Meu Tio Coveiro

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Tem certas profissões que deveriam ser muito mais valorizadas do que são, vamos usar como exemplo um médico, há ocasiões em que ele está literalmente com nossas vidas em suas nossas mãos, porém sem pesar o esforço no quesito gastos, preparação com o anos de estudo, residência hospitalar e tudo mais que a profissão exige, ele cuida para que vivamos, no entanto um dia inevitavelmente, eu, você e todo mundo, acabaremos nas mãos do tanatopraxista, que confesso soube há pouco tempo que é o nome do camarada que deixa o morto, bonitinho, descontaminado e às vezes até maquiado, antes que cada um se despeça dignamente de sua família, uma profissão importantíssima, mas a menos que você opte por ser cremado, tudo acaba mesmo, mesmo..., é nas mãos do sepultador. Mantive o termo coveiro, respeitando como o próprio tio Cido se intitulavaao nos contar suas muitas histórias, o fato é que ele aprendeu a lidar com naturalidade com a morte, afinal dela que vinha  seu sustento e ele respeitava  tudo ligado a ela, certamente ele não é remunerado como o médico ou o tanatopraxista, porém o fato é que ele dá bom dia para morte todos os dias e às vezes...literalmente.

Cido. Esse era o nome do meu tio coveiro, um amor de pessoa e sempre cheio de histórias para contar. De estatura pequena e meio magrelo, ele era uma figura, tinha um sotaque meio caipira de quem nasceu e viveu no interior e contagiava a todos com sua alegria. Trabalhava fazia muitos anos em um conhecido cemitério na Zona Norte de São Paulo, cavando covas de Sol a Sol para dar o fim digno a que todos merecem e apesar de ganhar bem pouco, ele tinha muito respeito pela sua profissão, pelo sofrimento das famílias e sobretudo pelos mortos, obviamente.

Respeito que segundo ele, se todos trabalhassem pelo menos um dia como coveiro todos teriam, afinal ver fantasmas não é para todos, mas certamente é para os coveiros. Ele como todo bom coveiro, vivia a peculiaridade de passar por esse ou aquele espírito vagando pelo cemitério, alguns deles paravam muitas vezes para observá-lo a cavar as covas inclusive. No começo o tio tinha medo, depois com o tempo ele passou até a cumprimentar e a ser cumprimentado pelos fantasmas pontuais, ou seja, aqueles que metodicamente tinham um horário ou dia certo para passear pelo cemitério.

Havia uma mulher muito atraente e elegante, o tio sempre a via chorando próxima a um túmulo nas manhãs de terça-feira, o estranho era que ela vinha sempre no mesmo horário, o que despertou a curiosidade dele, que comovido por aquele sofrimento que parecia não ter fim, várias vezes ele se pegava orando por consolo ao coração da melancólica mulher. Ele, tímido como era, ficava de longe só a observando, claro que ele imaginava que ela era viva e que vinha visitar algum ente querido, até que um dia, começou cair uma forte chuva no cemitério, era terça-feira, a manhã de céu cinza e os ventos fortes e frios deixavam o cemitério com um ar sombrio, eram vasos de flores espatifando aqui e ali, as portas de bronze dos túmulos balançavam e o vento cantava desesperadamente.

O tio Cido que estava cavando uma cova, teve que parar e correndo foi para sala de apoio dos coveiros, local onde as pás e placas fúnebres eram guardadas e por lá ele ficou para se abrigar da tempestade que já demonstrava que seria das mais fortes.Para surpresa dele ao olhar pela velha e pequena janela do quartinho encardido em que estava, ele avistou a melancólica mulher no mesmo lugar e horário de sempre.

Ele com dó dela, não pensou duas vezes, pegou seu guarda chuva e foi ao encontro da mulher oferecer ajuda, contrariando seu amigo Tonhão que também era coveiro e que inclusive dizia que não estava vendo ninguém, mesmo assim o tio que era um homem generoso, resolveu ir ao encontro da dama.

O cenário que já estava sombrio, foi ficando ainda mais amedrontador com raios iluminando o horizonte do cemitério. Quando ele percebeu que a chuva caía sobre a mulher, no entanto ela não se molhava, um frio lhe subiu pela espinha e ele desistiu de chegar até ela e de pavor saiu correndo e largou o guarda chuva para trás.

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