A Amiga Bruxa da Vó Maria

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Sabe, sou descendente de portugueses, cresci fazendo parzinho com meus primos e primas em danças como "vira" cantado pelo Roberto Leal em nossas festas de família.
Meus tios, tias e até meu pai quando pequenos dançavam em grupos folclóricos portugueses, minha avó Maria era muito amiga do padre Pedro da paróquia local e tinha prazer em envolver os filhos com a assistência social da igreja e a forma de colaborar era permitindo que eles dançassem para ajudar a arrecadar fundos, o que todos faziam com enorme prazer.

Apenas imagine, meu avô  Benjamin chegou no Brasil em 1927 de navio e ficou hospedado em uma das muitas hospedarias que recebia, cadastrava e determinava em qual região seria a lavoura para onde seriam enviados os imigrantes de todas as nacionalidades para trabalhar.

Sempre me emociono bastante todas às vezes que vou ao Museu do Imigrante em São Paulo, afinal é impossível não se sentir parte do lugar, ali a conexão com minha ancestralidade é imediata, objetos antigos, cartas, fotos, tudo me conecta a uma época que foi de dificuldades, mas também de muita esperança para meu avô.
Além disso ao ouvir os muitos relatos feitos em vídeos e áudios dos imigrantes de vários lugares do Mundo que estiveram ali, a emoção chega como um murro no estômago.
A realidade é que meu avô  assim como muitos imigrantes, chegou com apenas uma mala cheia de esperanças, muita vontade de trabalhar e prosperar.
Já minha avó Maria acabou o conhecendo na roça, na região onde ela morava e para ela estar com imigrantes não era novidade, uma vez que ela própria teve contato e fez amizade com muitos deles.
Acontece que com eles ela viveu várias histórias e sabia melhor que ninguém que na bagagem de um imigrante certamente não vem só seus pertences materiais, eles trazem também saudades do seu país, da sua cultura, de suas tradições e muito da sua espiritualidade.

Agora preste atenção no que eu vou lhes contar, foi assim que a vó Maria conheceu Luna, sua amiga italiana.

A história chegou aos meus ouvidos assim .. o ano era 1982, estávamos eu e uma de minhas primas curtindo os últimos dias de férias na casa da vó Maria,
era meio da tarde de um dia chuvoso e nós já tínhamos feito de tudo o que era possível para duas menininhas de sete anos fazerem presas dentro de uma casa em dia de chuva,
já havíamos ajudado a vó Maria a "bater a massa" do bolo de fubá com erva doce que perfumava a casa enquanto assava dentro do forno, enrolamos rosquinhas que seriam fritas e depois açucaradas e salpicadas com canela, tínhamos feito uma enceradeira humana onde sentadas em um velho cobertor revezávamos ao deslizar no chão de "vermelhão" do quarto encerado com cera Parquetina, quase posso sentir o cheiro da cera, tem cheiro de infância!

Francamente, o tempo passou e fomos ficamos entediadas e começamos a brigar por algo insignificante como as crianças fazem e minha prima "nervosinha" gritou:

- "Sua bruxa!"

A vó Maria que costurava na máquina na cozinha, fez uma pausa e nos chamou, colocou as duas sentadas uma do lado da outra e de frente para ela e sem tirar os olhos do que costurava, ela séria, começou a falar:

-Vocês sabem o porquê não devem se xingar de bruxas?

Eu a injustiçada, logo me apressei em responder:

- Por que é feio. E ela e uma chata!

E a vó Maria começou ..

Quando eu tinha dez anos e era assim pequena como vocês, eu trabalhava na roça com minha mãe e irmãs e junto a nós trabalhavam muitos imigrantes, naquela região chegavam quase todos os dias famílias e mais famílias, a maioria vindas da Itália. Entre as mulheres brasileiras e as imigrantes italianas sempre havia muita cooperação apesar da dificuldade com o idioma e para nós crianças era tudo ainda mais fácil, afinal enxergávamos as crianças como novos amigos e logo estávamos todos juntos subindo nessa e naquela árvore de frutas, entender o que o outro falava, pouco importava, contanto que conseguíssemos brincar.

