Elefantes, vacas e carros se misturavam num trânsito caótico. Havia cores por todos os lados. Também tinha diversidade. Turistas, nativos e imigrantes, todos juntos, formando uma massa de pessoas na metrópole. Fotos eram tiradas o tempo todo e havia encantamento nos olhos de quem via aquilo pela primeira vez. Também havia uma melodia intensa de sons cotidianos. Os barulhos e ruídos da rua nunca cessavam.
Se Nova Iorque é a cidade que nunca dorme, Nova Déli é a cidade que nunca para.
De frente para o laptop, com um olho na tela em branco e outro no sol que nascia, Maria de Lourdes se perguntava se algum dia iria se acostumar com tudo aquilo. Era uma vida tão diferente da sua que quase doía. A garota problemática do interior morando na capital da Índia. Parecia coisa de louco, mas ela amava desafios.
Aos dezessete anos, se lhe perguntassem como se imaginava aos vinte e dois, ela responderia: completamente ferrada. Pensar que o fim da sua adolescência e o início da vida adulta havia sido igual aos filmes clichês que ela nunca assistia era quase cômico. Era muita sorte as coisas terem dado tão certo para alguém que contava os segundos para a próxima confusão aparecer.
— Chegaram cartas do Brasil! — A voz de Felipe gritou da entrada da casa, com uma incrível animação.
— Já? — Lola perguntou, fechando a tela do laptop. — Mas nós acabamos de chegar.
— Já faz três meses, Lola... — Felipe deu um beijo na testa dela e lhe entregou vários envelopes. — Onde está Luan?
— Dormindo... como sempre — ela acrescentou.
Enquanto Felipe se afastava, Lola aproveitou para dar uma boa olhada nele. Estava tão diferente, tão mudado desde que chegara à Nova Déli. Ao invés dos tradicionais jeans e camisa polo, Felipe agora usava trajes indianos de algodão. Sua pele estava ainda mais bronzeada e ele tinha feito uma tatuagem no pé. Felipe também estava mais leve e despreocupado, a timidez se fora. Lola achava que a Índia havia feito bem a ele.
Havia feito bem aos três. Eles precisavam de ares melhores.
Logo depois que terminaram o primeiro ano de faculdade, a mãe de Lola e o pai de Luan ficaram noivos, deixando Lucas livre para viver as aventuras que sempre o chamavam. A menina nunca soube como isso pôde acontecer, porém Dona Laura — avó de Luan — contou que uma das primeiras namoradas e grande amor da vida de Antônio havia sido Catarina. O fato é que o casamento megalomaníaco, e o fato de viverem todos juntos na casa de Antônio, havia se provado uma péssima ideia. Quer dizer, Catarina e Antônio pareciam sempre felizes por brigarem o tempo inteiro, mas nem Lola e nem Luan achavam divertida aquela rotina.
A vida de Felipe havia ficado ainda mais complicada. Ele e Gabriel estavam estudando na cidade vizinha e decidiram dividir um apartamento. Para o azar dos dois, Lara não respeitava o fato de Felipe ser gay. Eram piadas e indiretas o tempo inteiro. Tantas que os pais de Felipe começaram a perceber e a infernizar a vida do filho com um tratamento ainda mais homofóbico que o de Lara.
Por isso, há seis meses, quando seu pai lhe propôs que tirasse um ano sabático ou fosse estudar em outro país, Lola não hesitou em aceitar. Porém, ela tinha uma única condição: Felipe e Luan iriam junto. Lucas que, para compensar uma vida de ausências, agora tentava ajudar a realizar todas as vontades da filha, não apenas concordou como conseguiu que os três pudessem concluir os estudos na Índia.
Era quase como um sonho. Uma casa num país com cultura diferente, um trabalho maravilhoso e dias cheios de paz. Ela era muito feliz ali.
Começou a abrir as cartas. Catarina contava como sua vida era perfeita ao lado do marido rico, Eric dizia como sentia a falta dela — o que era recíproco, apesar dela nunca dizer isso a ele — e contando como estavam as coisas na cidade e os preparativos para visitá-la na Índia, e postais de Lucas e Garcia — que haviam voltado a viajar juntos. Entre todos, contudo, um dos envelopes chamou a atenção da garota.
