six.

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Morava ali há mais de três semanas e ainda não sabia dizer com certeza a cor da fachada do prédio. Era como se uma chuva ácida tivesse caído torrencialmente sobre a construção, mas poupado seus vizinhos, até deixar o edifício "Rio das Ostras" com a mesma nuance de um portador de icterícia.
Sina queria poder dizer "por dentro é legal", mas isso também não seria verdade. Os eletrodomésticos e móveis do dono anterior haviam deixado contornos exatos no chão e nas paredes, como sinalizações policiais da ocorrência de uma chacina. A única suíte tinha uma vista para o apartamento dos outros: o quarto de uma garotinha que possuía um exército de bonecas loiras e pôsteres do garoto menos popular de uma boy band. De qualquer forma, o lugar era um combo funcional para uma jovem de vinte e um anos que resolve morar sozinha: preço; mais, proximidade da universidade; mais, um chuveiro que funcionava bem.
Resumindo, ela amava o lugar.
As telas decorativas na parede, as roupas de cama combinando e o conjunto de bibelôs sob a mesinha de centro: tudo era mão de Alex. Sina não reclamou, nem mesmo pelo fato de que as folhas opulentas da zamioculca agora estarem ocupando o espaço onde planejara colocar a coleção de vinis antigos, pois confiava no bom gosto da mãe. Além do que, seria bom ser responsável por outra vida. (Ainda que plantas não pudessem reclamar de quem se esquece das suas necessidades vitais).
Sina ministrava aulas durante o dia para o ensino médio, mas passava a outra parte do tempo na Universidade da Alemanha finalizando o projeto de pesquisa do seu mestrado. Não porque queria ser considerada aluna exemplar (longe dela ser a garota nova a competir com todos aqueles professores de egos colossais), mas porque não podia se dar ao luxo de passar mais do que duas horas no escritório mofado do apartamento sem ter uma crise respiratória.
Nos finais de semana, se permitia ouvir música enquanto ajeitava o apartamento. E quando o rock intruso da Chump Change surgia entre a sequência aleatória de pop, era inevitável: seu coração sempre apertava um pouquinho.
O cartão com o número de Noah ainda estava na parte mais segura da carteira, já amassado nas pontas. Não foram poucas às vezes que pensou em enviar uma mensagem de texto para o rapaz. Geralmente a ideia surgia depois de algumas batidas feitas com vodka barata. Mas não saberia lidar com a decepção caso não fosse respondida, por isso escondia o cartão sempre que a vontade ficava mais forte do que seu juízo.
Talvez fosse melhor nunca tê-lo conhecido, afinal, o homem fez com que todos os garotos que Sina conheceu dali em diante se tornassem menininhos incipientes nas artes de sedução. Claro. Quem experimenta do fruto proibido, não se satisfará mais com a previsibilidade do paraíso.
E o mais triste, não era pensar que o tempo iria desvanecer suas recordações daquela noite...
Mas saber que ela seria ainda mais turva nas lembranças dele.

***

Eram apenas duas horas de Berlim até Hamburgo e daquela vez Sina saiu cedo. Queria chegar a tempo de tomar o café da manhã com sua família. Sentia falta disso: os quatro juntos na mesa, o cheiro de pão fresquinho acompanhado das atualizações de Charles sobre acontecimentos políticos do mundo, e também as últimas fofocas sobre os vizinhos. Esta última parte, cortesia de Alex. Encontrou a porta já destrancada, (sua mãe sofria da mesma fé cega ensinada a moradores de cidades interioranas de achar que locais menos povoados estão alheios ao mal do mundo). A casa tinha cheiro de alvejante e tinta a óleo. Notou o quadro novo na parede da sala, uma reprodução de um jardim florido. O verde da grama mais pastel do que a realidade. Alex provavelmente alterara o tom a fim de combinar melhor com a decoração da sala.
—Mãe? Pai? — Nenhum adulto respondeu de volta. Mas competindo com o barulho fictício de tiros e granadas, a garota ouviu o som familiar de notas de guitarra e bumbos de bateria atravessando as paredes centenárias. A música vinha do quarto do irmão e era Chump Change. Melhor recepção de todas.
