Corpo Seco no Milharal

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Um dia desses enquanto eu pesquisava alguns exercícios físicos no YouTube, eu ouvi a expressão: "Quer ficar com o corpo seco, tem que malhar! "

Malhei. Malhei pra caramba, acompanhei o vídeo até o final. Quase, na verdade, quase, até o final e quando eu estava chegando ao ponto de morrer de exaustão, sozinha, toda suada, parecendo uma maluca reclamando com a professora de ginástica do vídeo, pausei o vídeo e decididamente fui até minha geladeira, peguei um pedaço generoso de bolo de chocolate com cobertura e enquanto eu comia o "pecado em pedaços", cheguei a conclusão que quem entendia mesmo de corpo seco era a bisavó Faustina - Vê se você concorda comigo..- , eu como boa escritora que sou, munida de uma justificativa filosófica por ter caído de boca no bolo de chocolate, o filósofo consolador do momento foi Platão com sua frase - "O corpo é o cárcere da alma"- , e alma é alma, nunca ouvi falar de alma gorda ou alma magra. Tá! desculpe, ando meio neurótica com essa coisa de dieta.

Vamos ao conto. O ano é 1936, minha avó Maria e suas irmãs assim como todas as moças da cidade de Joanópolis, queriam ir ao coreto da cidade para paquerar. Era época de Carnaval e todos os jovens se reuniam para as brincadeiras próximos a paroquia local, sob a atenta supervisão das carolas da igreja que eram responsáveis pelo "Fofoca News" que toda cidade de interior tem e .. ser destaque no Fofoca News significava não conseguir um bom casamento e isso preocupava minha bisavó Faustina em relação as filhas. Minha bisavó estava desconfiada que minha tia avó Ana, irmã do meio da vó Maria, estava "arrastando asas " para o filho do dono do armazém.

Acontece que os dias se passaram e durante mais uma manhã que nascia, de chinelas de couro vinha caminhando minha bisavó Faustina e suas três filhas para mais um dia de trabalho no casarão da família Antunes. Cortar caminho por dentro das extensas plantações de milho era a rotina da bisavó Faustina todas as manhãs, durante o verão os trapos de algodão protegiam seu pescoço do Sol escaldante, porém nas manhãs frias de inverno não haviam meias e botas suficientes para espantar os gélidos ventos de cortar até a alma.

E por falar em alma ..

Durante o caminho naquele dia minha bisavó resolveu contar para as filhas a lenda do "Corpo Seco", elas aproveitaram a companhia da mãe que estava indo trabalhar para atravessar o milharal rumo à cidade, a realidade é que elas estavam eufóricas para ir na cidade comprar linhas para bordar, fitas para os cabelos e fazer compras no armazém de secos e molhados, naquele dia a neblina começava a dissipar pouco a pouco e entre uma fina névoa e um tímido raio de Sol, às vezes era possível confundir o espantalho do milharal com os roceiros. Uma das irmãs da vó Maria se assustou com um barulho vindo do milharal, no entanto era um pássaro. Atenta a essa oportunidade a bisavó Faustina aproveitou para começar com a história.

- Calma! É só um pássaro. Ela disse e olhou fixamente para as filhas. Mas eu devo lhes contar um segredo, imagine que por muitas vezes ao caminhar nas plantações a única companhia que se tem são os espantalhos, os pássaros assustados e um calango aqui e outro ali. Os espantalhos são estrategicamente espalhados para amedrontar os pássaros, mas eles são confundidos com pessoas, ou pior, com almas penadas, o medo é tanto das pessoas que há quem diga que os espantalhos cantam ou chamam as pessoas pelo nome. Como se não bastasse, teve uma ocasião em que uma criança disse que o espantalho até saiu correndo atrás dela. E continuou a bisavó Faustina - eu sempre adianto ao máximo com o serviço do casarão para que eu possa vir embora antes das seis da tarde, antes que o vento comece a cantar e a bruma traiçoeira da noite venha me abraçar, dizem que ela não só nos anestesia como turva os nossos olhos, nos fazendo confundir o caminho de volta para casa.-

Francamente, isso sem pensar que o pior é a lenda que contam de que um dos espantalhos na verdade é o tão temido "Corpo Seco", que ele suga a alma de quem passa por ele depois das seis da tarde, como vocês devem saber o ano da fundação do casarão da família Antunes, a matriarca quis proteger sua neta mais nova de se aventurar e fugir com um jovem rapaz italiano, o rapaz era de família simples e havia trabalhado junto de seu pai na construção do casarão. No entanto, a neta estava perdidamente apaixonada, o rapaz era belíssimo segundo contam.
A matriarca da família Antunes era uma mulher amarga e pensou que o rapaz só queria se aproveitar da neta e roubar-lhe a herança, foi então que ela fez um feitiço de família e condenou o jovem rapaz, prendendo a alma dele dentro de um dos espantalhos da plantação na propriedade.

Agora ouça isso com atenção, ele ao passar pelo milharal para encontrar com sua amada, teve sua alma aprisionada dentro do espantalho e sua bondade lhe foi roubada, na manhã seguinte os roceiros da plantação acharam o corpo do rapaz no milharal, o pobre coitado, estava em situação deplorável, seu corpo estava mais seco que uma uva passa e a moça enamorada, estava lá abraçada junto de seu amado e não falava coisa com coisa.

Depois de tudo a matriarca da família Antunes misteriosamente sumiu, alguns dizem que ela se arrependeu do que fez, afinal sua neta ficou maluca, já outros dizem que ela era uma espécie de bruxa e que o canto que todos pensam ser do vento nas plantações, na verdade é da velha que canta buscando aprisionar novas almas. Agora prestem atenção, todos por aqui alertam as jovens moças, que se não quiserem ter suas almas sugadas pelo espantalho é melhor se recolherem antes das seis da tarde, e nunca, jamais, se aventurem a ir namorar no meio do milharal à noite.

Ela olhou Ana nos olhos e disse: - Que ninguém se atreva! Cruz credo ! Olha o " Corpo Seco"!-

Bom o amor é o mais insano dos dons, claro que minha tia avó Ana foi namorar no milharal, não só ela como a maioria das moças nas muitas plantações de Joanópolis, e o que consta, não era bem a alma delas que eram sugadas e verdade seja dita, por nove meses, depois dos namoros no milharal, ninguém ficava com o corpo tão seco assim.

Quanto a mim apesar de lutar com unhas e dentes contra meu metabolismo que precisa de umas pancadas para acordar, sigo entre um conto e outro comendo à dentadas as sobras do "pecados em pedaços" e não satisfeita, na verdade nesse momento, enquanto compartilho mais esse conto com você, resolvi fazer um bolo fresco e é a receita de família de bolo de milho da vó Maria que está no forno.

Ah ...Vai lá faz um bolo e seja feliz! Corpo seco é assombração. Cruz credo!

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