O Homem Sem Medo

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O medo é involuntário, sentimos porque sentimos e pronto! Agora algo todos temos que admitir, o medo é uma ferramenta instintiva de proteção e o mistério que envolve o desconhecido na mesma proporção que intimida ... excita. O ano é 1984, para mamãe passear nos fins de tarde na casa da vó Dita era algo que praticamente fazia parte de nossa rotina, sempre ao chegarmos na casa da vovó ela já nos aguardava com seu sorriso contagiante, sua voz meiga, suave e um cafezinho
" água de batata". Naquele dia o tempo estava meio esquisitão, e os trovões anunciavam que logo teríamos chuva. As horas passaram e na verdade não choveu, metaforicamente falando, - desabou o céu- , parecia um dilúvio, a energia elétrica acabou e minha vó acendeu várias velas pela casa,, a rua Abacatí no bairro da Parada Inglesa na zona Norte de São Paulo parecia um rio tamanha a enxurrada e mesmo no meio de tudo isso para nossa surpresa, meu avô José chegou e todas ficamos muito alegres com sua presença, meu avô era uma daquelas pessoas que possuía uma alegria contagiante, seu carisma acendia o ambiente. O meu irmão James, era pequeno com apenas quatro anos na época, não resistiu ao barulho de chuva nas telhas, o tremular da chama das velas dançando, a voz meiga da nossa vó e caiu num soninho gostoso no colo de nossa tia Zelda no sofá da sala.

Na nossa família a falta de energia elétrica é vista como a oportunidade de ver velhas fotos e de ler e contar histórias, então sentamos todos juntos para ver fotos de família e em uma delas lá estava eu, toda fofa com 8 anos, na ocasião da foto fui fotografada com uma cara bem séria ao lado do meu vô Zé, minha avó sorriu e disse:

- Nesse dia você ficou tão apavorada com o conto do seu avô sobre "o homem sem medo" que dormiu agarrada na sua tia. Minha tia sorriu e me olhou.
-Você lembra da história? A vó Dita perguntou.

.-Não toda. Respondi sorrindo para a vovó.
E a mamãe completou
- ela era muito pequena, mãe!
- Conta de novo Zé! Disse a vó Dita com sorrisinho de canto de boca e o vovô, todo alegre começou...

- Era uma vez... um homem que dizia não ter medo de nada e nem de ninguém, os seus amigos indignados com sua arrogância acabavam sempre o desafiando. O fato é que. esse homem experimentou de tudo: casebres fantasmagóricos, seguiu o gato preto até o cemitério na noite de sexta-feira treze, disse ter visto algumas almas penadas e nada realmente lhe causava nem um pouco de medo e ele sempre acabava ganhando as apostas e lucrando com sua valentia. Foi então que durante uma quermesse enquanto ele se gabava por não sentir medo de nada, um velho padre, que não era o padre da paroquia local, se aproximou e lhe entregou uma varinha de marmelo seca e lhe disse:

-Filho, vamos ver se realmente você não tem medo de nada! Essa varinha ficará verde quando você sentir medo e ai será o momento de me devolver. O meu desafio é:
- Vá para a Serra da Cantareira e procure pelo casebre da Dona Zélia, uma senhora que tem a fama de colecionar ossos. Ninguém jamais teve coragem de entrar no casebre dela e tem mais, à meia noite ela sai com uma lata de cola e some na bruma da mata, ninguém sabe o que ela faz e nem para onde vai. O homem riu e foi. Ele adorava um desafio, foi e achou o casebre que era muito velho e totalmente destruído, tinha uma pequena varanda na frente que estava cheia de matos e teias de aranhas, era difícil acreditar que alguém pudesse morar ali, mas a velha Zélia morava. Com cuidado ele foi em uma das janelas laterais da casa e viu a velha com a lata de cola, ela colava alguns esqueletos, colava seus braços e cabeças, ele achou estranho, mas não assustador e por um instante ele teve a impressão dela tê-lo visto, então bem devagar ele saiu da janela, a primeira coisa que ele olhou foi a varinha, que continuava seca.
-Ele riu.- , parte do desafio proposto pelo padre era ver o que a velha fazia com a lata de cola na mata à meia noite, então o rapaz se escondeu na mata e esperou a noite cair, o dia estava frio, ventava muito e uma fina chuva caia intensamente, a bruma densa e esbranquiçada envolvia toda a Serra da Cantareira.
Ele estava escondido na mata, porém ficou nas proximidades do casebre, resistiu ao frio e aguardou e como o esperado, no horário previsto, sai a estranha velha com sua lata de cola mata adentro e ele a foi seguindo com cuidado, não queria que ela percebesse sua presença. O local para onde a velha se dirigiu era um campo aberto onde haviam muitos soldados, ao que parecia estavam lá para uma grande batalha, haviam soldados de diferentes épocas, vestidos com diferentes uniformes, haviam também um ou outro padre de diferentes ordens católicas, Capuchinhos, Arautos do Evangelho, ele percebia pelas vestes, certamente aquela situação sobrenatural era assustadora para qualquer um menos para o homem sem medo. E ele seguiu observando que eram poucos os homens comuns, mas todos de espada nas mãos.