Ela subiu as escadas, rindo a cada degrau a respeito daquela coincidência. O deus do destino era mesmo um grande fanfarrão que adorava lhe pregar peças. Ignorou o aviso de "não entre sem ser convidado" colado com fita adesiva na porta do quarto de Peter, mas bateu duas vezes, só por garantia:
— Irmã mais velha chegando! — Sina falou com uma alegria matinal atípica. Passar o fim de semana na cidade natal era um ótimo desafogo das responsabilidades carregadas na capital Alemã. — E este aviso é muito rebelde sem causa, não acha?
O jovem de dezenove anos não desviou os olhos do jogo. Uma granada cintilante explodiu na tela do monitor, o bom rock da Chump Change fazendo pano de fundo para o cenário de guerra simulado.
— Ei, olá. — Peter sorriu, ainda sem piscar e ainda sem olhar para a irmã. Fez uma careta de dor quando seu avatar levou um tiro. — O aviso na porta é para a sua própria proteção. Eu poderia estar fazendo algo bem íntimo e que você não gostaria de ver.
A irmã revirou os olhos.
— Eca. Vou fingir que você não disse isso.
— Mamãe sabia que você viria? Porque ela não está em casa.
Como toda boa irmã, ela não pediu licença para entrar no quarto. Empurrou uma toalha molhada de cima da cama e se sentou no colchão, as mãos evitando a parte úmida absorvida pelo lençol. Era tão difícil assim para o garoto depositar a peça usada no cesto de roupa suja?
— Não avisei. Era para ser uma visita surpresa. — Ela fechou os olhos quando a música chegou à parte do solo de guitarra, mas outra rajada de tiro prejudicou a exclusividade do som. — Sabe onde mamãe foi?
— Ah. Ela foi... — Peter apertou uma sequência rápida de botões, mas não conseguiu evitar a morte do seu jogador. —Não... NÃO! Mas que droga! Pirralhos paquistaneses viciados. Não dá para competir com eles.
Os lábios de Sina se contorceram num sorrisinho maldoso.
— Não que eu esteja do lado dos paquistaneses... mas quem sabe agora não seja uma boa hora para dar atenção a sua irmã carente que acabou de chegar de uma viagem exaustiva de um lugar tão tão distante?
Peter deixou o controle de lado e olhou para o rosto da irmã, pela primeira vez. Pausou a tela no momento em que estilhaços de um prédio demolido voavam por todas as direções.
— Dramática. — Ele riu de soslaio. — Como vão as coisas?
A garota inclinou o corpo até que as costas alcançassem a cabeceira da cama e aninhou o cabelo em um coque que funcionou como apoio contra a madeira.
— Vão bem. O serviço é muito legal. Estou gostando muito.
Peter a encarou. O olhar tinha a mesma compaixão com a qual se analisa um passarinho caído do ninho.
— Eu perguntei como vão as coisas com você. E não como é o seu serviço.
Sina o olhou surpresa, perguntando-se quando o irmão ficara tão perspicaz. Agora no monitor, um ranking estatístico do fim de jogo trazia o nome de Peter em terceiro lugar: 15 nomes na lista de bravos soldados entre mortos e vitoriosos.
—Ah. Eu estou bem. — A frase soou boba e automática, como a resposta dada a um atendente de telemarketing que finge interesse por sua vida pessoal antes de te empurrar algum plano telefônico.
— É mesmo? Porque já é a terceira vez só este mês que você vem à Hamburgo.
Ela ficou muda por um instante.
— Mas são só duas horas e... tem algum problema nisso?
O controle do vídeo game ainda estava sobre a mesa de computador, mas Peter não pareceu ansioso para pegá-lo novamente. Ele empurrou os pés da irmã pegando um espaço na beirada da cama.
— Não tem problema quando você é uma velha solitária com dez gatos, mas quando se tem 21 anos e está morando sozinha pela primeira vez em Berlim... É bem estranho.
Sina gargalhou, mas os músculos do seu rosto não pareceram fazer os movimentos necessários para que aquilo soasse como uma piada boa. Foi mais como um drama.