Era branco, todo ornamentando. E havia sido mandado por Juno. Lola franziu o cenho e abriu a carta. Ela esbugalhou os olhos quando viu o que estava escrito. Leu várias vezes para se certificar de que não havia se enganado. A carta era um convite. Para o casamento de Juno e Ian (seu namoradinho do Ensino Médio e motivo principal pelo qual as duas haviam deixado de serem amigas).
— Só pode ser brincadeira. — Maria de Lourdes deixou uma gargalhada escapar de seus lábios e foi até o quarto, mostrar para os meninos.
Quando adentrou no cômodo, deu de cara com Luan e Felipe se beijando fervorosamente. O corpo de Felipe espremia o de Luan contra a cama. Eles estavam sem camisa e arfavam. Felipe então começou a descer os lábios pelo pescoço e abdômen de Luan. Suas mãos iam direto para o samba canção do rapaz quando Lola decidiu interromper.
— Oi? Meninos? — Ela chamou, mordendo os lábios e tentando desviar os olhos.
— Bom dia pra você também, Lolita. — Luan acenou, ainda debaixo do corpo de Felipe.
Felipe, ao perceber sua posição, tratou de se recompor. Pegou as roupas espalhado pelo quarto e, muito vermelho, encarou Lola. Algumas coisas nunca mudariam.
— Sinceramente, nunca pensei que veria meus colegas de quarto nessa posição. — A menina revirou os olhos parecendo se divertir com aquilo. — Olha isso — disse, jogando o convite para Luan.
— Ei! Você quem chamou a gente pra morar com você — Felipe começou a protestar, mas foi interrompido pela risada forte de Luan.
— Sério? Casamento? — Ele perguntou e, sem esperar respostas, voltou a rir.
Felipe, curioso, pegou o convite da mão de Luan e franziu o cenho.
— O que tem de errado com o casamento?
— Nada — Lola disse e se aproximou de um Felipe semi-vestido. — Só que eu prefiro a liberdade. — Ela então começou a bater com o travesseiro em Felipe.
Felipe envolveu a cintura da menina, tentando afastá-la do travesseiro, e ela se sentiu novamente com dezessete anos, vivendo no Brasil. Perto deles, ela sempre seria uma adolescente.
— Ei! Não me deixem de fora da diversão! — Luan atirou um travesseiro nos dois, entrando na brincadeira.
Lola gargalhou e se virou para sair do quarto.
— Acho bom vocês se arrumarem logo ou vão chegar atrasados. — E antes de sair, acrescentou: — Especialmente você, Luan.
Ela deixou o cômodo e voltou para seu laptop. Ao contrário dos outros dois, Lola dividia seus tempos de estudo na Universidade de Déli com a vida de colunista numa revista brasileira adolescente.
Encarando a página que ainda estava em branco, ela pensou na reação de Felipe ao convite de casamento. Sabia que um dia ele gostaria de casar e ter filhos com Luan. Por mais que estivesse bem moderno agora, ele ainda tinha uma alma romântica e tradicional. Um dia, os dois se afastariam da vida dela.
Pensar nisso a fez se lembrar de Eric. Ele era mais velho que ela e a cada dia que passava, sua vida estava mais estabilizada. Uma hora, iria se cansar daquela ponte aérea e da vida cigana que Lola tanto amava. Uma hora, ele iria querer levar a relação dos dois para níveis mais sérios e ela não iria negar-lhe isso. Queria vê-lo feliz.
Lola sabia disso tudo. Também sabia que não era a hora de se preocupar com essas questões.
— Você vem? — Felipe gritou a pergunta da entrada da casa, tirando-a de seus devaneios.
— Não — ela respondeu com outro grito. — Vou escrever a coluna.
Então ela sorriu para o computador, enquanto começava a digitar uma parte da história de sua vida.
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Ovelhas Negras
Teen FictionO garoto popular. A garota problema. O nerd. Três adolescentes com absolutamente nada em comum. Uma noite. Uma festa. Um problema. Foi o suficiente para unir os três. Juntos, eles percebem que tem mais em comum do que apenas famílias tradicionais e...