Capítulo 9

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Kayuri

A partir de agora, nossas vidas não serão mais as mesmas, teremos que deixar nossas casas e ir para algum lugar seguro, temos outras duas propriedades na cidade mas se já descobriram aqui que é no meio da floresta com certeza já tiveram acesso as outras casas.
Então é muito perigoso ir para alguma delas agora, vou pedir abrigo em alguma alcateia vizinha, ou mesmo para o Concelho, tenho certeza que depois desse ataque irão nos ajudar.
Não consigo deixar de pensar nas últimas palavras do meu pai e o que significa
Industrias Entrecorps, eu nunca ouvi falar nesse nome mas percebi que ele, minha mãe e meu irmão estavam agindo estranho nas últimas semanas. Perguntei o que estava acontecendo mas ele disse que eu não precisava me preocupar, sei que meu pai não me contava tudo, mas quero acreditar que se ele soubesse que algo tão sério poderia acontecer, teria me falado alguma coisa. Mas com o que meu pai falou antes de morrer, não consigo parar de pensar no que eles estavam escondendo, deve ter algum motivo para não me contarem. 'Indústrias Entrecorps, computador'. Temos apenas um computador na propriedade, ele é comunitário e fica na Casa Grande geralmente é usado para pesquisas e compras, e meus pais tem um notebook que ninguém mais tem acesso, fica no quarto deles e contém tudo sobre a alcateia, todas as contas e os contatos com outras alcateias e com o Concelho são feitos por ele, deve ser a esse que meu pai se referiu.  Algumas vezes já vi minha mãe trabalhando nele, eu sei que ele precisa de senha para ser usado. Fui para o quarto dos meus pais com a sensação de que era um menino fazendo alguma travessura, mas não posso mais ter esse tipo de pensamento, respirei fundo e abri a porta, fui até a mesa onde ficava o notebook, o peguei e levei para o meu quarto onde ficaria mais a vontade para tentar descobrir a senha.
Assim que o liguei percebi que haviam três usuários cadastrados, Alfa, Thuary e Kayuri, não tenho ideia do que meu nome está fazendo ali, eu nunca peguei esse notebook na mão. Selecionei o meu nome e solicitou uma senha, sem a mínima ideia do que colocar, vi que havia a opção 'dica de senha' cliquei e abriu uma janela com a seguinte mensagem: 'Kayuri, se não estamos com você para dar a senha de acesso, algo muito grave aconteceu. Eu e sua mãe deixamos o máximo de informações possíveis em arquivos neste computador para que só você tenha acesso. Então eu quero que lembre da nossa primeira caçada juntos'

