Capítulo Quinze

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Síndrome de Usher.
Tipo 3.

O resultado dos exames saiu no começo de Junho. O doutor Ramirez foi o mais paciente possível, respondendo todos os questionamentos da minha mãe.

Falando nela, sua reação foi... Não sei descrever sua reação. Ele é enfermeira. O que significa que deve ter entendido a maior parte dos termos estranhos que o médico usou. Apesar de todas as perguntas que fez, ela se manteve controlada, me olhando periodicamente durante a consulta, e se manteve sentada, parada, o que é raro já que ela é sempre inquieta. Foi aí que vi que a coisa era grave. Quer dizer, eu ouvi o que o médico disse. As consequências.

Mas o pior foi no carro. O trajeto até nossa casa foi normal, silencioso. Mas, assim que estacionados na garagem, minha mãe desabou. Ela deitou sobre o volante, chorando alto, de soluçar, falando que parte daquilo era sua culpa.

Ela se culpava por não ter visto os sintomas antes, já que sendo enfermeira ela deveria ser mais atenta. Se culpava por não ter muito tempo conosco, devido as longas jornadas de trabalho. Mas eu não conseguia ver a culpa dela nisso.

Era uma doença genética. Algo que minha mãe não podia controlar. Foi estranho ouvir o médico falar. Eu não tive reação, como se fosse outra pessoa recebendo o diagnóstico, não eu. Foi estranho ouvir tudo o que aconteceria daqui para frente e as consequências disso na minha vida. O fato de não terem tratamento, com excessão de alguns experimentais e o uso de aparelhos auditivos e óculos.

Foi então que a ficha caiu.

Eu vou ficar surda e cega.

Quando dei por mim, estava abraçando a cintura da minha mãe, chorando como ela. A última vez que lembro de ter chorado foi quando tinha sete anos e tentei andar de bicicleta. Ralei o joelho e aquilo doeu muito. Mas agora era pior. Porque o joelho ralado melhorou com o tempo, e minha condição atual pioraria com ele.

O médico disse que provavelmente não seria surdocegueira total. Mas agora, encarando tudo com realidade, me dei conta de como minha vida mudaria. Das adaptações e tudo mais.

Chorei ainda mais no colo da minha mãe, dentro do carro ainda, como nunca havia chorado antes.




Ficamos um bom tempo no carro, ela fazendo carinho no meu cabelo, tendo um pouco de dificuldade por causa da trança, e nós duas tentando controlar o choro. Depois de um tempo, quando as lágrimas pararam de cair, nós ainda ficamos lá, em silêncio. Quando minha mãe nos lembrou que precisávamos entrar, acenei e abri a porta do carro, entrando em casa e indo ao meu quarto, ignorando totalmente Isabele que perguntou o motivo do meu rosto vermelho.

Deitando na minha cama, fiquei sem pensar em nada, encarando o teto, as bordas do quadrado perfeito que dava acesso ao sótão. Tudo o que eu precisava era empurrar aquele quadrado e me trancar ali, até toda a tormenta passar.

Mas ela não vai passar.

Não chorei. Muito menos gritei ou quebrei coisas. Vi as sombras da noite de alastrarem pelas paredes, mas eu não me levantei para acender as luzes. Sequer me mexi muito, o que era estranho, já que ainda tenho medo do escuro.

As pessoas cegas "vêem" escuro? Ou vêem as luzes, conforme elas vão passando diante dos olhos?

A luz da Lua impedia que o quarto ficasse no breu, mas mesmo assim eu sentia aquele medo no fundo do estômago, arranhando e sufocando, igual quando era pequena e corria para o quarto dos meus pais, com medo da noite e das sombras do meu quarto. É estranho ainda ter esse medo, mesmo já estando velha demais para correr para o quarto da minha mãe.

Quando finalmente reuni ânimo suficiente para levantar da cama e acender a luz, me dei conta de que estava na mesma posição de quando me joguei ali. No instante seguinte, minha cama foi invadida.

Isabele me abraçava, apoiando o queixo no topo da minha cabeça e Laura se deitou no meu lado, pegando minha mão livre, já que eu estava segurando o braço de Isabele com a outra. Era claro que minha mãe já havia contado tudo.