De repente a batalha começou, era cabeça para um lado, braço para o outro - ele olhou a varinha ela continuava seca - Ele riu.

A velha ria de satisfação, o som gutural de seu sorriso ecoava pela mata, incomodando até os animais silvestres, já os guerreiros tinham semblante de profundo sofrimento,

Aquela velha bruxa má, ia com prazer até os soldados mutilados e os colava, ali mesmo, para que a batalha continuasse e eles caiam, ela os colava, então eles se levantavam e a batalha continuava, assim foi por horas, até perto do amanhecer. O homem sem medo, vendo a situação, achou que já havia visto o suficiente, afinal ele era corajoso não imprudente e resolveu ir embora, mas quando ele se virou ... Vlupt!!! Sua cabeça rolou pelo chão. Ao amanhecer ele acordou dentro do casebre empoeirado, e a velha que agora ele tinha certeza era uma bruxa disse:

- Curiosidade mata sabia? E a arrogância nos faz perder a cabeça! Ela riu alto. Ele levantou apavorado e percebeu que a velha bruxa havia colado sua cabeça do lado contrário, ela ria muito e ele estava realmente apavorado.
E ela dizia enquanto olhava para pilha de homens descabeçados deitados no canto da sala ; 
-Mais um soldado para batalhar junto ao exército dos curiosos! Ela olhou profundamente nos olhos do homem sem medo e disse com sarcasmo:
- Calma! Se você ganhar a batalha, - ela sorriu sarcasticamente novamente passando as unhas encardidas ao redor do pescoço dele - , pela manhã eu deixo você ir. O homem apavorado e desesperançoso sabia que nunca mais iria sair dali, afinal a batalha nunca acabaria, ele viu, ela ressuscitava o exército todo os dias, os colando nas madrugadas. O jovem na situação mais bizarra que alguém poderia estar, ouviu um barulho e viu o velho padre que o havia desafiado na quermesse. O padre invadiu o casebre e pegou a lata de cola das mãos da velha bruxa.- e em tom ameaçador ele disse: 

 - Corte a cabeça dele e cole no lugar certo ou eu levarei a lata!! Ele tremia enquanto segurava a lata com uma mão e com a outra segurava uma pesada espada e a velha bruxa espumando pela boca de ódio, gritava:

 -Não!!!!! - Até que subitamente ela gargalhou e o som do riso macabro da velha bruxa tomou o ambiente. - E ela continuou - Ele veio aqui porquê quis.!!!! E vai lutar com a cabeça virada para as costas. Não o defenda padre bobo! Ele é muito arrogante, os outros eram curiosos, mas não zombavam do que não conheciam. Já esse aí... O padre em tom de ameaça começou a jogar a cola mágica no chão, a bruxa foi ficando cada vez mais irada, com os olhos brilhando, sedenta por vingança e .. Vlupt!!!... cortou a cabeça do homem sem medo
.- Agora me devolva a cola ou eu o deixarei sem cabeça também! - A velha veio em direção ao padre toda estabanada. O padre devolveu a cola, sem ter certeza se o rapaz sairia vivo, entretanto a velha resmungando colou a cabeça do homem do lado certo e ele apavorado saiu correndo com a varinha verde nas mãos, deixando o padre para trás covardemente.

O medo dele foi tão grande, que não só a varinha ficou verde como até nasceu um broto em sua ponta. No outro dia, ele preocupado e envergonhado por ter deixado o padre abandonado com a velha bruxa, foi agradecer humildemente e devolver a varinha. Porém ele o procurou, procurou, e nada de achar e como não o achava de jeito nenhum, resolveu perguntar ao padre da paróquia local onde o honrado padre estaria e como poderia ir encontrá-lo. O padre da paróquia local com uma expressão de susto e surpresa levou o homem sem medo, que agora era o medroso, para o cemitério no fundo da igreja e em silêncio apontou para o túmulo com a foto do velho padre e eles ficaram ali por alguns segundos, quietos e em choque.

Uma forte tempestade ia se formando e o padre titular chamou o homem sem medo para um chá na paróquia e resolveu contar que aquele era o padre alemão, Klaus e continuou dizendo: - Ele foi o fundador dessa pequena paróquia em 1884, ficou desaparecido por anos após ter ido visitar uma fiel que estava doente e morava na Serra da Cantareira e só depois de um tempo foi encontrado; morto e com aquela espada nas mãos. - Apontou para uma espada antiga chumbada ao túmulo, que eles observavam da janela da sacristia que dava de fundos para o cemitério da antiga igreja, e ele acrescentou a informação: - Ele é falecido fazem mais de 60 anos!                                                                                                                                                                              O Homem sem medo olhou para varinha e resolveu depositá-la no túmulo do velho padre Klaus, antes que dela nascessem até frutos, concluiu o vovô rindo.

Quanto a mim só posso dizer que aquele foi um dia incrível passado junto dos meus amados avós e tia, um tempo que não volta mais, porém me faz pensar sempre que a frase cantada na canção da banda O Rappa me parece perfeita, afinal naquele dia, "faltou luz, mas o sol invadiu a sala"  e continuará iluminando nossas lembranças.

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