Eu tinha quinze anos a primeira vez em que fui caçar com meu pai, e meu lobo era pequeno comparado ao que é hoje, não era muito maior que um lobo selvagem, para um humano desinformado eu até poderia ser confundido com um, meu pelo mesclado em tons de castanho claro se misturava muito bem com os lobos selvagens que haviam no território da nossa antiga alcateia, a caça era abundante então não tínhamos problemas em dividir. Geralmente as alcateias preferem ficar onde há lobos selvagens, eles sempre estão nos melhores lugares de caça e mantêm os humanos afastados e se mesmo assim alguém ver algum dos nossos, é mais fácil de acreditarem que a pessoa está em choque, do que acreditarem que esta pessoa viu um lobo de quase dois metros de altura, e isso sempre é uma coisa boa.
Eu não sabia o que esperar, pois os adultos iam e vinham de caçadas todos os dias. Meu pai se despediu da minha mãe e do meu irmão e pediu para eu fazer o mesmo. Saímos sem nada nas mãos, apenas um pai e um filho e o que a Lua nos reservasse.
Andamos por alguns quilômetros em nossa forma humana, conversando como sempre fazíamos até que chegamos no fim dos limites da propriedade, então ele parou me olhou nos olhos e disse que iríamos nos transformar e ficar o tempo necessário como lobos para que eu aprendesse algumas coisas que não precisam de palavras para serem ditas.
Tiramos nossas bermudas e guardamos dentro do tronco oco de uma árvore, nos transformamos e deixei o lobo totalmente no controle, já estava sentindo os instintos se intensificarem, conseguia ver os pequenos detalhes das formigas levando folhas para o formigueiro, ouvir o grasnado dos filhotes de passarinho no topo da árvore mais alta, sentir o cheiro de um veado recém abatido a alguns quilômetros de onde estávamos, entre outras coisas que aprendemos a deixar de prestar atenção. Tudo era de mais e ao mesmo tempo o suficiente, cada coisa na natureza estava no seu devido lugar, e isso me deixava completamente em paz.
Quando pequenos nos transformamos geralmente perto de um ano de vida, então aprendemos a controlar os instintos do lobo desde bem cedo. Isso significa deixar de prestar atenção na maioria do que se passa a nossa volta na forma humana, mas quando estamos na floresta como lobos não precisamos pensar em nada só deixar o lobo agir e ele fará tudo o que precisa ser feito, ainda ficamos conscientes de tudo, o lobo não é um outro ser que tenta tomar o controle das nossas vidas, ele é apenas uma parte de nós mesmos, a parte da emoção, do sentimento, dos instintos, a parte que não precisa se preocupar com nada além de viver livremente. Ele não tem vergonha do que é, e nem julga os outros pelo que são, não tem preconceitos ou malícia é puro, é a melhor parte de cada um.
Depois de horas andando pela floresta estava começando a anoitecer achamos um lugar para passar a noite, geralmente quando dormimos, ficamos na forma humana, mas como estávamos no meio da floresta o lobo sabia que era melhor ficar para passar a noite. Não conseguimos conversar quando estamos como lobos, mas conseguimos sentir o que o outro está sentindo, se está alegre, triste, irritado ou qualquer outro sentimento ou sensação que o outro esteja emanando, e embaixo da árvore que ficamos, só eu e meu pai, só consegui sentir felicidade emanando dele, nos aconchegamos um ao outro para dormir, não porque estava frio, mas para demonstrar que ele estaria ali por mim, assim como eu estaria para ele sempre que fosse preciso.
Quando amanheceu levantamos e continuamos a andar, ainda não tínhamos caçado nada e havia rastros de animais por toda parte eu estava com fome, mas meu pai ignorava todos eles, passava do meio dia quando ele parou ao meu lado farejando o ar repetidas vezes, logo pude perceber que era um cervo e também que já estava sendo caçado por três lobos selvagens, tentei continuar andando mas ele bloqueou o meu caminho.
Não tinha entendido muito bem o que ele queria que eu fizesse me mandando caçar um animal que já estava sendo caçado por outros lobos, era uma caçada difícil para apenas três lobos selvagens já que o cervo é um animal grande, mas fui em direção a eles, o cervo já estava machucado, minha aproximação foi notada quando ele já estava cercado, os três lobos rosnaram e mostraram os dentes em posição de ataque para mim, fiz o mesmo eu era maior e mais forte que eles, mas estavam em três, meu pai ficou afastado pelo jeito essa era a prova da caçada, brigar com lobos selvagens adultos. Fui chegando mais perto da presa, os lobos não saíram de perto dela, mas também não me atacaram, apenas uma mordida minha no pescoço e em segundos o cervo não se mexia mais, os lobos pararam de rosnar, sabiam que eu era mais forte que eles e que teriam que procurar outra presa. O trabalho duro que eles tiveram para machucar e encurralar a presa tinha sido em vão, eu estava com fome mas roubar a comida deles assim não parecia ser o certo, eles estavam saindo, cansados e com fome eu podia sentir isso. A consciência falou mais alto que a fome e arrastei a presa até estar a frente deles, para eles entenderem que eu não me importava em dividir, eles passaram por mim e continuaram andando, fiz a mesma coisa, e passaram direto por mim novamente. Não estava entendendo eu podia sentir a fome deles e mesmo assim não estavam comendo o que eu oferecia, então pareceu que finalmente entenderam que eu estava querendo fazer e os três chegaram perto do corpo do cervo, só que ao invés de começar a comer, eles tentavam arrastar, eu podia sentir a fome aumentando e ouvir suas barrigas roncando e mesmo assim eles carregavam a presa com muita dificuldade, puxando pouco a pouco de cada vez.
Não sabia o que eles pretendiam fazer, mas decidi ajudar, carregamos a presa por alguns quilômetros, então comecei a sentir o cheiro de mais lobos, eu estava entrando na alcateia deles, não sabia ao certo o que poderia acontecer comigo ali mas continuei andando, logo chegamos a uma caverna aparentemente vazia, então um dos lobos uivou e para a minha surpresa começou a aparecer filhotes por toda a parte, tinham uns vinte filhotes de tamanhos diferentes, uns mais velhos quase de tamanho adulto, uns um pouco menores, devia ter umas quatro ninhadas diferentes pelo que dava para perceber. Me olharam quando estavam se aproximando e pude notar que também estavam com muita fome. Uma loba adulta se aproximou, era a mãe da ninhada mais nova, senti que era a alfa daquela alcateia, todos que chegaram antes esperaram ela começar a comer, para só então comer também. Ela deixou que eu me alimentasse junto com sua alcateia, mesmo sabendo que o cervo não seria suficiente para alimentar todos até a próxima caça. Dei algumas mordidas na carne fresca, mas não conseguia deixar de pensar no que poderia ter acontecido com aquela alcateia, para ter tantos filhotes e tão poucos adultos.
Saí de lá e comecei a procurar pelo meu pai, escutei ele uivando não muito longe de onde eu estava e corri até ele, percebi que ele estava na forma humana então também me transformei.