— Não tem amigos ou... alguém... para passar um tempo juntos? — O irmão tomou muito cuidado quando disse "alguém", como se estivesse falando algo obsceno.
Ela pensou bastante antes de responder.
— É claro que eu tenho amigos! — Sina suspirou. — Tá. Uma amiga, a Heyoon... Quero dizer, na verdade ela é minha aluna, mas acho que eu posso incluí-la aí.
— E porque não sai com ela? Sabe, não precisa ficar vindo aqui todo fim de semana. Nós podemos viver sem você.
Ela chutou o ombro do irmão com delicadeza.
— Porque ela está na quarta tentativa de engatar um relacionamento e precisa dos fins de semana para se dedicar a isso. — Enfatizou aquilo como se Yoon estivesse desenvolvendo projetos científicos para a NASA. Peter olhou de lado para a irmã e riu presunçoso.
— Mulheres.
Antes que aquela sessão de análise a fizesse se sentir a pessoa mais solitária do planeta, Sina tratou de mudar o assunto:
— Mas chega de falar de mim. — Ela apontou para o ar, sinalizando ondas sonoras invisíveis. — Desde quando você gosta de Chump Change?
O que na prática, era um assunto que também dizia respeito a ela.
Peter olhou para a irmã, surpreso. Ambos partilhavam do mesmo tom azulado das íris. Uma herança materna.
— Desde quando nasci. — Ele brincou, como se aquilo fosse elementar. — E desde quando você se interessa por música boa?
A garota fez um som debochado que lembrava um balão de festa perdendo o ar.
— Rá! Meu gosto musical sempre foi bom.
— Ah, tá, até parece.
Suas lembranças levaram-na a uma noite especial em Praga. O coraçãozinho tolo disparou. Então ela mentiu, sem contudo, se sentir culpada.
— É que na Europa todo mundo ouve eles. Tocava em todo lugar quando eu estava por lá. — Manteve o timbre tranquilo, uma encenação perfeita. — Até que não é ruim.
Peter tornou a olhá-la. Daquela vez com o mesmo ar fanático de quando estava matando soldados adultos comandados por crianças paquistanesas.
— Tá brincando? É claro que eles não são ruins! Eles são os melhores do mundo! O último álbum deles teve cinco faixas de sucesso!
— Mesmo? — A garota falou tentando soar desinteressada.
— Sim! O Ryan destrói na guitarra! E o Noah Urrea? Que voz é aquela, cara! Ele já até foi eleito o melhor vocalista pela Rolling Stone.
Os nomes causaram uma repulsa e um aperto no peito da garota, respectivamente.
— Hum... O Samuel também é um cara legal. —Sina disse. — Quero dizer, um bom baixista.
Peter ficou embasbacado.
— Olha só... Sabe até o nome do baixista? Estou gostando de ver.
— É, mas não se anime muito. Eu ainda sou fissurada por Shawn Mendes. Muito mais do que rock.
— Podemos pesquisar se isso tem cura. — Ele sorriu debochado. — E aí? Vai ficar o final de semana todo?
— Vou sim. Vai ter que me aturar até amanhã à noite.
Ele deu uma levantada de ombros, seu olhar soltando para o rosto da irmã.
— Eu estava com saudades. Mamãe e papai pegando só no meu pé é um saco.
— Você é um amor.
Do térreo, a voz de Alex ressoou melodiosa junto com o bater dos saltos contra o assoalho de madeira:
— Filha? Você está aqui?
— Estou! Já vou descer! — Ela respondeu de volta, colocando-se de pé num sobressalto.
E Peter a chamou antes que ela saísse.
— Ei, Sina. — Ele continuou depois que a irmã voltou-se para ele. — Não tem problema se sentir sozinha de vez em quando. Venha sempre que quiser.
Ela sorriu. Mas antes que Sina pudesse falar mais alguma coisa, a imagem do monitor já tinha se transformado em um novo cenário caótico de guerra. Soldados em pixels voltando à vida para se matarem num ciclo vicioso. E de repente, aquela versão solícita do seu irmão caçula, já não estava mais ali.

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