Capítulo Dez

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  -- Nome?

  -- Você já escreveu meu nome aí, Mateus!

  -- Siga o script, Soph!

  Olhei para ele seriamente, e quando ele cansou de sustentar meu olhar, suspirou e passou para as perguntas realmente relevantes.

  -- O que você gosta de fazer em seu tempo livre? -- Ele ajeitou os óculos que estavam escorregando pelo nariz.

  -- Ler.

  -- Não me diga! -- Ele revirou os olhos. -- Estou dizendo algum hobbie que ninguém mais saiba.

  -- Você não está achando que eu sou alguma super-heroína que sai por aí a noite combatendo o crime, acha? -- Tentei não sorrir enquanto falava, mas foi impossível quando ele começou a sorrir também.

  -- E você seria quem? -- Ele arrumou a armação sobre o nariz outra vez. -- A super-deboche? Estou falando sério, poxa!

  -- Ok. Bom... -- Parei para pensar. -- Eu desenho. Ouço música. Sei lá, Mateus!

  -- Você desenha? Isso é incrível, Sophia!

  -- Mas eu parei a algum tempo, Mateus. -- Vi ele suspirar frustrado, retirando os óculos de uma vez. -- Eu já usei óculos, sabia?

  -- Sério? -- Ele parecia surpreso, anotando isso rapidamente.

  -- Sim. Mas eram de descanso, e eu os perdi na mudança.

  -- Entendi. -- Ele olhou alguma coisa na folha. -- Sua cor favorita?

  -- Azul-marinho. -- Não pensei duas vezes.

  -- Não seria verde-marinho?

  -- Azul-marinho. -- Insisti.

  Ele continuou fazendo perguntas, então me levantei e comecei a caminhar pelo quarto enquanto respondia. Tinha um pôster do Imagine Dragons pendurado precariamente sobre a parede da escrivaninha, preso por algumas fitas. Olhei para ele enquanto respondia outra pergunta, e vi que estava absorto demais escrevendo minhas respostas. Cheguei ao armário de Mateus, onde haviam figurinhas coladas desbotando. Quando passei os dedos sobre uma delas, o armário se abriu novamente, e eu saltei para trás enquanto ele se levantava e arrumava as roupas, as jogando outra vez no armário.

  Então vi uma caixa preta despontando entre as peças.

  -- O que é isso, Mateus? -- Apontei para a caixa ao me sentar na cama e quando ele me olhou, o vi franzir os lábios, ponderando se iria ou não me dizer.

  -- Não é nada demais, Soph. -- Ele começou a lançar as roupas mais rápido, chutando a caixa no meio da bagunça.

  -- Então você pode me encher de perguntas, mas se recusa a me responder que caixa é essa?

  -- Não é uma caixa. -- Ele parou de pegar as roupas no chão e veio até mim, se sentando do meu lado com a caixa nas mãos. -- É um estojo.

  Ele então o abriu, e tirou de lá duas peças metálicas de um instrumento musical. Eu já o tinha visto em filmes antes, mas não me lembrava o nome.

  -- Isso é um clarinete? -- Perguntei o primeiro nome que me veio a mente.

  -- Não. -- Ele riu, enquanto montava as peças e olhava o instrumento pronto em suas mãos. -- É uma flauta. Uma flauta transversal.

  -- Então você toca. -- Sorri para ele, tentando conter minha empolgação.

  -- Não exatamente.

  Vi que aquele não era um bom assunto. Toda a alegria e brincadeira de antes havia se apagado. Mateus olhava distante para a flauta, a rodando nas mãos, perdidos em seus próprios pensamentos.

  -- Me desculpe. -- Me levantei, pegando meus livros que estavam sobre a cama. -- Eu não queria te chatear. -- Usei a voz mais suave que pude. -- Nós  nos falamos mais tarde, ok?

  -- Ei. -- Ele me chamou quando estava perto da porta. -- Senta aqui.

  Ele bateu na cama, no espaço ao lado dele. Deixei meus livros sobre a cama outra vez e me sentei.