- Pai!? Você sabe o que aconteceu com essa alcateia? Tem muitos filhotes e poucos adultos para caçar, não vão conseguir sobreviver.

- Como você sabe de tudo isso Kayuri?

- Eu sei que eu devia ter lutado com eles pela presa, mas eles não me atacaram e não parecia certo, a presa já estava machucada quando cheguei e senti que eles estavam cansados e com fome e não era justo eu comer a caça sozinho, então eu ofereci para eles, mas não comeram, só tentavam carregar e eu ajudei eles. E quando cheguei lá percebi que aqueles eram os únicos lobos adultos, fora a alfa.

- Você entrou em uma alcateia de lobos selvagens depois de ter matado a presa deles? Você tem noção do quanto isso foi perigoso?

- Sim! Mas estava sentindo que eles não me fariam mal.

- É, eu sei, também senti isso, eu estava por perto. Teria percebido se prestasse mais atenção.

- Você sabe o que aconteceu com eles?

- Foram caçados por humanos, era uma das maiores alcateias de lobos selvagens da região, começaram a caçar perto demais das áreas urbanas, então como prevenção o governo liberou a caça de lobos, então os que saíam para caçar acabavam não retornando. Eu vi isso acontecer mas não tinha muito o que eu fazer, ja que eu sou muito maior que eles, eles tem medo e fogem quando eu chego perto, eu ainda não sabia a localização da caverna, mas quando eu venho caçar para essa região eu deixo uma presa debilitada onde eu sinto mais o cheiro deles. Para tentar ajudar de alguma forma, sei que não é muito mas é o que eu consigo fazer.

- A alfa me deixou comer com eles.

Vi o olhar surpreso do meu pai me encarando, logo seguido por um sorriso.

- Pai, eu quero voltar aqui toda semana e ajudar com a caça, pelo menos até os filhotes crescerem.

- Você é muito corajoso e bondoso Kayuri, ela deve ter sentido isso também. É só isso que um lobo precisa.

Enfim LobosOnde histórias criam vida. Descubra agora