Como vocês podem imaginar, onde há crianças também há brigas e a realidade foi que durante uma das discussões, um menino italiano xingou sua irmã de "Strega", o que fez a menina de mais ou menos uns oito anos ficar transtornada, começando a chorar incessante e descontroladamente.

E ela disse brava que era proibido proferir essa palavra e que ele sabia, e bem, o por quê.

Eu curiosa fui até a menina e perguntei:

- Que significa Strega e porquê ele não pode dizer essa palavra?

Ela não me compreendeu, mas uma outra menina italiana que já estava no Brasil a mais tempo me olhou e respondeu:

- Significa bruxa, Maria! Ela disse, sorriu e saiu.

Saber disso foi o suficiente para atiçar minha curiosidade e todos os dias quando eu via Luna, esse era o nome de minha nova amiga italiana, a briga dela e de seu irmão me vinha a mente como um flash, houve algo de estranho no choro de Luna naquele dia, isso eu tinha certeza.

Passaram-se uns dias e sentadas embaixo de uma grande árvore enquanto comíamos nossas marmitas, não resisti e perguntei:

-Luna, qual o problema do seu irmão não poder te chamar de bruxa? Percebi que você ficou muito ofendida naquele dia, minhas irmãs cansam de me xingar de bruxa e eu a elas, e tudo bem, contanto que a mamãe não nos veja. Claro!

Maria.. você tem que me prometer que não vai contar para ninguém o que eu vou te contar, é um segredo de família e eu posso morrer por isso!

Luna tinha aprendido falar um português mal falado, sempre misturava com o italiano, mas quando ela começou a me contar sua história, estranhamente percebi que ela havia entrado em minha mente e claramente eu a compreendia.

Sou de uma cidade chamada Triora na Itália e minha família vem de tempos antigos e tem dons muito especiais, o problema é que uns tem para o bem e outros para o mal. Infelizmente!
E acredite ou não, muitos pagaram com a vida queimados em fogueiras no passado. Luna disse e abaixou a cabeça com tristeza.

-Queimados? Luna, você é...?Perguntei espantada.

-Shhhh! Sim, eu sou! E minha família também.

Vou te contar um segredo, você não reparou como a colheita tem sido próspera nessa região nesse mês de outubro? Em como a lua clareia fora do normal as plantações nas madrugadas?
Para nós isso tem um motivo, a abundância nas plantações é uma forma de gratidão ao povo dessa região que corre perigo e nem sabe, esse mês em que a luz da Lua é forte os campos ficam iluminados e os "Perseguidores" vem a nossa procura, esse é o mês que mais corremos perigo.

São os carrascos do passado, que não sabiam que ao queimarem as bruxas vivas eles ficariam com suas almas aprisionadas pela eternidade. O fato é que por vingança eles continuam a nos perseguir em todas as partes do Mundo, atravessando os séculos.
Aqui estão os detalhes, eles usam um colar com um crucifixo e não podem jamais tirar, mesmo sentindo a dor que o adorno provoca, ou ficam com feridas dos pés à cabeça, a corrente é enfeitiçada e brilha quando exposta a luz da Lua e é assim que conseguimos identificá-los no meio do povo e podemos fugir.
Nesse período de Lua clara usamos alguns feitiços para afastar as nuvens do céu, mas também ficamos mais expostos e quando alguém grita "Strega" ou "Stregone" na verdade está correndo grande perigo porque eles podem estar disfarçados entre os do povo.
O fato é que eles não possuem dons que os ajudem a discernir quem realmente é Strega ou Stregone, o que faz de todos alvo e infelizmente o único objetivo deles é a vingança pela maldição, são seres sem alma.

Agora preste atenção, pessoas somem misteriosamente e reaparecem loucas ou com amnésia.
- A vovó nos disse e continuou com sua costura. -

Eu e minha prima que estávamos sentadas uma ao lado da outra, sem dizer uma palavra se quer e sem perceber aos poucos à medida que a história da vó Maria evoluía, nós íamos ficando cada vez mais perto uma da outra e por fim estávamos até de mãos dadas e de olhos arregalados.
Foi assim que como mágica, bruxaria, ou Deus sabe o quê, a vó Maria conseguiu de novo: a paz voltou a reinar!

Os xingamentos cessaram e o barulho da chuva e do costurar na máquina começou a parecer música em nossos ouvidos naquela tarde agradável e inesquecível.

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