  -- Quando eu era pequeno, minha mãe me pôs na aula de música, porque era o único curso que se encaixava no horário de trabalho dela. Como meus avós moravam longe, e minha mãe precisava trabalhar, ela não podia me deixar sozinho em casa. -- Ele me encarou. -- Eu tinha oito anos na época. O primeiro instrumento que toquei era a bateria, que era uma febre entre os garotos da escola de música. Mas eu era tão ruim que me passaram para outro instrumento. Então fui para outro, e mais outro.

  " Passei uns dois meses só em aulas teóricas. Então meu professor me apresentou a flauta doce. Eu era terrível. Mas fui insistente naquele instrumento. Depois de um tempo, acabei melhorando, então continuei praticando sem parar. Com dez, mudei para a flauta transversal. Nesse momento eu já estava apaixonado pela música. Respirava música, falava de música, pensava em música.

  Então, quando tinha treze anos, houve uma apresentação na escola de música. Eu estava muito empolgado. Eu não era nenhum profissional, e era a primeira vez que me apresentava para um público aberto. Lembro que minhas mãos suavam tanto que tive medo da flauta escorregar das minhas mãos, e quando pararam de suar, começaram a tremer, o que era ainda pior."

  Mateus riu, desviando os olhos para a flauta.

  -- Acontece que minha mãe resolveu fazer uma surpresa para mim. Não que seja culpa dela, nem nada do tipo. Ela fez com a melhor das intenções.

  " Minha mãe estava na primeira fileira quando entrei no palco. Era uma apresentação solo. Meu pai estava ao seu lado, assim como Ethan. Quando eu comecei a tocar, meu pai ficou me encarando. Eu tentava olhar para qualquer lugar que não fosse ele, mas ficou difícil quando minha mãe se inclinou e passou a conversar com meu pai. O assunto era sério, pelo modo como eles se encaravam. Foi quando eu comecei a errar as notas. E quando meu pai me olhou com raiva e saiu do auditório, eu parei de tocar. Acho que tive um ataque de pânico ou algo do tipo, porque quando dei por mim estava no banco de trás do nosso carro, a caminho de casa. Ethan estava no banco do carona, e minha mãe dirigia em silêncio.

  O carro do meu pai estava encostado na frente de casa quando estacionamos. Minha mãe me pediu para ir ao meu quarto, que era ao lado do dela. O que significa que eu pude ouvir a discussão deles no quarto ao lado. E pelo o que eu entendi, minha mãe o levou até o auditório para anunciar que iria investir em mim. Na música em mim. Iria me mudar de escola, e me incentivar a cursar Música quando eu estivesse mais velho.

  Meu pai, como era previsto, odiou a ideia. Disse que música não dava futuro para ninguém, que era algo caro para não dar lucro nenhum, e que ele não iria sustentar filho preguiçoso no futuro. Ethan entrou no meu quarto pouco depois, dizendo que a culpa dos nossos pais brigarem e o fato deles não voltarem a ficar juntos era minha. E eu acreditei nisso. Por anos.

  Naquela mesma noite eu quebrei minha flauta e a joguei no lixo, dentro do estojo dela mesmo. Desisti totalmente da música, mesmo minha mãe me dando outra flauta. Essa que você está vendo. Enfim. Eu mentiria se dissesse que nunca mais toquei, porque eu tive algumas recaídas. Mas já não é o que quero para o futuro. E esse é o fim da história."

  Olhei atentamente para Mateus. Havia alguma tristeza ali, mas eu sabia que ele não gostaria que eu demonstrasse pena. O que prevalecia em seu rosto era aceitação, e eu me recusei a perguntar quais eram seus planos para o futuro, já que ele desistiu da música. Apertei sua mão que estava segurando a flauta, e encarei seus olhos quando ele me deu um sorriso contido.

  -- E eu aqui pensando que essas mãos eram de pianista. -- Ele riu, dessa vez baixo, e eu o acompanhei. -- Eu realmente não entendo nada de música mesmo.

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