-- Vai ficar tudo bem, Sol. -- Laura disse e quase chorei outra vez. Ela não me chamava assim a tanto tempo.

-- Isso aí! -- Isabele concordou, me apertando mais. -- Nós estamos com você, maninha.

-- Como nos velhos tempos? -- Perguntei sorrindo, mesmo quando minha voz falhou. -- Nosso Clube de Garotas voltou a ativa?

-- Sempre! -- As duas responderam, rindo em seguida.

Conversamos sobre diversas coisas, rindo alto a cada bobeira. Não me incomodei com o escuro. Agora eu estava deitada sobre o braço de Isabele, que devia estar dormente já, com Laura sobre a minha barriga.

-- Mamãe disse que eu teria mais peito que você. -- Laura provocou do nada, apoiando a cabeça um pouco acima do meu umbigo.

-- Olha a boca, mocinha! -- Ralhou Isabele, dando um tapa fraco na cabeça de Laura que riu.

-- Você está com inveja porque eu vou ter mais bunda que você. E nem me olhe com essa cara, porque peito e bunda são partes do corpo, não palavrão. -- Acrescentou ela, antes que Isabele pudesse abrir a boca.

-- Você pode substituir por seios e... glúteos? Bumbum? -- Tentei ajudar Isabele a discipliná-la.

-- Mesmo que seja verdade, Soph vai ter mais bunda que você. -- Isabele retrucou, mostrando a língua.

-- Isabele! -- Não podia acreditar que ela estava cometendo o mesmo erro do qual estava cobrando Laura mais cedo.

-- Mas é verdade! Você já tem mais bunda e seio que eu, mesmo sendo mais jovem. -- Laura riu de Isabele, da maneira escandalosa de sempre. -- Se bem que eu acho que vai parar por aí. Eu parei de crescer em todos os sentidos quando tinha sua idade.

-- Isso significa que Soph vai ficar baixinha assim? -- Laura perguntou com falsa inocência.

-- Fica quieta, tampinha! -- Briguei com ela, divertida com o rumo da conversa. -- Ainda sou mais velha que você. E que história é essa de ficar olhando para minha bunda, Isa?

-- É que é meio impossível de não ver, Soph. -- Ela deve ter revirado os olhos. -- Você é jovem, precisa aceitar melhor o seu corpo, que é muito bonito. Principalmente esse bumbum redondinho. -- Elas riram e eu fiquei sem graça. -- E não ligue para Laura. Seus seios tem o tamanho ideal, e provavelmente são maiores que os meus, então você tem o dobro de vantagem sobre mim.

-- Sério? Você ainda é mais alta. -- E mais bonita, acrescentei mentalmente. -- E porque você ficou prestando atenção nisso?

-- Isso não é nada, seu corpo ainda é mais bonito que o meu, que é todo reto. -- Ela falava sobrepondo minha fala. -- E eu precisava notar esse tipo de coisa. Você sabe, para ter como questionar Deus sobre a má distribuição genética que ele fez entre nós.

Ela riu sozinha, antes de parar do nada, com um cutucão de Laura. Então eu entendi. Eu era uma má distribuição genética. Laura e Isabele também poderiam ter tido a síndrome, mas apenas eu a tenho. Não que isso fosse importante, a não ser pelo fato delas também terem que fazer exames para garantir que não são portadoras.

-- Soph, eu não quis...

-- Ei. Está tudo bem. -- Acariciei sua mão, que estava entrelaçada a minha. -- Eu entendi o que você quis dizer.

Ficou um clima estranho depois disso, mas logo voltamos a falar sobre amenidades. Depois de um tempo, nossa mãe entrou com uma caixa de pizza, que comemos todas nós deitadas na cama.

Isabele e Laura dormiram na minha cama, nós três muito apertadas, já que mesmo sendo de casal, não era tão grande assim. Mas antes disso, combinamos nós quatro que não iríamos falar sobre a síndrome com ninguém. Não até eu me sentir pronta. Elas não se oporam.



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