senti que estava no lugar onde pertencia, porém ele se afastou quando ouviu o barulho de pessoas se aproximando.
Quando minha família entrou no quarto eu ainda olhava para ele. Não sabia o que tinha acontecido, mas ele havia me despertado, isso era certo. Despertado também sentimentos que estavam escondidos dentro da minha alma.
Melhorei significativamente nos dias seguintes. Edward não saía do quarto um segundo sequer, passava as noites estirado em uma das poltronas do meu quarto, enquanto Maggie o vigiava bem de perto. Ele insistia para que Mrs. Flynch me alimentasse o máximo possível e abria as cortinas do meu quarto pela manhã para aquecer meu corpo com o pouco de luz do sol que tínhamos durante o inverno. Quando comecei a me sentir melhor, ele trouxe Zeus para que eu pudesse matar a saudade e foi buscar Anastácia para me visitar. Pelo que entendi, parecia que um milagre havia acontecido.
- Dr. Jones já não acreditava que a senhorita iria sobreviver. - disse Anastácia de forma delicada, certa vez enquanto nos sentávamos à sala de estar para elas terminarem seus bordados. - Todos nós ficamos muito preocupados.
Sophie acenou com ar de assombro:
- Pensamos que iríamos perdê-la. Segundo o Dr. Jones, o que era apenas um resfriado por causa do tempo frio, se tornou algo fora de controle.
- Pobre Edward. - retrucou Anastácia. - Não a deixava sozinha nem um segundo, a não ser quando Sophie insistia que ele precisava se alimentar ou descansar um pouco. Ele teve muito medo de a perder, senhorita Joana. Acho que ele a ama.
Ouvir aquilo fez meu coração apertar e a minha respiração parar por um instante, mas logo me recompus e tentei disfarçar as batidas altas da pulsação em meu peito.
- Não diga besteiras, senhorita Anastácia. Eu e seu irmão somos apenas amigos e nunca poderemos ser algo mais.
- Porque, senhorita?
"Porque ele me prometeu", pensei em responder.
- Porque eu não o amo. Nem acredito que ele sinta algo parecido, somos amigos e isso é tudo.
- Como pode dizer isso depois de como dançaram no casamento de Elizabeth? Todo mundo percebeu! - exclamou Sophie, me lembrando de algo que doía demais.
- Para a sua informação, ele só pediu para dançar comigo porque tinha feito uma aposta com Mr. Evans e os outros rapazes de que conseguiria me tirar para dançar. - falei enquanto deixava as duas com olhares estupefatos. - E eu consenti a dança, em troca de uma parte de sua aposta. - acrescentei para que não me olhassem com pena.
As duas pareceram ficar sem palavras e o clima esfriou na sala. Não sei se pelos ares do fim de inverno, ou se pelo fato de eu ter quebrado o encanto que elas nutriam sobre a suposição de um relacionamento entre mim e Edward.
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Tarde demais
RomanceRetratada no século XIX, inspirada nos livros de Jane Austen, das irmãs Brontë, Charles Dickens, entre outros nomes da literatura inglesa. Esta história mostra como o amor pode mudar a dureza no coração e que ele pode estar bem ao seu lado. Joana vi...